Stálin ensina Borges a ler Dostoiévski


 

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Chicago, 15 de novembro de 2014

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Alguns autores nos impregnam de tal maneira que já não é possível vivenciar determinadas experiências e torná-las minimamente inteligíveis (e verossímeis) sem a mediação de suas estórias. É quando a realidade se vê expandida (e emparedada) por seu caráter ficcional.

Em dezembro de 2004, ao chegar ao Rio de Janeiro pela zona portuária, me deparo com a imensidão de um navio petroleiro. O Tiranossauro Rex, as pirâmides egípcias e os arranha-céus de Chicago se transformam em meros esboços. O casco infinito do petroleiro é a materialização de um continente. Quando o petroleiro se movimenta, sentimos a tangibilidade das placas tectônicas. O colosso petroleiro me faz encarnar a pequenez do agrimensor K. diante do castelo onipresente – e impenetrável. O Golias petroleiro, a metamorfose carioca da obra de Kafka, me faz sentir o temor e o tremor das mãos que se abrem em palma para contrapor um frágil e derradeiro escudo diante do punho que desaba sobre tudo o que é indefeso.

É algo assim que os espectadores de O Iluminado, do bom e velho Stanley Kubrick, sentimos diante da imensidão da tomada aérea que abre o filme e vai perseguindo o fusca do escritor Jack Torrance. Qual um maestro (e uma personagem), a tétrica trilha sonora nos traga até o plano do carro e nos faz serpentear por entre as coníferas ladeadas por montanhas e despenhadeiros. Tudo prenuncia o colapso mental (e ficcionalmente real) de Jack Torrance Nicholson a caçar a esposa e o filho armado com um machado.

Diante da imensidão paranóica de Kafka e Kubrick, diante do medo como as pernas trêmulas da impotência, que têm as nos dizer The last interview and other conversations com o argentino Jorge Luís Borges?

Borges nos traz a erudição e a elegância das tramas e do pensamento que se deleitam consigo mesmos. Mas, ao ler Borges, muitas vezes tenho a sensação de que há muita luz e pouco calor, muitos livros e pouca vida, muitos paradoxos e poucas contradições.

Ica, Peru, dezembro de 2009. Me sento em frente a uma laguna circundada por montanhas de areia para ler um ensaio de Borges. Imaginem que, entre um arqueiro e um alvo, há uma distância X. Pragmaticamente, a flecha perfaz a distância X para atingir, na mosca!, o coração do alvo. Ocorre que Borges, secundado por Zenão de Eléia, sentencia que, para percorrer a distância X, a flecha primeiramente precisa percorrer a distância X/2, que, por sua vez, constitui a somatória de dois fragmentos X/4, os quais são totalizações das frações X/8, X/16, X/32, X/64, …, ∞. Borges nos leva à noção paradoxal de que o infinito, em sua imensidão intangível, também tende a zero. Se, para percorrer uma trajetória progressiva, a flecha precisa percorrer as frações regressivas da trajetória que se subdividem infinitamente, Borges desdobra o paradoxo: no limite, a flecha se confunde com a trajetória e também pode ser subdividida; no limite, o arqueiro se confunde com a trajetória e também pode ser subdividido; ainda mais no limite, como a flecha e o arqueiro também podem tender a zero, a flecha e o arqueiro podem não existir.

Borges nos narra o espanto paradoxal do geômetra diante do finito que pressupõe a infinitude – e do infinito que tende a zero. Mas Borges não tenta devassar as (des)razões pelas quais o arqueiro dispara a flecha; não sabemos se o alvo é inanimado ou se o alvo é mais um dos condenados da terra; não sabemos se há choro e ranger de dantes – mas sabemos que, como o arqueiro, nós também tendemos a zero.

Ora, quem disse que nossa tragédia é geométrica?

Enquanto leio Borges, a geometria das montanhas de areia que me circundam em Ica existe – e logo não existe.

Se o pathos de Borges fosse trágico (e não geométrico), o vento de Ica vestiria uma capa preta com capuz, carregaria uma ampulheta na mão esquerda e uma foice na mão direita.

Enquanto leio Borges, a geometria das montanhas de areia que me circundam em Ica existe – e logo não existo.

Em determinado momento da entrevista, Richard Burgin, o interlocutor de Borges, lhe faz a seguinte pergunta:

– Do you remember much from your childhood?

