Concepção fractal da Língua Portuguesa


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Comunicação inaugural de E.M. de Melo e Castro

 

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Uma concepção fractal da Língua Portuguesa

 

Resumo:  A língua portuguesa é atualmente dispersa geográfica, espacial e culturalmente, podendo considerar-se que o seu uso, quer oral quer escrito, nos oito países que oficialmente a têm como sua, se articula como se de um arquipélago se tratasse. Arquipélago esse em que cada ilha tem a sua dimensão e características próprias, fonéticas, morfológicas, sintáticas e vocabulares, só avaliáveis pelas variações, fracturas e inovações das falas e das escritas dos seus diferentes habitantes. O que no entanto, não prejudica a comunicação, antes a enriquece permitindo, isso sim, considerarmos o todo dessas ilhas, como um fractal em que a auto-semelhança dos falares e das escritas forma uma entidade fraccionada mas organicamente viva e auto-reprodutiva. Daí a intensa inventividade literária, principalmente na poesia.

Palavras chave: Língua, cultura, arquipélago, mar, dispersão, fractal

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Todos sabemos que, atualmente, a dispersão da língua portuguesa, nosso meio de criação e de comunicação, é geográfico-espacial, porque ela é usada, falada e escrita, em vários países e em vários continentes. Mas, também, é dispersa temporalmente, porque os tempos históricos dos usos e das transformações do português são diferentes, de país para país, sem que isso afete a propriedade com que cada um deles a utiliza. E é ainda dispersa culturalmente, porque cada país a utiliza a seu modo, para pensar, criar, dizer e comunicar as suas vivências e as suas circunstâncias, passadas ou presentes, bem como formular os seus  projetos de futuro.

Todas essas circunstâncias se repercutem na diferenciação vocabular e na dispersão fonética, morfológica e sintática, sem que isso afete nossa mútua compreensão, não precisando de dicionários para traduzirmos as nossas diferenças. Antes as consideramos como enriquecedoras de um complexo sistema linguístico que alimentamos mas também do qual nos nutrimos.

Creio até que esses fatores dispersivos nos equipam com uma experiência rica que nos permite delinear uma concepção contemporânea de espaço linguístico e cultural, propiciando inusitadas possibilidades de inovação e de criação linguístico-poética.

Nesta perspectiva, se procurarmos um modelo metafórico para delinearmos as nossas distâncias e as nossas proximidades, talvez numa primeira aproximação encontraremos a ideia de “arquipélago” como suficientemente sugestiva e adequada.

Comecemos por considerar que um arquipélago é um conjunto de ilhas, o que não quer dizer que algumas ilhas esparsas formem necessariamente um arquipélago. Creio que é preciso algo mais, qual seja: uma espécie de força de gravidade que condicione essa dispersão. No nosso caso, essa força de gravidade será certamente uma noção ampla e universal de língua portuguesa e do que com ela fazemos ou não fazemos.

Falar de ilhas e de arquipélagos pressupõe a existência de uma larga quantidade de espaço, de que a água é, ao mesmo tempo, matéria física e metáfora, possivelmente um mar ou um oceano; água essa que tanto une como separa, formando-se o arquipélago no espaço conceitual de quem o imagina ou vê como entidade coerente. É tal como as estrelas e as constelações, no espaço sideral. É tal como com a língua portuguesa e os oito países que a detêm e utilizam como instrumento privilegiado, cada um constituindo uma ilha e sonhando de maneira diferente com a concepção de um arquipélago em que o português seja o tecido que envolve e possibilita a comunicação, e não o mar que separa, distancia e estranha as falas dos falantes.

Mas, em si própria, cada uma dessas ilhas é um micromundo fracionado e disperso, uma vez mais, por uma diferente e anterior História, por diferentes falares, dialetos e até línguas próprias, por diferenciados espaços geográficos, por culturas ancestrais e por combinações étnicas as mais diversas. Cada ilha será assim um micromodelo do próprio arquipélago a que pertence. Micromodelo que, por reproduzir em diferente escala as características fracionais do todo do arquipélago, poderá ser considerado como auto-semelhante.

Tal concepção de auto-semelhança vem alterar a metáfora do arquipélago e projeta-nos numa outra metáfora bem complexa, mas também mais adequada, segundo penso: a metáfora de estrutura “fractal” como descritora da atual situação da língua portuguesa.

Mas, no caso de fenômenos culturais e particularmente, linguísticos, o que poderá constituir uma concepção fractal, para além de ser mais uma apropriação metafórica de um conceito científico matemático?

