Uma farândola de infinito e eternidade


Uma farândola de infinito e eternidade – 35 anos da vida de Haňt’a

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“Livros raros perecem na minha prensa,

sob minhas mãos,

contudo não consigo deter o seu fluxo:

não passo de um açougueiro refinado”

(Haňt’aUma solidão ruidosa)

 

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Sobre Bohumil Hrabal, o também escritor Tcheco Milan Kundera foi categórico: “Uma das encarnações mais autênticas da Praga Mágica”. Tal assertiva diz muito sobre a sofisticação do Realismo Mágico em Uma solidão ruidosa, um dos últimos trabalhos de Hrabal, nascido em 1914, na cidade de Brno-Zidenice, na antiga Tchecoslováquia, morrendo em Praga no ano de 1997. Uma solidão ruidosa foi publicado em 1976, no auge da repressão na URSS, da qual fazia parte a Tchecoslováquia. Uma questão que merece destaque é que, assim como o estranho herói da curta narrativa, Hrabal trabalhou em depósito de reciclagem, algo que sentimos na credibilidade das fortes imagens criadas no livro.

Nas linhas iniciais de Uma solidão ruidosa temos a noção exata por qual terreno o narrador Haňt’a nos fará seguir: “Já faz trinta e cinco anos que cuido de papel velho, e essa é a minha love story. Faz trinta e cinco anos que eu compacto livros e papéis velhos, me lambuzando com as letras até eu mesmo ficar parecido com as minhas enciclopédias (…)”. Esclarece-nos também acerca da natureza de seu pensamento, o qual é recorrentemente alusivo através de citações de nomes como Hegel, Goethe, Schiller, Nietzsche, Schopenhauer, Kant, entre outros: “Minha educação ocorreu tão inconscientemente que não consigo dizer bem quais pensamentos vêm de mim e quais vêm dos livros (…)”. E, por fim, demonstra a forma com a qual encara a leitura: “Pois quando leio, não é apenas ler o que faço; eu jogo uma linda frase na boca e a chupo como uma bala de fruta, ou a sorvo como licor, até o pensamento se dissolver em mim feito álcool, infundindo-se no cérebro e no coração e atravessando as veias até a raiz de cada vaso sanguíneo”.

Mas, afinal, quem é Haňt’a, além de alguém que em trinta e cinco anos compactou livros e bebeu cerveja suficiente para encher uma “piscina olímpica”? Um sujeito que habita um conformismo estranho – “essa era a minha sina, pedir perdão, eu até pedia perdão de mim mesmo por ser o que eu era, por minha natureza” –, porquanto aceita a bagatela que lhe é oferecida pelo destino, desculpando-se para tanto com motivos extraídos dos livros e do âmago da atividade que realiza. Parece-nos, contudo, encarar a vida sem consciência plena, capaz de estar permanentemente divagando. Ressalta ligeiro – até por não suportar bêbado – que bebe para que a leitura o impeça de cair num sono profundo ou lhe cause um “delirium tremens”. O contraditório se insere com força na vida de Haňt’a, pois bem o sabemos se comunicando sem cautela, descobrindo que “os céus não são caridosos, nem os céus, nem qualquer homem sensato”, mas poucas palavras são de fato suas, haja vista a confusão gerada a partir da absorção de frases alheias.

Para o leitor que acredita numa solidão seca e má, Haňt’a refuta: “Consigo ficar no meu canto porque nunca estou solitário, mas apenas sozinho, vivendo na minha solidão densamente povoada, uma farândola de infinito e eternidade, e o Infinito e a Eternidade parecem gostar de tipos como eu”. E a todo momento não nos deixa esquecer sua companhia permanente: os livros, bem como a justiça concreta emanada do seu trabalho: trinta e cinco anos salvando toneladas deles, seja vendendo para um professor, doando a um amigo ou guardando dentro de sua valise, levados até seu minúsculo apartamento, e compondo as duas toneladas que praticamente ocupam todos os espaços, inclusive acima de sua cama. Mas nem a nobre razão é capaz de fazê-lo descansado, pois às vezes escuta livros tramando uma vingança em razão dos seus atos. No entanto, quando titubei, não se contém: “no fluxo de papel velho a lombada de um livro raro vez por outra luzirá, e se por um instante eu me afasto, encafifado, sempre volto a tempo de resgatá-lo (…)”.

Para Haňt’a, folhear livros dá sentido a tudo, inclusive ao acúmulo de trabalho, causador da ira de seu chefe, mas nada tão irresistível quanto permanecer imerso com um volume nas mãos, lendo “a primeira frase como uma profecia homérica” e sonhando vivamente “numa terra de grande beleza”. Todo envolvimento sem limites tem um preço – somos levados a constatar.