Borges: “You see, I was always very shortsighted, so when I think of my childhood, I think of books and the illustrations in books. I suppose I can remember every illustration in Huckleberry Finn and Life on the Mississippi and Roughing It and so on. And the illustrations in the Arabian Nights. And Dickens (…). Of course, well, I also have memories of being in the country, of riding horseback in the estancia on the Uruguay River in the Argentine pampas. I rembember my parents and the house with the large patio and so on. But what I chiefly seem to remember are small and minute things. Because those were the ones that I could really see. The illustrations in the encyclopedia and the dictionary, I remember them quite well. Chambers Encyclopedia or the American edition of the Encyclopaedia Britannica with the engravings of animals and pyramids”.

A pergunta seguinte de Richard Burgin é afiada como um bisturi:

– So you remember the books of your childhood better than the people?

Borges a disseca com a objetividade de um legista:

“Yes, because I could see them”.

[Aqui, o silêncio da poesia de Borges é mais do que sintomático – talvez seja doloso. A culpa se esgueira pelos olhos que se abrem em vão e não podem (e/ou não querem) se lembrar.]

Mas Burgin não se dá por vencido e continua a esboçar a aula de anatomia do Dr. Borges:

– You’re not in touch with any people that you knew from your childhood now? Have you had any lifelong friends?

Borges: “Well, some school companions from Buenos Aires and then, of course, my mother, she’s ninety-one; my sister, who’s three years, three or four years, younger than I am, she’s a painter. And then, most of my relatives – most of them have died”.

Most of them have died: o paradoxo da flecha não existe sem o desespero do arqueiro.

Mas Borges, a princípio, não parece sentir a decantação (e a putrefação) da matéria viva.

Borges: “(…) I never understand why people say they’re bored because they have nothing to do. Because sometimes I have nothing whatever to do, and I don’t feel bored. Because I’m not doing things all the time, I’m content.

Burgin: “You’ve never felt bored in your life?”

Borges: “I don’t think so. Of course, when I had to be ten days lying on my back after an operation I felt anguish, but not boredom”.

Angústia, Borges, é a vontade desprovida de objeto, é o sentido desprovido de vida, é seu corpo, Borges, entregue a si mesmo, por dez dias (e por quase 87 anos), após mais uma cirurgia.

Borges, o homem das letras, o esteta da ponderação e da plasticidade da forma, não entende como a humanidade vem rezando o evangelho segundo Talião. “I think there’s something very mean about revenge, even a just revenge, no? Something futile about it. I dislike revenge. I think that the only possible revenge is forgetfullness, oblivion. That’s the only revenue. But, of course, oblivion makes for forgiving, no?”

Burgin: “Well, I know you don’t like revenge, and I don’t think you lose your temper much either, do you?”

Borges: “I’ve been angry perhaps, well, I’m almost seventy, I feel I’ve been angry four or five times in my life, not more than that”.

Perspicazes, o esteta e o geômetra apreendem a dialética imanente ao esquecimento.

Borges não se livra do espectro de Talião ao dizer que “the only possible revenge is forgetfullness, oblivion”. Se Borges não fosse Jorge Luís Borges, seria bem mais difícil esquecer. Se Borges não fosse Jorge Luís Borges, o colosso literário não teria uma sombra gigantesca em meio à qual o esteta e o geômetra pudessem fantasiar Talião com o véu do esquecimento.

Quando Borges sentencia que “the only possible revenge is forgetfullness, oblivion”, faltam ao esteta e ao geômetra a visceralidade de um Dostoiévski, as vielas e as perseguições noturnas, as putas sifilíticas, a navalha psicológica de um Nietzsche, o ódio e o rancor que se esquecem de si mesmos enquanto o punhal (ainda) está embainhado. Faltam ao aristocrata das letras a sensação do próprio corpo quando o sêmen jorra, a visão de uma mulher nua e extenuada, o eu te amo temerário que é expelido pela extrema felicidade e que logo se arrepende de si mesmo, a dor da traição que faz o arqueiro disparar a flecha, a percepção de que o esquecimento, na verdade, é a máscara do rancor que se esconde sob o rosto do desprezo. Faltam a Borges a vivência e a compreensão do pathos e da ira de Jorge e Luís. Borges parece ter se transformado na estátua de si mesmo. De fato, a estátua bem pode esquecer, mas ela também não tem nada de que se lembrar.