Benôit Mandelbrot, o matemático inventor da geometria fractal, já na segunda metade do século XX, chamou desde logo a atenção para a natureza caótica, suscetível de descrição fractal, de numerosos fenômenos naturais, tais como: os movimentos brownianos, a variação da forma e do volume das nuvens, a ondulação da superfície do mar, a agitação das folhas e dos ramos das árvores impelidas pelo vento, as variações climatéricas, o pingar de uma torneira, a turbulência da água fervente, o sistema de ramificações irregularmente simétricas dos vegetais; e, principalmente, para a impossibilidade de usando os recursos da geometria euclidiana, medir-se com rigor o perímetro de uma ilha. Então, só a geometria fractal o poderá fazer, uma vez que o recorte costal das ilhas é de natureza iterativa ou auto-semelhante: as ilhas não são figuras geométricas perfeitas, mas por isso mesmo, são fractais, isto é, não tem dimensões inteiras. O mesmo acontece com muitos outros fenômenos naturais ou não naturais que têm escapado a explicações linearmente racionais, mas que hoje podem ser simulados matematicamente no computador.

Não me parece difícil extrapolar para o mundo das ciências humanas e, particularmente, daquelas atividades a que chamamos linguísticas, como a fala, a escrita, a comunicação, a informação, a criação textual, a invenção do novo poético ou o exercício do raciocínio e da capacidade formuladora de pensamentos.

De fato, quem poderá avaliar e medir rigorosamente todos esses fatos humanos e culturais? Eles escapam, tanto quanto o perímetro de uma ilha ou o volume de uma árvore ou de uma nuvem, a métodos de medição linear e de rigor aritmético. Todos são fenômenos ditos caóticos ou seja, fractais.

Igualmente, quem poderá descrever e “medir”, direta e linearmente, as características da fala dos habitantes de uma região, de uma ilha ou de um país? Ou a sua capacidade inventiva, criadora e transformadora, que a prática linguística em si comporta, diferenciadamente, da dos falantes da mesma língua, mas de outra região, de outra ilha ou de outro país?

Penso mesmo que a esta luz se impõe a consideração de uma “linguística fractal” e que a língua portuguesa, pela sua dispersão em arquipélago auto-semelhante pelo mundo, necessita ser estudada à luz de conceitos diferentes dos até agora usados, como seja o da posse da língua, da existência ou não de normas – ou da Norma – ou da decantada pureza da língua, que tantos equívocos têm infrutiferamente gerado.

Uma concepção fractal da existência do português no mundo pode, pelo contrário, levar-nos a conclusões interessantes, tais como, por exemplo, a de que o perfil ou “perímetro” linguístico de cada “ilha” é uma entidade fragmentada mas única – unidade essa que é constituída por cada vez mais pequenas unidades iterativas, isto é, que se repetem, cada vez mais pequenas, mas sempre semelhantes, até o infinito…

Por seu lado, no caso da língua falada e escrita, essas unidades transformadas mas semelhantes, iniciam-se no universo microlinguístico do indivíduo falante ou escrevente, com suas idiossincrasias e transgressões criativas e poéticas, ou através das práticas e apropriações linguísticas de grupos sociais delimitados, até atingirem, por disseminação iterativa, o nível macrolinguístico de um grupo étnico, de uma nação ou de uma cultura.

A existência, portanto, de uma só norma para todas as “ilhas” do arquipélago é impossível, porque cada uma produz as suas próprias unidades iterativas no exercício das funções linguísticas que caracterizam e modelam o seu cotidiano falar, escrever, criar e comunicar. Existe uma polivalência linguística que caracteriza o nosso arquipélago, e essa polivalência é não linear, mas sim de natureza fractal, isto é, fragmentada, iterativa e auto-semelhante, como muito sucintamente acabei de procurar descrever.

Exemplos correntes podem e devem ser pesquisados nos modos de falar e escrever o português em cada um dos países do nosso arquipélago. Agora, limitar-me-ei apenas a referir alguns, quer orais quer literários, aqui trazidos sem nenhuma sistematização científica, tais como o uso no Brasil, no registro popular, mas já invadindo textos eruditos, de formas do particípio passado como pego e escapo, em vez de pegado e escapado; ou o uso da crase “à” apenas por razões fônicas (por exemplo, na numeração dos quartos em hotéis: “de 120 à 135”), confundindo-a com a preposição “a” ou com o artigo “a” que, no Brasil, são abertos e, em Portugal, fechados; ou a utilização de verbos no infinitivo, de uma forma metaforizada, com muito mais frequência que em Portugal; ou a não concordância entre plural e singular, como por exemplo em “vende-se tapetes persa” ou no muito popular “um chopes e dois pastel”. Recordo até um exemplo visto e ouvido na televisão, em São Paulo,  no decorrer de um inquérito de rua. A pergunta era “Do que mais gosta na vida?”. Ao que um moço com cerca de 20 anos respondeu sorrindo alegremente: “As mulher bonito!”. Também a introdução de vogais desfazendo grupos consonantais, em hipinotismo, obijeto, obissoleto caracteristicamente na cidade de São Paulo; ou ainda, como no poema de Oswald de Andrade, a oralidade prevalecendo sobre a norma culta:

