Tradução e negociação


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Tradução é negociação. É a natureza da arte/do ofício tradutório trabalhar com negociações para que se alcance o equilíbrio necessário à compreensão do texto. Isso não é novidade para quem já está na estrada, mas talvez seja para as pessoas que não vivem ou não pensam a tradução como uma série complexa de operações que têm ganhos e perdas, consequências e resultados, às vezes esperados, outros não. Sendo a tradução uma atividade (um ato), tem sua dinâmica própria e para que se faça bem, é necessário compreendê-la ou ao menos vislumbrar suas possibilidades. Não raro, nos vemos em diversas sinucas de bico e não sabemos como sair delas. Nesses momentos de apuro, apelamos invariavelmente a são Jerônimo, acendemos algumas velas para ele e aproveitamos para invocar Xangô, que no sincretismo também representa o santo padroeiro dos tradutores.

E nos empenhamos para realizar a tal negociação. Que a primeira vista parece um ato muito simples, mas demandou anos de estudos tradutórios para que se chegasse a um consenso da validade de tal prática. Não que os tradutores não fizessem isso antes, sempre fizeram e sempre farão, pois é parte intrínseca do ato essa barganha com as palavras. Porém, é uma visão que tira o tradutor daquela pequena margem de autonomia que sempre é supostamente dada a ele e põe as rédeas do texto a quem o tem nas mãos. Pois não precisamos mais aceitar aquela visão arcaizante de um tradutor acorrentado ao texto de partida (vulgo original) e obediente no texto de chegada, sem nenhum poder autoral que lhe é de direito, tendo em vista as dificuldades que a transposição cultural nos impõe (seja em texto literário, técnico, científico e outros). Tomadas as devidas proporções (pois tradução não é bagunça), o tradutor é responsável por todos esses trâmites dentro do texto para que ele, no fim das contas, seja coeso e compreensível no idioma de chegada. Objetivo final, compartilhado por todas as instâncias do processo de “feitura” do texto no qual o leitor confiará. Responsabilidade pouca é bobagem.

A negociação, vista pelos estudos modernos de tradução, pode ser algo indesejado. Contudo, esses estudos modernos têm como ponto de partida culturas muito diversas da nossa*.

Este diálogo ao qual nos propomos todos os dias quando executamos o ato ainda visto como inglório é que possibilita o entendimento entre as culturas, tornando a tradução não apenas um operação de transposição de uma língua para a outra, mas um sistema intrincado de negociações multiculturais (digo multicultural, pois às vezes temos elementos de culturas outras que aquelas que traduzimos dentro de um texto), dos quais poucos se dão realmente conta. Acredito que os tradutores têm papel fundamental quando seu fazer possui as qualidades do texto de partida totalmente transposto para o idioma de chegada, pois mostram que a negociação bem feita leva ao objetivo de sua arte/seu ofício: estabelecer o conhecido clichê, a ponte necessária entre as culturas.

 


* Um texto ótimo sobre essas vertentes dos estudos da tradução pode ser lido no blog da profa. Ivone Benedetti, aqui.

 

 

 

 

 

 

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Petê Rissatti, 32 anos, tradutor de ficção e não ficção dos idiomas inglês e alemão, e escritor, com textos lançados nas coletâneas Blablablogue – Crônicas e Confissões (Terracota Editora) e Portal Fahrenheit (edição independente com organização de Nelson de Oliveira). Atualmente está debruçado em Complexo de Portnoy, de Philip Roth (tradução de Paulo Henriques Britto, Cia. das Letras). Texto originalmente publicado (mas alterado) no blog do autor: http://peterissatti.com  E-mail: peterso.tradutor@me.com




Comentários (1 comentário)

  1. Laura Fuentes, Belíssimo texto, parabéns Petê. Nada como saber do oficio. E pensar que tem gente que, só por ter um inglês razoável, acha-se no direito de começar a traduzir profissionalmente. Tem muitos assim nas grandes editoras, provavelmente cobrando barato, e que dão um trabalhão para os preparadores.
    12 março, 2012 as 15:28

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