Ainda assim, Borges bem sabe que o esquecimento não está apenas para a altivez do aristocrata estancieiro que não quer se sujar com os sentimentos comezinhos do burguês e do proletário. Borges sabe que o esquecimento supera a si mesmo quando consegue perdoar. Aqui, não se trata de esquecer para desprezar, não se trata de um esquecimento tácito e tático. Trata-se da vivência do ódio que percebe que Talião se alimenta contínua e inequivocamente de si mesmo. Trata-se da percepção de que Talião é a insônia, o pesadelo de olhos abertos, a supressão contínua do presente e do futuro em função da reescritura do passado. Trata-se de descobrir, contra o corpo que fervilha, contra a vontade que vocifera, que, quando Jorge e Luís odeiam, Borges se vê cego pela sujeição a Talião. Daí o ímpeto pelo perdão, o retorno da fraternidade improvável, recalcitrante e contingente, a mão aberta da amizade para além do tapa e do punho cerrado. É assim que a humanidade – o mercado de peixes do qual Borges mantém prudente distância – caminha pela estepe contraditória de nossa história para (tentar) compreender o Sermão da Montanha. Para para oferecer a outra face, Borges precisa conversar com Jorge e Luís. Só então o esteta e o geômetra poderão esquecer para além do próprio esquecimento.

Borges: “I suppose I told you a conversation I had with a German professor, no?”

Burgin: “No, you didn’t”.

Borges: “Well, I was being shown all over Berlin, one of the ugliest cities in the world, no? Very showy”.

Burgin: “I’ve never been to Germany”.

Borges: “Well, you shouldn’t, especially if you love Germany, because once you get there you’ll begin to hate it. Then I was being shown around Berlin. Of course, there were any number of vacant lots, large patches of empty ground where houses had stood and they had been bombed very thoroughly by the American airmen, and then, you have some German, no?”

Burgin: “No, I’m sorry”.

Borges: “Well, I’ll translate. He said to me: ‘What have you to say about these ruins?’ Then I thought, Germany has started this kind of warfare; the Allies did it because they had to, because the Germans began it. So why should I be pitying this country because of what had happened to it, because they started the bombing, and in a very cowardly way. I think Göring told his people that they would be destroying England and that they had nothing whatever to fear from the English airmen. That wasn’t a noble thing to say, no? In fact, as a politician, he should have said, ‘We are doing our best to destroy England; maybe we’ll get hurt in the process, but it’s a risk we have to run’ – even if he thought it wasn’t that way. So when the professor said to me ‘What have you to say about these ruins?’ – well, my German is not too good, but I had to make my answer very curt, so I said, ‘I’ve seen London’. And then, of course, he dried up, no? He changed the subject because he wanted me to pity him”.

Burgin: “He wanted a quote from Borges”.

Borges: “Well, I gave him a quotation, no?”

Ora, ora, quer dizer que o sangue também corre pelas veias de Borges!

“I’ve seen London”: Borges e sua ascendência inglesa não puderam sentir pena diante das ruínas de Berlim – “one of the ugliest cities in the world” –, a nobreza de Borges não pôde oferecer a outra face, o esteta e o geômetra, aqueles que odeiam Talião, não conseguiram esquecer.

Se Borges saísse do labirinto de seus paradoxos livrescos e continuasse a caminhar pelas ruínas de Londres, a personagem Pierre Menard reescreveria, ainda uma vez, uma nova versão de Dom Quixote.

A ironia de Borges, bem rente à geometria sem vísceras do paradoxo do arqueiro e da flecha, faz com que Pierre Menard, ao tentar reescrever Dom Quixote, ao tentar se apropriar da alma de Cervantes, copie o texto original palavra por palavra, vírgula por vírgula, linha por linha.

Assim falou Karl Heinrich Marx em O 18 Brumário de Luís Bonaparte:

“Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E se esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”.

