Veste-me em teu labirinto


É bastante comum escritores que começam na narrativa mais curta, ou na poesia, experimentarem aventuras mais extensas no romance. E atualmente também é muito comum autores não se preocuparem tanto com delimitações de gênero. Escrevem e pronto!

Daniel Osiecki, poeta e editor curitibano, com o romance Veste-me em teu labirinto aventura-se em um terreno que não lhe é tão comum em sua produção literária. A narrativa (ou narrativas?) breve, com pouco mais de 100 páginas, conta as aventuras, agruras e peripécias de Caetano, um professor de música que deixa um diário para um amigo escritor publicar.

 

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Quando recebi o convite do Daniel para escrever sobre o Veste-me em teu labirinto, me tremi todo de empolgação.

Daniel faz um jogo em seu romance de estreia, Veste-me em teu labirinto, em tom ora documental, ora de detetive noir. O narrador recebe a tarefa de biografar a vida de seu amigo Caetano a partir dos diários do mesmo. Acrescenta-se uma camada, Caetano está morto, mas isso não é spoiler.

Nas primeiras páginas do Veste-me…, nós somos orientados pelo narrador Daniel, não o Daniel autor, mas o Daniel investigador-narrador-personagem, que vai nos colocar diante de um morto que fala, ao estilo machadiano. Todavia, a novela não é sobre isso, é também sobre a vida de Caetano, sobre sua sexualidade e sobre seus diários.

A novela ganha mais uma camada, quando em off, o Daniel autor da novela (agora o nosso Daniel), me conta que Caetano foi um grande amigo seu, mas se este deixou diários para este nosso Daniel, isso é um mistério.

Como nas melhores histórias homoeróticas, Veste-me… explora a vivência e as aventuras sexuais de uma personagem homossexual/bissexual que constrói afetos e que está no Brasil repressor no final do século XX e mais otimista do início do século XXI.

 

Raul K. Souza, poeta

 

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FRAGMENTOS

 

 

O embrulho chegou à tarde pelo correio. Não havia identificação alguma. Apenas meu nome e meu endereço. Era um embrulho não muito grande nem muito pesado. Era um envelope pardo com meu nome escrito com uma letra que eu desconhecia. Como estava atrasado para um compromisso, deixei o envelope sobre a mesa da cozinha e saí. Durante todo o trajeto para a reunião, dentro do ônibus, e também durante a própria reunião me esqueci completamente do envelope e o dia transcorreu da forma mais normal possível. Chegando em casa, como de praxe, me servi de uma taça de vinho e acendi meu cigarro com o isqueiro que ganhei de Caetano.

Caetano era um amigo bastante peculiar. Mais velho, tinha idade suficiente para ser meu pai, era extremamente sensível. Tão sensível ao ponto de encher seus olhos de lágrimas quando nos despedíamos. Pelo telefone, ele sempre terminava a conversa com um “eu te amo!” em uma voz trêmula, quase chorosa, como um lamento realmente sentido. Eu me sentia um privilegiado por Caetano me considerar tanto. Às vezes eu tinha dúvidas se ele realmente gostava tanto assim de mim, ou se era apenas pelo fato de sua família não estar presente. Caetano tinha dois filhos e nenhum deles se interessava muito pela vida do pai. Nem por seu trabalho como diretor do coral da universidade, nem por sua vida pessoal. Seus filhos eram religiosos, assim como Caetano também fora muito tempo antes, mas seguiu outros caminhos. Sua ex-companheira fez com que Caetano contasse aos filhos o real motivo da separação, o que ele fez com total tranquilidade e certeza de que seus filhos o compreenderiam. Enganou-se. Seus filhos ficaram ao lado da mãe, o que é até normal, mas romper relações com o pai foi de uma insensibilidade singular. Ainda mais para alguém tão carente e sensível como Caetano. Com o tempo, seus filhos foram se reaproximando, mas a relação nunca mais foi a mesma. Para sua família, tradicional do interior do Paraná, pai militar e mãe dona de casa, foi um choque. Quando o conheci seu pai já era falecido há alguns anos, mas sua mãe, que desde sua infância já nutria por Caetano alguns sentimentos duvidosos, o tratava de forma bastante fria. Quando criança, com cerca de oito ou nove anos, Caetano era repelido pela mãe quando tentava abraçá-la. “Não quero criar vínculo”, ela dizia. Isso Caetano me contou várias vezes em nossos encontros. Seus olhos sempre lacrimejavam. Geralmente, depois de contar sobre episódios da infância e de sua mãe, Caetano acendia um cigarro. Era outra questão que incomodava seus filhos. Por isso, mais uma vez, recorria a mim.