E é no submundo, no seu mundo, que Haňt’a amolda-se em segurança, pois sabe que há gente sobrevivendo em condições tão precárias quanto as dele e também capaz de pensar. Mesmo descobrindo haver uma guerra – “uma guerra total, humana” – aos seus pés, entre ratos brancos e marrons, “facções organizadíssimas”, pela supremacia dos esgotos de Praga, é com os roedores, “criaturinhas amigáveis”, que se cerca de uma convivência angustiante e estúpida: “(…) uma coisa temos em comum, ou seja, uma necessidade vital de literatura, com preferência acentuada por Goethe e Schiller encadernados em marroquim”. Não bastasse, sua sujeira é cordial ao meio, controlando a higiene com lavagens esporádicas, ainda assim quando dominado por uma “beleza grega”.

Com exceção dos roedores, quase nada alcançamos socialmente na vida de Haňt’a, embora não escapem passagens incomuns: a cremação de sua mãe, atraente pela comparação do procedimento com a engrenagem da prensa hidráulica; a presença de um tio, que mantém uma pequena locomotiva no jardim de casa, pois, aposentado como ferroviário, descobrira ser impossível viver longe do trabalho, despertando em Haňt’a a ideia de fazer o mesmo com a prensa; e Mančinka, uma garota marcada por dois episódios constrangedores, mas que “sem ter conhecido a glória, jamais renunciaria à vergonha”. O resto é composto por arroubos e sonhos, como Erasmo de Roterdã, montado em seu cavalo, perguntando-lhe como chegar ao mar.

Após anos imerso num complexo de Sísifo, Haňt’a se descobre inútil com o surgimento de uma prensa automática capaz de destruir livros em quantidades assustadoras – a qual, na sua imaginação, irá aniquilar a cidade de Praga, com sua tradição e cultura milenar –, além do aparecimento da Brigada do Trabalho Socialista, com seus jovens e eficientes operários, pronta para fazer desaparecer tiragens inteiras de livros em poucas horas. Mas Haňt’a nos tinha alertado: “Já faz trinta e cinco anos que compacto papel velho e, se eu pudesse escolher, faria exatamente o que fiz nos últimos trinta e cinco anos”.

 

 

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TRECHO DO LIVRO:

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1.