“I’ve seen London”: se Borges tivesse lembrado – ou pior, se Borges não tivesse esquecido – que, entre os Aliados, havia a URSS, que outrora havia selado um pacto de não-agressão com o Terceiro Reich; que, entre os Aliados, havia a Inglaterra, que poderia ter contido o avanço nazista bem antes da invasão à Polônia – ora, mas aí os ingleses (e os franceses) teriam perdido a oportunidade de arremessar Hitler em uma guerra total contra Stálin, e Stálin, por sua vez, teria perdido a oportunidade de, após a assinatura do pacto Ribbentrop-Molotov, jogar Hitler em uma guerra total contra Churchill (e os franceses); que, entre os Aliados, havia os EUA, que sequer legaram escombros em Hiroshima, de tal maneira que Borges não poderia se sair com uma máxima como “I’ve seen Nagasaki”; se a nobreza não taliônica de Borges não tivesse esquecido tudo isso, a ironia geométrica do argentino daria lugar ao pathos da tragédia para que, após Auschwitz, Pierre Menard narrasse a reescritura do Sacrifício de Isaac.

 


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Sacrifício de Isaac

Gênese, 22, 1-14

Velho Testamento

 

 

“(…) Deus provou Abraão e disse-lhe:

– Abraão!

– Eis-me aqui – respondeu ele.

Deus disse:

– Toma teu filho, teu único filho a quem tanto amas, Isaac, e vai à terra de Moriá, onde tu o oferecerás em holocausto sobre um dos montes que eu te indicar.

No dia seguinte, pela manhã, Abraão selou o seu jumento. Tomou consigo dois servos e Isaac, seu filho, e, tendo cortado a lenha para o holocausto, partiu para o lugar que Deus lhe tinha indicado. Ao terceiro dia, levantando os olhos, viu o lugar de longe.

– Ficai aqui com o jumento – disse ele aos seus servos. Eu e o menino vamos até lá mais adiante para adorar e depois voltaremos a vós.

Abraão tomou a lenha do holocausto e a pôs aos ombros de seu filho Isaac, levando ele mesmo nas mãos o fogo e a faca. E, enquanto os dois iam caminhando juntos, Isaac disse ao seu pai:

– Meu pai!

– Que há, meu filho?

Isaac continuou:

– Temos aqui o fogo e a lenha, mas onde está a ovelha para o holocausto?

– Deus – respondeu-lhe Abraão – providenciará ele mesmo uma ovelha para o holocausto, meu filho.

E ambos, juntos, continuaram o seu caminho.

Quando chegaram ao lugar indicado por Deus, Abraão edificou um altar; colocou nele a lenha e amarrou Isaac, seu filho, e o pôs sobre o altar em cima da lenha. Depois, estendendo a mão, tomou a faca para imolar o seu filho. O anjo do Senhor, porém, gritou-lhe do céu:

– Abraão! Abraão!

– Eis me aqui!

– Não estendas a tua mão contra o menino e não lhe faças nada. Agora eu sei que temes a Deus, pois não me recusaste teu próprio filho, teu filho único.

Abraão, levantando os olhos, viu atrás dele um cordeiro preso pelos chifres entre os espinhos; e, tomando-o, ofereceu-o em holocausto em lugar de seu filho. Abraão chamou a este lugar Javé-Yiré (o Senhor proverá), de onde se diz até o dia de hoje: ‘Sobre o monte de Javé-Yiré’”.

 

 

 

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Sacrifício de Isaac

Night, por Elie Wiesel, sobrevivente de Auschwitz

Novo Testamento

 

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“I remember that night, the most horrendous of my life:

– Eliezer, my son, come here… I want to tell you something… Only to you… Come, don’t leave me alone… Eliezer…

I heard his voice, grasped the meaning of his words and the tragic dimensions of the moment, yet I did not move.

It had been his last wish to have me next to him in his agony, at the moment when his soul was tearing itself from his lacerated body – yet I did not let him have his wish.

I was afraid.

Afraid of the blows.

That was why I remained deaf to his cries.

Instead of sacrificing my miserable life and rushing to his side, taking his hand, reassuring him, showing him that he was not abandoned, that I was near to him, that I felt his sorrow, instead of all that, I remained flat on my back, asking God to make my father stop calling my name, to make him stop crying. So afraid was I to incur the wrath of the SS.

In fact, my father was no longer conscious.

Yet his plaintive, harrowing voice went on piercing the silence and calling me, nobody but me.