Depois de tomar minha taça diária de vinho e terminar meu cigarro, olho diretamente para o embrulho sobre a mesa da cozinha. Havia passado o dia todo sem me lembrar do envelope, e agora meu coração acelerava sem eu saber realmente qual era o motivo, mas algo me dizia que tinha a ver com Caetano. A princípio, demorei pra perceber que há meses antes do Caetano morrer ele havia comentado sobre um manuscrito, uma espécie de diário que escrevia relembrando seus momentos desde a infância até quando chegou a Curitiba. Não quis mais esperar.

Abri o envelope.

 

Sábado – 02/02/02

Minha vida se divide em duas fases: a primeira, quando saí de casa e tudo o que essa escolha (terá sido escolha mesmo?) acarretou, ainda muito cedo, e parti para o seminário, em 1967. Foi no seminário que o vi pela primeira vez. Lindo, olhos maravilhosamente azuis. Que interessante; sempre que me lembro disso, viajo em meus pensamentos. Há algum tempo eu sofria, são apenas lembranças. Lembranças que faço questão de guardar. Não para vivê-las, mas para poder contar para mim mesmo que a vida nem sempre é boa, nem sempre é plena.

A segunda, a partir de janeiro de 1969, quando percebi que um vazio muito grande tomava conta da minha vida. Talvez se alguém ler isso tudo algum dia, fique se perguntando sobre o quão metafóricas são minhas palavras. O significado? Vou falar, mas bem devagar, no meu ritmo.

Noutro dia, essas imagens estavam bem nítidas. Elas me deliciavam. Muitos detalhes, um sorriso, um olhar, coração disparado. E Mário! Aquele Mário me queria? Me desejava? Escuto sua voz, era a certeza do que ele sentia por mim. Muitos anos depois, talvez doze, ele me disse que havia destruído tudo referente àquele período. Que pena.

Não pretendo escrever minhas memórias obedecendo à linha do tempo. Estou longe de ser um Brás Cubas, tanto pela forma tão trivial que adoto quanto pela ironia fina daquele narrador machadiano. Fiquei vários dias envolvido em pensamentos, lembranças, até assisti televisão, e eu considero isso uma perda de tempo, que me provoca um sentimento de inutilidade, de raiva. Por fim, retomo minha atividade e concentro minhas energias para acabar com a angústia que me domina. É isso. A angústia se dissipou. É como fumaça. Assim como vem, vai.

Quando comecei a escrever, disse que minha vida se dividia em duas fases. Mário é o marco entre uma fase e outra. Eu diria que é o marco entre o fim da infância e o início da fase madura. Até o ano de 1966, vivi na minha cidade natal. Durante onze anos, vivi minha infância em uma solidão desesperadora, tomado por uma depressão que me acompanhou até o ano 2000. Foi nesse período em que me dei conta dessa situação e, então, comecei a travar uma luta incessante para me livrar de tudo que me oprimia. Custou-me muito caro. Encarei verdades que antes não podia admitir e erros que não conseguia enxergar. Eis-me aqui, registrando a minha história, deixando para a posteridade, talvez, minha ideia de que valeu a pena lutar. A depressão se foi, e o passo seguinte é ir colocando a vida em ordem, varrer todo o lixo acumulado, aparar as arestas, abrir as janelas e seguir em frente. Vai ser fácil? Claro que não, mas vou em frente.