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PRONOMINAIS
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Dê-me um cigarro

Diz a gramática

Do professor e do aluno

E do muito sabido

Mas o bom negro e o bom branco

Da Nação Brasileira

Dizem todos os dias

Deixa disso camarada

Me dá um cigarro

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Tais procedimentos, longe de serem erros e apenas meras fugas à norma, são, isto sim, manifestações da natureza fractal da nossa língua, que por iteração se repetem desde o nível microlinguístico até o macrolinguístico, como já referido, tornando-se, a pouco e pouco, prática aceite e, por isso, caracterizadora e diferencial, como, por exemplo, o uso de sentidos contrários para certas palavras (“pedregulho”, no Brasil, quer dizer “pedras pequenas”, enquanto que, em Portugal, significa “uma pedra grande e disforme”); ou o uso de verbos pouco frequentes no falar de Portugal, como “trafegar” ou “machucar”; ou de formas verbais pouco recomendadas em Portugal, como é o caso do gerúndio, intensamente usado e bem, no Brasil; ou a colocação do pronome reflexivo antes do verbo, por exemplo em “se diz”, enquanto em Portugal seria “diz-se”.

Nos países africanos de língua portuguesa, começam a registrar-se muitas variantes, como por exemplo nas construções: “A pessoa não nasce ninguém”, “Os pais escondem os filhos a verdade” ou “Eles bateram o miúdo”; respectivamente por: “A pessoa nasce alguém”, “Os pais escondem dos filhos a verdade” e “Eles bateram no miúdo”, tal como observa Perpétua Gonçalves, em Português de Moçambique, uma variedade em formação (Maputo: Universidade Eduardo Mondlane, 1996). A mesma autora assinala, também, uma abertura vocálica dos dois “e” de “telefonar”, assim como o emprego da forma reflexa “lhe” do pronome pessoal “o” em “Alguma coisa lhe atraiu” e “A mãe meteu lhe na escola”, construções que também se encontram no Brasil.

Mas a questão parece estar em saber se já está em formação uma variante comum a todos os países africanos que usam o português como língua oficial, ou se cada país virá a formar sua variante, segundo condições culturais e ambientais próprias. Penso que isto é o que muito provavelmente já está a acontecer.

Mesmo no pequeno espaço de Portugal, no continente europeu, as variações vocabulares e fonéticas são muito marcadas de região para região, sendo as diferenças usadas como características de identidade regional, como por exemplo as pronúncias marcadamente diferentes de Lisboa e do Porto, ou do Alentejo e da Beira Alta.

Mas se considerarmos os arquipélagos da Madeira e dos Açores, teremos de admitir que as diferenças fonéticas e prosódicas são muito acentuadas e marcantes.

Um escritor como Aquilino Ribeiro, nos anos 1920 e 1930, usou inventivamente as diferenças regionais de vocabulário e acento, para marcar culturalmente (nós diremos hoje: fractalmente) o habitat e a diferente qualidade humana dos seus romances situados na Beira Alta, região do centro-norte de Portugal, sendo até acusado de inventar uma língua, fazendo literatura à custa do falar do povo! Ao que terá retorquido: “Escrevo palavras, e as palavras são animais!”… ora os animais têm todos uma estrutura orgânica fractal!

Também a intensa e quase espontânea formação de neologismos é um sinal de natureza fractal da língua portuguesa, o mesmo se passando no Brasil com a adoção de topônimos e de radicais de línguas indígenas. Um exemplo bem sugestivo é o uso do sufixo tupi –rana, que tem o sentido de “como se” e exerce uma função modalizante de substantivos. Tal como fez João Guimarães Rosa no título de uma bem conhecida obra sua: Sagarana, isto é, “como se fosse uma saga”, fato referido por Eni Pulcinelli Orlandi e Tânia C. C. de Sousa, no artigo “A língua imaginária e a língua fluída”, incluído no volume Política linguística na América Latina (Campinas: Pontes, 1988. P. 27-40).