‘Well?’ The SS had flown into a rage and was striking my father on the head: ‘Be quiet, old man! Be quiet!’

My father no longer felt the club’s blows; I did. And yet I did not react. I let the SS beat my father, I left him alone in the clutches of death. Worse: I was angry with him for having been noisy, for having cried, for provoking the wrath of the SS.

– Eliezer! Eliezer! Come, don’t leave me alone…

His voice had reached me from so far away, from so close. But I had not moved.

I shall never forgive myself.

Nor shall I ever forgive the world for having pushed me against the wall, for having turned me into a stranger, for having awakened in me the basest, most primitive instincts.

His last word had been my name. A summons. And I had not responded”.

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Após Auschwitz (e após o navio negreiro e após Hiroshima e após o Gulag), o Velho passa pelo corredor polonês para encontrar o Novo Testamento.

Conseguiria Pierre Menard compreender, vivencialmente, e até as últimas consequências, a reescritura do Sacrífico de Isaac?

O esteta e o geômetra certamente dissecariam as afinidades eletivas entre os verbos forget e forgive.

“I think that the only possible revenge is forgetfullness, oblivion. That’s the only revenue. But, of course, oblivion makes for forgiving, no?”

Não é assim, Borges?

Mas, Borges, o que você teria a dizer para A-7713 – eis o nome e o sobrenome de Elie Wiesel em Auschwitz – quando o sobrevivente grita com impotência e desespero diante do cadáver do pai?

– I shall never forgive myself!

Assim como você disse “I’ve seen London” para um professor alemão diante das ruínas de Berlim, você talvez pudesse dizer:

– You shall never forget yourself.

Você acha que seria muito taliônico para Jorge Luís, Borges?

Se você considerar que há muito ódio em tal máxima, Borges, coloque-a na boca de Pierre Menard. Se o paradoxo do arqueiro e da flecha é apenas geométrico, a personagem literária é apenas ficcional, não é mesmo?

Teria sido esse o motivo que não te fez compreender Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski, Borges?

Burgin: “What novelists do you think could create [real] characters?”

Borges: “(…) When I was a young man I thought Dostoevsky was the greatest novelist. And then after ten years or so, when I reread him, I felt greatly disappointed. I felt that the characters were unreal and that also the characters were part of a plot. Because in real life, even in a difficult situation, even when you are worrying very much about something, even when you feel anguish or when you feel hatred – well, I’ve never felt hatred – or love or fury maybe, you also live along other lines, no? I mean, a man is in love, but at the same time he is interested in the cinema, or he is thinking about mathematics or poetry or politics, while in novels, in most novels, the characters are simply living through what’s happening to them. No, that might be the case with very simple people, but I don’t see, I don’t think that happens”.

Se continuasse a nos narrar as Memórias do Subsolo, o homem do subsolo emparedaria Borges com a contraposição de duas máximas:

(i) “I’ve seen London”, sentença proferida para um professor alemão diante das ruínas de Berlim;

(ii) “I’ve never felt hatred”.

