Uma revista literária antiga


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Em 1963 já haviam estreado nada menos que 14 dos poetas da minha geração, em São Paulo, os poetas então chamados “novíssimos”, como anunciava o nome da coleção que nos abrigou, criada e dirigida por Massao Ohno, e alguns mais fariam sua aparição nos dois ou três anos seguintes. A ebulição era intensa (éramos todos jovens, rebeldes e inconformados), o País estava mergulhado numa crise que nos parecia sem precedentes, e em pouco tempo a conjugação desses fatores mostrou resultados palpáveis: quase duas dezenas de livros inéditos, dados a conhecer pela Coleção dos Novíssimos.

Nessa altura, desenhou-se uma possibilidade que poderia ter sido um marco decisivo: uma revista, a nossa revista. Não tínhamos dúvida de que um grupo literário precisa firmar posições e definir fronteiras. Para isso servem os periódicos “confessionais”. Ali estavam os exemplos recentes, alguns recentíssimos, as grandes revistas de 22, de 30, de 45, dos concretos, dos mineiros, dos cariocas e de tantos mais. A nossa revista, acreditávamos então, era uma necessidade.

Levamos a ideia a Massao Ohno, que de pronto a acolheu: “Podem me trazer a revista que eu publico”. Naquela tarde, estávamos ali, por acaso, Celso Luís Paulini, Antônio Fernando De Franceschi e eu, como porta-vozes do grupo, incumbidos de uma sondagem preliminar ao editor. Viramos de imediato, os três, a Comissão Editorial. Como nossas posições não eram claras, muito menos unânimes, nem tínhamos fronteiras bem definidas, a comissão decidiu que o primeiro número não abriria com um manifesto ou uma declaração de princípios. Isso poderia ficar para depois. Nossa revista, ao contrário das demais, seria um fórum de debates, tanto quanto possível neutro, aberto aos timbres variados que marcavam a heterogeneidade não só do grupo, como de quase toda a literatura do País. A expectativa, pelo menos a do trio improvisado em comissão editorial, era que a revista ajudasse a definir, mais adiante, o ideário que viesse a brotar exatamente das discussões que pretendíamos promover. Não seria o órgão oficial do grupo, mas uma ferramenta a ser utilizada no encalço da sua possível identidade.

Trabalhamos no projeto durante algum tempo; solicitamos colaboração de todos os companheiros – poesia, prosa, ensaio, depoimento, crônica, o que fosse; fomos atrás de colaboradores fora do grupo, dispostos a escrever sobre artes, cinema, teatro, filosofia, economia, política. Não queríamos que a revista fosse exclusivamente literária nem um clube fechado. Reunido material suficiente para um primeiro número, fomos apresentá-lo, vitoriosos, ao editor.

Massao ponderou que não poderia trabalhar com aquele material, no estado em que se encontrava, cada colaboração datilografada em máquina diferente (isto se deu, não é demais repetir, em 1963), uma ou outra manuscrita, desordem geral. Eu me incumbi de uniformizar a coisa, ali mesmo no escritório do editor, numa possante ibm elétrica cedida por ele. Depois de duas ou três tardes de trabalho, ali estava, limpinha, pronta para o prelo, a edição inaugural da Revista dos Novíssimos. Não sei se o nome era esse mesmo, a bem dizer não me lembro se a revista chegou a ser batizada. Do episódio todo, retive só uma vaga lembrança. Os originais foram para a cesta de lixo, ficou só a cópia única, na minha datilografia uniforme.

Meses depois, não tínhamos notícia do projeto. Indagado, Massao desconversava, sorria, silenciava. Houve um dia em que me garantiu: o número já está composto, o chumbo todo ali empilhado (era o tempo do linotipo), só falta rodar. Antes disso, ele me passaria a primeira prova, para a revisão. Mas isso não chegou a acontecer, a revista morreu por ali e nunca mais pensamos no assunto. Eu, pelo menos, esqueci logo a pequena aventura, não guardei registro de nada, não tenho lembrança dos artigos,dos poemas, dos contos, das notícias e dos debates que a comissão editorial selecionara para o primeiro número. Não sei que destino teve o material excedente, pequena reserva para um segundo número.

Um fiapo de lembrança ameaçou despontar quase quarenta anos depois. No início de 2000, a viúva de Décio Bar, falecido em 1989, reuniu alguns dos ex-novíssimos (Cláudio Willer, Álvaro Alves de Faria, Eunice Arruda, Roberto Bicelli, Roberto Piva, talvez outros) e nos propôs que pensássemos numa homenagem ao poeta, com a publicação dos inéditos que ele havia deixado. Numa das pastas que nos mostrou, reconheci de imediato a cópia da projetada revista: o mesmo papel couché, formato ofício, a mesma inconfundível tipologia da ibm cedida por Massao Ohno, o mesmo número zero da revista jamais publicada e esquecida aqueles anos todos. Como teria ido parar entre os inéditos de Décio Bar, ninguém soube dizer. Nenhum dos presentes tinha lembrança da antiga revista. De Franceschi não pôde comparecer, Celso Paulini falecera em 1992.

De minha parte, precisei topar repentinamente, tantos anos depois, e onde menos esperava, com o espectro da sonhada revista para atinar com o que se passara. Em 1963, não sei se exatamente essa, mas uma boa revista era de fato uma necessidade e talvez tivesse sido um marco decisivo. As circunstâncias, porém, não eram propícias. Eu pessoalmente nunca soube por que não chegou a ser impressa. Massao Ohno teria suas razões, não sei se comerciais ou outras, e não insisti. Os demais, a começar pela improvisada comissão editorial, logo se desinteressaram e ficou por isso mesmo. Se a revista tivesse saído, e durado pelo menos três ou quatro números, algo teria mudado? Imagino que não: as condições eram francamente desfavoráveis.

Vivíamos então um momento de urgência, todos ou quase todos empenhados na participação ou no engajamento de efeito imediato, como tínhamos aprendido com Sartre et caterva. Em vez de dormir o sono do esquecimento nas páginas dos livros, a poesia devia ser gritada nas ruas. Era no que vários de nós acreditavam. Eduardo Alves da Costa comandava uns recitais no Teatro de Arena; Carlos Soulié do Amaral e Álvaro Alves de Faria organizavam uns “comícios poéticos” na Praça da Sé; Lindolf Bell lançaria logo em seguida a sua rumorosa “Catequese poética” e Álvaro de Faria, o seu não menos rumoroso “Sermão do viaduto”. Era um momento de extrema urgência e uma revista como aquela demandaria outros cuidados: distanciamento estratégico, reflexão mais serena, aprofundamento e maturação das posições já tomadas ou por tomar. Talvez tenha sido essa a verdadeira razão pela qual não vingou.

 

 

 

 

 

 

 

 

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Carlos Felipe Moisés é autor de, entre outros livros de poesia, Círculo imperfeito, Subsolo, Lição de casa e Noite nula. Como crítico literário, publicou, entre outros: Literatura, para quê?, O desconcerto do mundo e Poesia & utopia. Traduziu Sartre (O que é a literatura?), Marshall Berman (Tudo o que é sólido desmancha no ar), Proust (Retratos de pintores e músicos) e vários outros ensaístas e poetas contemporâneos. Especialista em Fernando Pessoa, sobre quem publicou vários livros, é responsável pela curadoria da exposição “Fernando Pessoa: plural como o universo”, no Museu da Língua Portuguesa (SP), no Centro Cultural Correios (RJ) e na Fundação Gulbenkian. E-mail: carlos_moises@uol.com.br




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