Já faz trinta e cinco anos que cuido de papel velho, e essa é a minha love story. Faz trinta e cinco anos que eu compacto livros e papéis velhos, me lambuzando com as letras até eu mesmo ficar parecido com as minhas enciclopédias, e foram bem umas três toneladas delas que eu compactei pelos anos afora. Sou um cântaro cheio de água mágica e pura, basta me curvar e um jorro de lindos pensamentos flui. Minha educação ocorreu tão inconsciente‑ mente que não consigo dizer bem quais pensamentos vêm de mim e quais vêm dos livros, mas foi assim que fiquei em sintonia comigo e com o mundo ao redor nesses últimos trinta e cinco anos. Pois quando leio, não é apenas ler o que eu faço; eu jogo uma linda frase na boca e a chupo como uma bala de fruta, ou a sorvo como licor, até o pensamento se dissolver em mim feito álcool, infundindo‑se no cérebro e no coração e atravessando as veias até a raiz de cada vaso sanguíneo. Num mês normal compacto duas toneladas de livros, mas, para reunir forças para essa devotada labuta, bebi, nos últimos trinta e cinco anos, uma quantidade de cerveja que daria para encher uma piscina olímpica, uma incubadora de peixes inteirinha. Tamanha sabedoria como a minha veio de forma inconsciente, e vejo meu cérebro como uma massa de pensamentos hidraulicamente compactados, um fardo de ideias, e minha cabeça como uma lâmpada de Aladim lisa e lustrosa. Bem mais belos devem ter sido os dias nos quais o único lugar em que um pensamento podia se afirmar era o cérebro huma‑ no, e quem quisesse esmagar ideias tinha que compactar cabeças, mas nem isso teria adiantado, pois os pensamen‑ tos reais vêm de fora e viajam conosco feito a sopa de ma‑ carrão que levamos para o trabalho, ou seja, os inquisido‑ res queimam livros em vão. Se um livro tem algo a dizer, ele queima com uma risadinha silenciosa, pois todo livro que preste se projeta para fora de si. Acabo de comprar uma dessas minúsculas máquinas que somam, dividem e calculam raiz quadrada, uma geringonçazinha menor do que uma carteira, e depois de tomar coragem e forçar a parte de trás com uma chave de fenda, fiquei chocado e me diverti ao não encontrar nada além de uma geringonça ainda mais insignificante — menor do que um selo e mais fina do que dez páginas de um livro —, isso e ar, ar eivado de variações matemáticas. Quando meu olho pousa em um livro real e olha a palavra impressa, o que ele vê são pensamentos descarnados voando pelos ares, deslizando no ar, vivendo do ar, voltando para o ar, pois, no fim, tudo é ar, assim como a hóstia é ar, e não sangue de Cristo. Faz trinta e cinco anos que compacto livros e papéis velhos, vivendo como vivo numa terra que sabe ler e escrever há quinze gerações, vivendo em um reino de outrora onde foi e ainda é costume, uma obsessão, compactar pensamentos e imagens pacientemente na cabeça da população, assim lhes dando alegrias inefáveis e desgraças ainda maiores, vivendo entre gente que sacrificará a própria vida por um fardo de pensamentos compactados. E agora isso tudo se repete em mim. Paralelamente aos trinta e cinco anos de apertar os botões vermelho e verde na prensa hidráulica, passei trinta e cinco anos bebendo cerveja. Não que eu goste, não; detesto bêbados, bebo para me obrigar a pensar melhor, para ir ao âmago do que leio, porque o que leio, leio não por diversão, ou para matar o tempo, ou para adormecer; eu, que vivo numa terra que sabe ler e escre‑ ver há quinze gerações, bebo para que a leitura me impeça de cair num sono eterno, me cause delirium tremens, por‑ que compartilho com Hegel o ponto de vista de que um homem de coração nobre ainda não é um nobre, nem um criminoso é um assassino. Se eu soubesse escrever, escreveria um livro sobre as maiores alegrias e tristezas do homem. Foi nos livros que aprendi que os céus não são cari‑ dosos, nem os céus, nem qualquer homem sensato — não é que os homens não desejem ser caridosos, é que isso agride o bom‑senso. Livros raros perecem na minha pren‑ sa, sob minhas mãos, contudo não consigo deter o seu flu‑ xo: não passo de um açougueiro refinado. Os livros me ensinaram a alegria da devastação: amo temporais e equi‑ pes de demolição, sou capaz de ficar horas observando as bombeadas cuidadosas e coordenadas dos peritos em ex‑ plosões enquanto eles detonam casas inteiras, mandam ruas inteiras pelos ares, aparentando apenas encher pneus. Não me canso desse primeiro momento, aquele que levan‑ ta todos os tijolos, pedras e vigas e depois os faz desabar mansamente, como roupas se esparramando, como um navio a vapor afundando veloz nas profundidades do oceano depois que as caldeiras estouraram. E ali estou eu na nuvem de poeira, na música da fulminação, pensando no meu trabalho lá nas profundezas do porão onde tenho a prensa, aquela na qual já se vão trinta e cinco anos que trabalho à luz de umas poucas lâmpadas elétricas e onde lá em cima ouço passos se movendo pelo pátio, e, por uma fresta no teto, que é também um buraco no meio do pátio, vejo cornucópias enviadas pelos céus em forma de sacas, engradados e caixas derramando a papelada velha, caules de floricultura fenecidos, embalagens de atacadistas, pro‑ gramas de teatro antiquados, embalagens de sorvete, papel de parede salpicado de tinta, pilhas de papel úmido e san‑ grento dos açougues, sobras afiadíssimas dos estúdios de fotografia, conteúdos de cestas de papel de escritórios, in‑ cluindo fitas de máquina de escrever, buquês de aniversá‑ rio e de comemorações há muito passadas. Às vezes en‑ contro um paralelepípedo enterrado num bolo de jornais para fazê‑los pesar mais ou um canivete e uma tesoura jogados fora por engano, ou martelos, ou cutelos, ou cane‑ cas com café preto ressecado ainda dentro, ou ramalhetes de casamento esmaecidos enovelados com coroas para fu‑ nerais, artificiais e fresquinhas. Já faz trinta e cinco anos que compacto isso tudo na minha prensa hidráulica, três vezes por semana tudo é levado de caminhão até o trem, daí até a fábrica de papel, onde eles rompem os fios …

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Mendes Júnior, cearense, é contista, cronista e, nas horas vagas, advogado. Publicou O engraxate e outros suicidas (Expressão Gráfica). E-mail: mendesjus@yahoo.com.br Blog: http://literaturaecultura-mendesjunior.blogspot.com

 




Comentários (1 comentário)

  1. Luana Feitosa, Parabéns, excelente texto.
    11 agosto, 2015 as 21:50

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