A obra de Dostoiévski, Borges, não passa ao largo da vida – e de seu subsolo e de suas masmorras – trajando a elegância do terno e do conto bem cortados. Raskólnikov é um duplo homicida. Armado com a flecha do arqueiro, o protagonista de Crime e Castigo quer descobrir se a morte do Não matarás coroa o Homem com o trono divino agora vago. Rogójin, o antagonista de O Idiota, ama Nastácia Filíppovna. Seu amor é tão visceral (e dostoievskiano) que requer a capitulação e a anexação da amada. O assassínio de Nastácia. Nikolai Stavróguin, o super-homem russo, o Zaratustra de Dostoiévski, quer aprofundar o apocalipse n’Os Demônios. Ele vai a um monastério e faz sua confissão ao clérigo Tíkhon. Se Deus não existe e tudo é permitido, vinde a mim, criancinhas! Stavróguin narra sua incursão pedófila com requintes de êxtase – logo ficamos sabendo que a menininha violada acaba se enforcando. A reboque da dialética dostoievskiana, o clérigo Tíkhon, após ouvir a confissão de Stavróguin, recomenda-lhe a purgação – e o monastério. Ivan Karamázov é o mentor da morte do Pai – e de seu pai. Para Ivan, o parricídio é a consumação escatológica da deportação de Deus para Auschwitz. Ocorre que Ivan não tem a ousadia de Raskólnikov – de Crime e Castigo para Os Irmãos Karamázov, Dostoiévski narra a divisão social do trabalho entre a concepção e a consecução do assassínio. Raskólnikov é o pequeno empresário que precisa conceber e executar a ideia. A multinacional Karamázov pode delegar o parricídio a Smierdiákov, irmão bastardo de Ivan. Smierdiákov, serviçal na casa dos Karamázov, é filho de uma aposta – e de um estupro. Após uma pândega, um bravateiro desafia o bufão Fiódor Pávlovitch Karamázov a possuir a mendiga e demente Smierdiákova. Nove meses depois, Smierdiákov é expelido. O cálculo utilitário de Ivan concebe o parricídio. No entanto, o aristocrata Karamázov, assim como Borges, tem muito a perder. Pôncio Pilatos pode lavar as mãos; Barrabás, não. Assim, é Smierdiákov quem assassina o próprio pai. Antes de se enforcar, o parricida serviçal revela a Ivan Karamázov por quem os sinos dobram: Smierdiákov revela, de alfa a ômega, do Gênese ao Apocalipse, que o irmão intelectual lhe ensinara a escatologia parricida da morte de Deus. “Ocorre, meu irmão Ivan, que você é um niilista de gabinete, você não tem a coragem da senzala. Sem mim, não haveria choro e ranger de dentes. O parricídio precisa do parricida, meu irmão. Assim, em verdade, em verdade eu lhe pergunto, meu irmão: quem é o bastardo agora, Ivan, quem?!” O corpo de Smierdiákov, o parricida efetivo, se enforca. A razão de Ivan, o parricida ideológico, o leva à loucura.

Borges: “I felt that the characters [de Dostoiévski] were unreal and that also the characters were part of a plot”.

Sim, Borges, você está certo (contra si mesmo).

As personagens de Dostoiévski são inverossímeis, elas não são tangíveis para aqueles que espreitam o real como a criança que dosa a temperatura da água com o dedão antes de entrar na piscina, elas não são realmente trágicas para o aristocrata burguês que pode dividir seus interesses entre as demissões compulsórias e a casa de campo sem estilhaçar a própria personalidade, elas parecem muito simples e pragmaticamente monomaníacas para o esteta e o geômetra que nunca sentiram ódio e que não narram os sentidos e os ressentimentos da história.

Se você não estivesse certo (contra si mesmo), Borges, seria possível arremessar as personagens dostoievskianas contra o próprio Dostoiévski para descobrimos como as narrativas do autor russo se desdobrariam em nossa época.

Hoje, será que Rogójin assassinaria Nastácia embriagado pelo pathos de seu amor? Talvez o assassino descobrisse a idiotia de seu empreendimento. Se o bufão Marmieládov, em Crime e Castigo, se afoga na bebedeira com o dinheiro que a filha prostituta lhe dá – em Dostoiévski, Borges, o prazer jamais se limita ao deleite fidalgo do esteta, o prazer fica ereto com a autoflagelação –, Rogójin, no êxtase de seu amor, talvez se transformasse no cafetão de Nastácia Filíppovna.

Hoje, será que Raskólnikov se entregaria para a polícia por não conseguir lidar com o fardo de ter cruzado a fronteira do Não matarás? Talvez Raskólnikov sentisse a puerilidade de seus planos se descobrisse que os mais avançados jogos de video game já permitem às crianças simular atropelamentos, torturas e estupros.

Hoje, será que o clérigo Tíkhon aconselharia o lascivo Stavróguin a entrar para um monastério? Talvez Tíkhon aconselhasse Stavróguin a sublimar o som e a fúria em um curso de MBA. “Você vai longe, meu filho, você vai longe!”

Hoje, será que os irmãos Ivan e Smierdiákov naufragariam diante do parricídio? Talvez os parricidas sentissem medo ao lerem um anúncio em um jornal alemão. Um jovem muito bem formado e muito bem remunerado quer morrer. Ele não quer cometer suicídio, ele quer ser assassinado. Walter Dortlicht – eis o nome do autor do anúncio – oferece uma grande recompensa a seu algoz. Walter Dortlicht, que prefere Tarantino a Dostoiévski, quer que seu algoz o mate com o punhal do pai. Tudo deve ser filmado. O vídeo, após a execução, deve ser disponibilizado no YouTube e, logo em seguida, no Facebook.