Tais práticas possuem uma enorme entropia, ou seja, um elevado grau de desorganização instável, sendo caracteristicamente fractais. A invenção, a transgressão e o novo atingem o seu maior grau de probabilidade se comparados com maneiras mais convencionais e estáveis de falar e escrever.

É precisamente o que acontece com as atuais literaturas dos países africanos de língua portuguesa, notavelmente em Angola, tanto com romancistas como com poetas. A partir, principalmente, de Luandino Vieira, criam-se verdadeiras “fracturas” no tecido ficcional e imagético em português, com a introdução de vocábulos, lexemas e até curtos fragmentos discursivos de línguas africanas, evidenciando uma concepção interlinguística e intertextual que transforma o texto desse autor num objeto fractal. Também mais recentemente, Pepetela cria personagens a quem atribui nomes assinalando diversas características, usando diferentes línguas angolanas, assim criando poliedros irregulares de significação interlinguística possuindo uma enorme energia de tipo subliminar e poético! E Mia Couto se reclama da oralidade de Moçambique na sua invenção vocabular. Mas também João Guimarães Rosa várias vezes referiu que gostaria de escrever numa língua em “estado gasoso”, como por exemplo numa carta a João Condé sobre a génese de Sagarana, publicada no Jornal de Letras e Artes de 21 de julho de 1946, ao referir-se ao seu ideal de rigor e riqueza da língua. Assim diz Rosa:

Mas, ainda haveria mais, se possível (sonhar é fácil, João Condé, realizar é que são elas…) além dos estados líquidos e sólidos, por que não tentar trabalhar a língua também no estado gasoso?!”

É que, como todos sabemos, o estado gasoso caracteriza-se pela dispersão das moléculas com energia expansiva e pela complexidade que daí deriva. Aplicado à língua e à escrita pode pensar-se que o estado gasoso corresponderá ao uso de uma energia cinética da língua concebida como ciência probabilística, quer nas associações verbais e fonéticas, quer na interatividade sintática, quer na polissemia em que o texto se materializa com características fractais.

É o que também José Saramago realiza em alguns dos seus romances, ao suprimir nos diálogos, os sinais de pontuação indicativos do sujeito falante, obtendo um politexto em que palavras e vozes adquirem a qualidade fractal pois a auto-semelhança se expande como se se tratasse de moléculas de um gás em expansão semântica e comunicativa, produzindo imprecisão e ambiguidades !

Mas é na criação poética que iremos encontrar um mais difundido carácter fractal principalmente naquela poesia que se reclama do “experimental” como sua natureza textual, tanto no Brasil como em Portugal.

Nas literaturas em português dos países africanos de língua oficial portuguesa, notam-se também, como já foi referido, práticas linguísticas que são nitidamente diferenciais, sendo algumas de origem milenar, uma vez que as línguas nativas africanas são paratáxicas tal como o Tupi Guarani no Brasil.

O que quer dizer que  predominam as construções paratáxicas, ou seja, por justaposição, enumeração e não subordinantes.

Note-se, como elemento comparativo, que a língua portuguesa é fortemente hipotáxica e que, por isso, qualquer elemento paratáxico nela introduzido adquire um surpreendente valor estético e inovador, e, por isso, poético.

“A vingança da parataxe” é uma sugestiva expressão do poeta brasileiro Décio Pignatari, um artigo polêmico, publicado no final dos anos 1990, no jornal Folha de S. Paulo. Com ela, Pignatari queria acentuar a importância crescente da parataxe na língua falada e escrita contemporânea, sob a pressão da sociedade da informação, após um longo uso da hipotaxe como figura sintática fundamental nas línguas ocidentais, principalmente latinas. Esse retorno da parataxe foi antevisto pelos poetas, como é de sua função, principalmente a partir dos anos 1960, com a Poesia Concreta e a Poesia Experimental, em língua portuguesa.

A parataxe opõe-se à hipotaxe na organização sintática da frase e no discurso – e implica mesmo uma forma característica de elaboração do pensamento. É que a parataxe, contrariamente à hipotaxe, não estabelece entre dois termos contíguos nenhuma relação de dependência. Enquanto a relação hipotáxica, pelo contrário, é hierárquica, ligando dois termos que estão em patamares diferentes de derivação, por exemplo: principal/subordinado, determinado/determinante.

Mas, se a parataxe não estabelece nenhuma relação de dependência, nem mesmo nas relações sintáticas, predicado, complementos, que tipo ou tipos de relação estabelece entre os termos, palavras ou signos, para poder constituir uma fala, uma escrita ou mesmo uma poética?

