Um encontro com Koellreutter


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Anotações  de um curso ministrado pelo professor, flautista, compositor e regente alemão Hans-Joachim Koellreutter (falecido em 2005): Estilo e Estética da Música Ocidental no séc. XX.

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O agora velhinho, Koellreutter, tinha chegado ao Brasil em 1937 – e por aqui ficou – trazendo consigo uma formação tradicional europeia. Foi aluno de Kurt Thomas e Hermann Scherchen e conseguiu aliar o rigor clássico de um Hindemith com as experimentações harmônicas e formais do dodecafonismo. Tudo isso eu fiquei sabendo aos poucos. No começo, só sabia que o ‘tipo’ tinha dado aulas para o Tom Jobim e para outro Tom, o Zé.

A lista de alunos seus foi aumentando à medida que minhas informações musicais se solidificavam. Guerra Peixe, Cláudio Santoro, Edino Krieger, Olivier Toni, Severino Araújo, Moacyr Santos, K-chimbinho, Cipó. Todos esses, e muitos mais, foram seus alunos. E agora eu estava ali na sua frente, meio penetra, meio sem saber direito o que buscava, muito menos o que iria encontrar. Eram muitos na sala, mas o silêncio era reverencial.

As certezas que não deixara para trás, ao entrar naquela sala, seriam todas derrubadas pelo velhinho que já havia morado no Japão e na Índia. Da Índia ele contou que após chegar com a esposa ao hotel foi direto para uma apresentação de música clássica indiana. Era fim de tarde e, depois de muitas horas no avião, ele estava muito cansado. Ficou ouvindo durante uma hora. A audiência quase que não se mexia. Parecia em transe. Ele não aguentou. Cochichou para a esposa que estava indo pra cama. Ela ficou. Só voltou para o hotel na manhã seguinte. O concerto durara a noite toda e tinha sido uma manifestação estética totalmente diferente daquelas vivenciadas por eles até então. Ela não conseguiria dormir.

O primeiro conceito insinuava-se sutilmente: estética. E logo veio a primeira definição conceitual: “Estética é uma parte da filosofia que estuda as condições e os efeitos das atividades artísticas. É um estudo racional e fenomenológico da expressão artística, quer eventuais possibilidades (estética objetiva); quer evento ou diversidade de emoções e sentimentos que suscita no homem (estética subjetiva)”. E arrematou dizendo que não existe objetividade absoluta; toda objetividade teria um mínimo de subjetividade.

Para ele havia dois tipos de estética: a estética relativista e a fenomenológica. Na relativista parte-se da premissa de que os componentes da composição artística não podem ser considerados independentes um do outro. Baseia-se no conceito da física de que o tempo e o espaço são grandezas inter-relativas. Na fenomenológica estuda-se a sensação causada no ouvinte por uma ocorrência musical (que é tudo o que ocorre numa partitura, até mesmo um ruído).

Concluiu o raciocínio dizendo que cada artista tem sua estética pessoal e com ela marca seu estilo. Um artista que não tem estilo próprio não é um artista. O artista é um aventureiro.

O segundo toque também foi dado sutilmente. Noção de tempo. Noção basilar na música. Se ela mudar tudo mudará, desde a forma como será criado, como será executado e como será apreendido o discurso musical. Isso mesmo: discurso. Ele foi logo dizendo que embora se costume dizer que a música é uma linguagem, ela em essência não o é. Ela se serve de uma linguagem para criar o seu discurso. Para mim parecia ser a mesma coisa, mas ele insistia que não era. E já foi pedindo pra que anotássemos outra definição, “polissemia é um processo de multissignificação onde cada letra é um ícone intersemiótico que explode em inumeráveis significantes”. Falou pausadamente para que anotássemos. Ele parecia fazer questão de que anotássemos, sabendo que todas as informações que nos passaria necessitariam de tempo para serem digeridas.

Mas o que teria a ver esse conceito aparentemente linguístico com a música? Ele firmava pé, a música é uma arte que faz uso de uma linguagem, disse, e tascou mais uma definição para ser anotada: “Arte é a atividade que supõe a criação de sensações, emoções e estados de espírito, em geral de caráter estético, assim como processos sensoriais conscientes que proporcionam ao ser humano o conhecimento e a vivência do mundo externo.” Nossa!, agora complicou. Ele ligava um conceito no outro. Pensava como um fractal.

Mas, professor, voltemos à linguagem. A música, então, não é uma linguagem? “Não”. E toma outra definição. “Entende-se por linguagem um sistema de signos estabelecidos naturalmente ou por convenção, que transmite informações ou mensagens de um sistema cibernético (sistemas cibernéticos podem ser orgânicos, sociais, sociológicos, técnicos, ecológicos). Por exemplo, a linguagem dos animais; dos computadores; dos sinais de trânsito; linguagem científica, artística e outras.” Cacilda, sistema cibernético?