Mas eis que nem mesmo a erudição e a elegância literário-filosóficas de Jorge Luís Borges escapam aos campos de concentração soviéticos.

Quando Ióssif Vissariónovitch Djugachvíli, também conhecido como Stálin, fica sabendo que o grande escritor argentino havia sido deportado para a Sibéria, o Guia Genial dos Povos decide ir pessoalmente à Casa dos Mortos para ministrar a primeira aula de reeducação (político-literária) para Borges.

 

 
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Sacrifício de Isaac

Por Stálin, sobrevivente de si mesmo

Ato dos Apóstolos

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“As Segunda e Terceira Frentes Bielo-russas irromperam no Leste da Prússia, já território alemão, numa orgia de vingança: 2.000.000 de mulheres alemãs seriam estupradas nos meses seguintes.

Os soldados russos chegaram a violar mulheres russas recém-libertadas de campos nazistas [grifo cúmplice do homem do subsolo, de Rogójin, de Stavróguin, do clérico Tíkhon, de Smierdiákov e de Ivan Karamázov].

“Em verdade, em verdade lhe digo: ora, Borges, você leu Dostoiévski, é claro. Vê como a alma humana é complicada? Então, imagine um homem que lutou de Stalingrado a Belgrado – por milhares de quilômetros de sua própria terra devastada, por cima dos cadáveres de seus camaradas e entes mais queridos. Como pode um homem assim reagir normalmente? E o que há de tão medonho em se divertir com uma mulher depois de tais horrores?”*

No XX Congresso do PCUS (Partido Comunista da União Soviética), três anos após a morte de Stálin, B-7713 – nome e sobrenome de Borges no Gulag – decide lançar mão de sua imersão russófila para dedicar ao Guia Genial dos Povos, a personagem dostoievskiana por excelência, o trecho terminal de Nueva Refutación del Tiempo. Desta vez, Fiódor Borges restitui ao arqueiro a perecibilidade do ser. O paradoxo finalmente encarna a humanidade da contradição. Com a Nueva Refutación del Tiempo, Borges se reconcilia, momentaneamente, com o cadafalso da ampulheta.

 

“El tiempo es la sustancia de que estoy hecho.

El tiempo es un río que me arrebata, pero yo soy el río;

es un tigre que me destroza, pero yo soy el tigre;

es un fuego que me consume, pero yo soy el fuego.

El mundo, desgraciadamente, es real;

yo, desgraciada­mente, soy Borges”.

 

 


* Simon Sebag Montefiore, Stálin: A corte do tzar Vermelho. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 532.

 

 

 

 

 

 

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Flávio Ricardo Vassoler é escritor, professor universitário e autor de “Tiro de Misericórdia” (Editora nVersos, 2014) e “O Evangelho segundo Talião” (Editora nVersos, 2013) e organizador de “Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade” (Editora Intermeios, 2012). Durante o mestrado em Teoria Literária (2008-2010) pela FFLCH-USP, o escritor Fiódor Dostoiévski fez com que Flávio Ricardo se embrenhasse pela Rússia, durante um ano (2008-2009), para aprofundar, junto à Universidade Russa da Amizade dos Povos, em Moscou, o aprendizado da língua que as “Memórias do Subsolo” legaram a Stálin. Agora, durante o doutorado em Teoria Literária (2012-2015) pela FFLCH-USP, Dostoiévski e a dialética fazem o autor nômade migrar novamente, desta vez para a fronteira oposta da Guerra Fria: entre setembro de 2014 e agosto de 2015, Flávio Ricardo realiza um estágio doutoral junto à Northwestern University, em Evanston, Chicago, nos Estados Unidos. Segundas-feiras, quinzenalmente, o autor apresenta, a partir das 22h, o Espaço Heráclito, um programa de debates políticos, sociais, artísticos e filosóficos com o espírito da contradição entre as mais variadas teses e antíteses – para assistir ao programa, basta acessar a página da TV Geração Z, www.tvgz.com.br, o Portal Heráclito e o YouTube. Periodicamente, atualiza o Portal Heráclito, www.portalheraclito.com.br, e o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, páginas em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.

 




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