As relações paratáxicas podem, como sabemos, organizar-se dos seguintes modos:

•       Proximidade

•       Coordenação

•       Simultaneidade

•       Combinatória

•       Sobreposição

 

Todas essas vias de parataxe contribuem para a obtenção de signos complexos, polivalentes, multissemânticos, gasosos, como diria Guimarães Rosa… e certamente fractais, como temos vindo a sublinhar.

É que a parataxe tende mesmo a fundir, num só espaço polivalente, os eixos sintagmático (horizontal) e paradigmático (vertical) definidos por Saussure, criando uma construção “sintoparadigmática”, onde a comunicação se realiza instantânea e sinestesicamente, isto é, poeticamente, como disse Roman Jakobson ao conceber a poesia como “a projeção do eixo paradigmático sobre o eixo sintagmático”.

Repito e sublinho que considero a parataxe, como característica do discurso oral contemporâneo que as poéticas experimentais em português, a partir dos anos 1950 e 1960 souberam antecipar aos meios de comunicação digitais.

Mas deve ser sublinhado que tais práticas linguísticas constituem pontos de ruptura a que não hesitarei em chamar de fractais, pelas razões já expostas e pela força renovadora que possuem no todo do tecido poético da língua portuguesa. É o que acontece em muitos poemas de Ruy Duarte de Carvalho (Angola) e no longo e extraordinário poema de Arlindo Barbeitos, Angola Angolê Angolema, para só citar dois exemplos de entre os muitos que também se poderiam referir de Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe ou Cabo Verde, mas também na poesia do português António Aragão e na minha própria poesia combinatória dos anos 60 e 70 do século XX.

Do Brasil destacarei, pela sua alta qualidade poética, a recentíssima obra O RETRATO DO ARTISTA ENQUANTO FOGE de António Vicente Serafim Pietroforte, em que autor mistura textual e sabiamente, poesia conceptual, visual, lírica, erótica, sarcástica, de intervenção, neobarroca e convencional, constituindo um mapa fractal da mais rigorosa contemporaneidade dispersa da caótica vida da São Paulo, cidade! Não só a sintaxe é paratáxica como a organização do livro o é.

A parataxe pode considerar-se, por tudo o que ficou referido, como estabelecendo inesperadas pontes e pontos de contato entre as diversas ilhas do nosso arquipélago linguístico e cultural, desde as fontes mais remotas da oralidade africana, até as mais radicais práticas de invenção poética experimental, principalmente na segunda metade do século XX, em língua portuguesa, estendendo-se, muitas vezes como presença subliminar, até as mais jovens gerações do presente século XXI.

Tais fenômenos são claramente fundadores de novas literaturas!

Para terminar esta minha exposição sobre uma possível concepção da língua portuguesa sob o ponto de vista da teoria fractal, penso que é necessário avançar além das razões críticas e teóricas em que se apoia tal opção, também tendo em consideração as suas consequências tanto na comunicação oral intrapopular que individualiza cada ilha do nosso arquipélago, como intercultural das diversidades assinaláveis e caracterizadoras das unidades culturais, digo dos 8 países, mas também das comunidades espalhadas pelo Mundo que têm, cada uma a seu modo, o português como língua sua.

É que assim, em vez de se procurar e até encorajar uma utópica unificação, fica exposta, e justificada cientificamente, a natureza  fragmentária da utilização diária da língua, mas também das diversas inventivas poéticas em português culto, que também caracterizei como poéticas fractais, porque essa teoria se aplica a tudo o que é vivo e também humano, descrevendo rigorosamente a situação vivencial tanto dos falantes como dos escritores que espalhados pelo mundo têm o português como seu instrumento criador.

É que, penso que não se pode isolar o estudo da língua do estudo da literatura, pois ambas se espelham uma na outra, sendo a literatura um modo de pesquisar os possíveis caminhos para ampliar o conhecimento humano quer individual quer coletivo, quer do Eu, quer do Outro, contemplando a diversidade e a inovação, como instrumentos linguísticos únicos mas polivalentes.

Estes são os objetivos e as razões desta minha comunicação.

 

 

 

Adenda dirigida às autoridades da Cultura e Ensino do Brasil:

Sem favor, não me venham dizer que não vale a pena ler e estudar todas as literaturas escritas em português, em todos os países, lugares, latitudes, longitudes e em todos os tempos, incluindo em pé de igualdade a literatura portuguesa…

 

 

[Fotos do evento, aqui]

 

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E.M. de Melo e Castro

São Paulo, Abril / 2016

 




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