Ele estava dizendo (eu acho) que a música usava um idioma, o idioma musical, e que os idiomas musicais são linguagens específicas. Na estética musical o idioma usa um vocabulário e uma sintaxe. O vocabulário chama-se repertório. E a sintaxe? Não perguntei… me empedrei.

Os idiomas são abraçados pelo o que ele chamou de estilo. Concluiu o raciocínio, para mim um tanto nebuloso, dizendo que os estilos se caracterizam pelos idiomas que utilizam. Mas o que seriam estilos? Claro que ele não iria deixar passar um conceito sem destrinchá-lo. Isso, notei, era uma característica de sua forma de pensar e de ensinar. Partia sempre do conceito, fazia um raio-X dele e depois ia tirando suas consequências lógicas (e ilógicas). Bem alemão, pensou o baianinho aqui.

Lembrei de uma definição de Hitchcock sobre estilo que não me atreveria a falar em voz alta: “Estilo é plagiar a si mesmo”. Se essa definição fosse verdadeira, então, o Jorge Benjor seria o mestre do estilo. Um verdadeiro artista. E realmente ele o era, pensei comigo, mas continuei calado. O velhinho tinha me fisgado e o melhor era continuar a ouvi-lo. E ele já estava definindo o que seria estilo: “Entende-se por estilo, um conjunto de características que une e ao mesmo tempo separa a produção artística de países ou e artistas (que são personalidades individuais). Une e separa ao mesmo tempo.” Que sotaque divertido. Devia ser parecido com o sotaque da professora naquele livro do Mário de Andrade. Acho que era “O banquete”, ou seria “Amar, verbo intransitivo”?

Para ele havia dois tipos de estilos. Os inovadores e os restauradores. Nesse momento fez questão de frisar que gêneros não devem ser confundidos com estilos. Por exemplo os gêneros da música clássica e da música popular não deveriam ser confundidos com estilos. Agora ele parecia um Pound  pensando a música.

Os estilos inovadores apresentavam sempre um novo repertório e uma nova sintaxe, um novo repertório de signos e sinais. Mas o que era sintaxe, mesmo? E lá vai ele definindo o que é signo e o que é sinal. Eu estava cansando de anotar…

Os estilos restauradores ou restaurativos eram aqueles que revalorizavam o idioma e a sintaxe tradicionais.

Já era quase meia-noite e o velhinho não parava. Alguém veio lhe avisar que já estavam para apagar as luzes. Ele ficou decepcionado, mas conformou-se. Continuávamos na próxima semana. E não se esqueçam, disse, questionem tudo, tudo. Ele gostava mesmo desse exercício.

Fui pra casa naquela noite reverberando frases e conceitos enunciados com um sotaque arrastado nos erres. Tudo bem, eu ia ter uma semana pra digeri-los.

“Não existe erro absoluto em música. Pode haver erro relativo ao estilo da época.”

“Aprendemos as regras tradicionais para poder transgredir ou contrariá-las.”

“Devemos aprender a questionar tudo, até nossas próprias opiniões.”

“O artista deve abrir caminhos e novos modos de pensar.”

“Ao se criar uma obra de arte muda-se o modo de ver toda a sequência da arte até o momento.

Por quatro semanas o velhinho mexeu com minha cabeça de pretenso músico que se achava só porque tocava uma dezena de músicas fáceis e melodiosas no violão. Ao final do curso, fiquei sabendo o nome da doença que eu sofria: melodismo. Ainda não achei a cura.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Edson Cruz (Ilhéus, BA) é poeta e editor. Desgraduou-se em muitas coisas: Psicologia, Música e Letras. Foi fundador e editor do site de literatura Cronópios (até meados de 2009) e da revista literária Mnemozine. É professor no Curso de Criação Literária, da Terracota Editora, no módulo Poema. Lançou em 2007, Sortilégio (poesia), pelo selo Demônio Negro/Annablume e, como organizador, O que é poesia?, pela Confraria do Vento/Calibán. Lançou, também, uma adaptação do épico indiano, Mahâbhârata, pela Paulinas Editora. Em 2011, lançou Sambaqui, livro contemplado pela Bolsa de Criação da Petrobras Cultural. Em janeiro de 2012, colocou no ar seu novo projeto: o site MUSA RARA. Escreve com frequência no blog: http://sambaquis.blogspot.com E-mail: sonartes@gmail.com




Comentários (1 comentário)

  1. Maria Lindgren, Muito boas anotações e muito bo, vídeo, mas parei em Debussy e Ravel, pois não yenho paciência para música dodecafônica. Sorry Maria Lindgren
    20 fevereiro, 2013 as 18:07

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