Um sutil mapeamento dos espólios afetivos



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Durante mais de uma década o ex-publicitário paulista (nascido mineiro em Araxá) Evandro Affonso Ferreira foi gerente de livraria e dono dos sebos “Sagarana” e “Avalovara”, cujos espaços converteram-se em ponto de encontro de amigos e escritores no bairro de Pinheiros. Por sua ligação visceral com a palavra, dedicou-se a explorar o diversificado universo do nosso idioma. Meio escafandrista, meio arqueólogo e quixote, alimentou seu dicionário particular após mergulhar em livros antigos, prospectando uma dicção inusitada e pouco corrente, resgatando expressões singulares que haviam caído em desuso ou no esquecimento. Desse léxico, garimpou termos que utilizaria no título de alguns de seus romances e como recurso semântico capaz de comunicar toda a carga de impacto e estranhamento dos dilemas humanos que pontuava em sua ficção.

Autor de obras originais, detido na linguagem e numa prosa de atmosfera e viés metalinguístico mais do que no enredo, sobre os dramas pungentes que escreveu incorporou uma matriz literária também desconcertante, criando uma espécie de estética do desassossego. Daí resultam o minimalismo estiloso dos contos de Grogotó (2000) e a temática escatológica e de construção refinada dos romances Araã! (2002), Erefuê (2004), Zaratempô (2005) e Catrâmbias (2006). Por esse conjunto recebeu de Millôr Fernandes o epíteto de “o vivificador das palavras”, genializando suas extrações do aluvião vernacular.

O seu processo criativo sofreu uma profunda guinada, representando verdadeira metamorfose formal e temática com a publicação de Minha mãe se matou sem dizer adeus (Ed. Record, 2010), primeira obra de uma trilogia existencial que abordará os excluídos afetivos, psicológicos e sociais, abstraindo-se da escrita radical e hermética dos livros anteriores, interessado apenas no homem e seu destino.  Recebido com entusiasmo pela crítica, conquistou o prêmio de melhor romance da APCA-2010, sendo ainda finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura. Retrata as inquietações de um narrador octogenário, nostálgico, deslocado e assíduo cliente da confeitaria de um shopping que, enquanto espera a morte, recorre às lembranças de sua vida, dialoga telepaticamente com os clientes e rumina a dor que o atormenta desde o suicídio da mãe.

Retomando a preocupação com o espólio das quedas e fracassos, lançou recentemente O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam, finalista do Prêmio Portugal Telecom 2013. Dessa escrita sofisticada, que mistura ironia e lirismo, emerge um narrador erudito que, tragado pelas contingências de uma débâcle pessoal, rompe com sua estabilidade material e psíquica e vira um sem-teto, após ser abandonado pela esposa, que deixou-lhe um bilhete lacônico e devastador: “Acabou-se: adeus”.

Afundado no pesadelo de seu desmoronamento, esse ser errante transforma-se num Sísifo obstinado, carregando nas costas as pedras de uma obcecada, mas ilusória, esperança do retorno da amada, conhecida apenas pela letra “N” grafitada nos muros da cidade. Para a absorção dolorosa de sua realidade, ele se nutre e consola-se nos próprios delírios entoando um adágio, que repete como se fosse um refrão “ela virá, eu sei”.

Sobrevivendo debaixo de um viaduto, convive com os seus próprios escombros e os destroços físicos e humanos de uma metrópole maltrapilha como ele, dividindo sua angústia com outras figuras apartadas. A relação é permeada por um discurso erudito e revelador de uma aguda observação do quotidiano, partilhada com interlocutores imaginários – o “senhor”, a “mulher molusco” e o “menino borboleta”, habitantes de sua íntima periferia. Em seu trânsito onírico recorre à reflexão filosófica sobre sua decadência e seus despojos por meio de alusões aos adágios do filósofo holandês, senha com a qual enfrenta a dureza dessa aniquilação, até o momento em que, derrotado pela insanidade, vê sua mente ser devorada pelos ratos, fim de toda a esperança.

Metáfora do sofrimento e da decrepitude individual numa sociedade fetichizada pelo absolutismo da tecnologia e do mercado, que avilta os sentimentos e banalizam os sonhos, a vida e a morte, o romance de Evandro Affonso Ferreira é também uma viagem sensível e poética à dimensão trágica da nossa própria condição e um emocionado elogio da loucura que se esconde em nós.

 

 

 

 

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Ronaldo Cagiano é autor de “Dicionário de pequenas solidões” (contos, Língua Geral, Rio, 2006) e “O sol nas feridas” (poesia, Dobra Ideias, SP, 2011), organizou a antologia “Todas as gerações – o conto brasiliense contemporâneo” (LGE, DF, 2006). Vive em SP desde 2007. E-mail: ronaldo.cagiano@caixa.gov.br

 




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