Esse mesmo tempo de dores e decepções também foi implacável. Em 1967, entrei para o seminário. Um ano em que o país fervilhava. Ouvia muito entre meus parentes as palavras “comunistas”, “terroristas”, “assaltantes”, mas não sabia direito o que significavam naquele contexto sombrio. Queria ser padre. Queria e não queria. Não queria ficar longe de casa, tinha esperança de obter um pouco de carinho de meus pais. Isso jamais aconteceu. Queria ser padre, mas não queria ir para o seminário. Vivi esse dilema na época. Chorei muito. Nada me consolava. Detestava tudo ligado à igreja: missa, terço, rezas e outras coisas. Resolvi, então, ir embora.

Na semana de carnaval, arrumei as malas, tomei um ônibus e caí na estrada. Tinha um amigo de escola que já havia me falado de Kerouac e do seu romance icônico que marcara toda uma geração nos Estados Unidos e, quiçá, no mundo. Eu só fui ler e entender os significados de On the road anos mais tarde, quando lembrei desse primeiro momento de ruptura e percebi quão relevante fora em minha vida. Tentando não olhar pra trás e tentando não derramar nem uma única lágrima. Foi difícil. Curiosamente, eu não estava feliz e não sabia o que me aguardava. Mas isso, conto depois.

 

13/02/02 – quarta-feira

Opressão no peito é o que eu senti no trajeto Jacarezinho-Bandeirantes. É o que estou sentindo ainda hoje. Algo inexplicável, envolvente, angustiante e pesado demais para um ser humano. Deveria sentir pena e raiva. Estive a ponto de me entregar. Andei por aí, paguei a conta do telefone, que só está podendo ser paga bastante longe. Poxa! Este mês será duro, pois ainda não paguei todas as contas e estou sem dinheiro. Que falta de ar, que sufoco. Que vontade de gritar, gritar até explodir. Meu Deus!

Explosão! Foi o que não aconteceu quando cheguei na casa dos meus pais. Fui recebido com frieza, indiferença. Só queriam saber porque estava voltando e pareciam insatisfeitos com isso. Que decepção! Que sensação de abandono quando percebi que o amor, o carinho e o afeto que eu queria receber, não existiam. Nunca existiram. Nun            ca                 e           x            is                 tiram.

Para completar o espetáculo desolador, o Padre Chico, que por infelicidade é meu tio, veio de Curitiba para despejar toda sua ira sobre mim, destruindo de vez a minha autoestima. Assim, peguei minha mala, dei meia volta e adeus! Fui ao encontro daquilo que o destino me reservava. Qual seria o meu destino? Seria destino? Eu nem sabia se acreditava em destino. Mal sabia que naquele lugar de onde eu tentava sair, alguns raios de felicidade iluminariam meu caminho. Que amaria pela primeira vez e, em contrapartida, me sentiria acuado, como nunca tinha sido. Não quero dizer com isso que tudo ia mal naquele tempo. Mário! Fico repetindo esse nome até hoje. Repito, no apartamento vazio e escuro. A sonoridade desse nome que hoje me é estranha pela distância no tempo também me leva para lugares obscuros da memória. Que sentimento paradoxal.

 

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Veste-me em teu labirinto (romance)
Caravana Grupo Editorial
14×21
134 páginas

 

 

 

 

Daniel Mascarenhas Osiecki nasceu em Curitiba, em 1983. Escritor e editor, publicou os livros Abismo (2009), Sob o signo da noite (2016), fellis (2018), Morre como em um vórtice de sombra (2019), Trilogia Amarga (2019), Fora de ordem (2021) e 27 episódios diante do espelho (2021). É editor-chefe da Revista TXT e editor-adjunto na Kotter Editorial. Mestre em Teoria Literária e organizador do sarau-coletivo Vespeiro – vozes literárias.




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