Solidão deslocada


 

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Eu tenho uma estante de livros. A maioria deles foram sequer abertos, mas eles sempre estiveram comigo. Podia tê-los jogado fora ou dar de presente. Os livros não eram meus, pertenceram ao meu pai e à minha mãe. Alguns eram mais velhos do que eu e eu briguei por eles. Sequer abertos. Peguei uma vassoura e uma pá para limpar atrás da estante e assim, desloquei-a, tomando cuidado para não deixar os livros cair. Demorei quase uma hora para movê-la, mas não consegui colocar de volta. Anos passaram e a estante deslocada permaneceu em seu não-lugar, no meio de tudo.

 

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Minha casa não tem mais nenhum móvel, livros, estantes fora do lugar, mesa, cadeiras, quadros. Tudo é livre como meus sentimentos e o meu olhar. Não quero ter mais nada para ver, para descansar, para apoiar o meu corpo. Minha cama é apenas um velho cobertor sem travesseiros. Despojei tudo porque a simplicidade das coisas está distante e assim o teto, o chão e as paredes conversam comigo. O ar circula. Eu o sigo pela casa. Sozinha de objetos a casa só se importa com o objeto vivente e atuante. Sou o único móvel de decoração que não enfeita. Quer vir e dormir comigo? Pode vir e se acostume com o lugar. Se não posso ter uma vida simples, que a casa seja assim. Ora, não tenho vocação para asceta ou uma vida religiosa. Eles optaram por viver assim e eu escolhi viver sem nada não para alcançar a iluminação. Quero que o lugar em que vivo seja dedicado à simplicidade. Quando receber amigos, eles ficarão surpresos. Quando meu amor vier, ela dormirá sem conforto. Vejo as coisas do piso frio, de baixo para cima. Minha casa é a iluminada, eu sou um mero hóspede.

 

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A vida se resume a momentos, simples como um dia que se vive bem, quando as horas passam sem percebê-las. Não quero a felicidade contínua, desejo um dia em que eu possa dizer: “hoje foi um dia bem vivido”. Se tudo fosse tão fácil assim! Quero que as semanas e os dias sejam plenos. Que tristeza procurar o impossível… trato eu de viver o dia com completude, pois o futuro está programado com a ressalva de saber que sou um homem de momentos. Sou um homem de momentos e realizo-me nas sementes que planto diariamente. Se alguém oferece algo, sem eu saber de nada, aceito de imediato. Se alguém oferece algo daqui a anos-luz, aceito de imediato igualmente. Sou um homem de imediatismos e programação, ambos sentam na mesma mesa como a coisa mais diária possível, fartando-se igualmente. Há dias em que alguns minutos valem por toda a vida e isso vale. Posso andar semanas em desertos monótonos para ver apenas uma pequena palmeira, posso navegar semanas em oceanos monótonos para chegar a uma ilha e nela permanecer poucas horas. Tenho apreço à gota d’água que cai no lago, mais que a um imenso diamante. Quando percebo, pequenas pedras brilhantes escorrem das árvores que plantei e o meu passado brilha com uma força descomunal.
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Quando eu era pequeno, houve uma terrível seca em nossa terra. Nenhuma planta sobreviveu, exceto a figueira. Nada mais cresceu, nem hortas nem outras frutas. Só podíamos cultivar figos, logo eu, que sempre detestara figos. Talvez fosse um castigo divino, uma vingança ou um aprendizado que deveríamos passar, mas só me lembro dos figos. Nem mesmo por necessidade eu conseguia gostar de figos. Com o passar dos anos minha família ficou conhecida pelos figos que produzíamos, vendemos figos para pessoas que vinham de lugares muito distantes. Eu aprendi a plantar, cuidar, proteger das pragas, colher, guardar e vender. Se perguntavam se ele era bom, eu dava um pedaço para experimentar, não tinha outro jeito de saber se eram bons. Todos gostavam e compravam sem mais perguntar. O único figo que comi foi um que não coube na cesta e fiquei com pena de jogar fora. Hoje tenho muitas figueiras e sou conhecido por aquilo que detesto.

 

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Um amigo meu estava de mudança e pediu para eu guardar um de seus quadros. Era um quadro que mostrava pequenos veleiros ancorados. Toda a vez que eu o visitava, aqueles barcos estavam lá, com suas velas abaixadas. Não neguei seu pedido, levei o quadro para ficar em minha casa. Um quadro não deve ficar guardado, nem no chão. Peguei um prego e um martelo. Ele começou a ser parte de tudo. Os veleiros ficaram comigo até eu perder a conta dos dias desde que foram erguidos. Passei muito a estimá-los. Um dia meu telefone tocou, havia uma voz dentro dele dizendo que queria o quadro de volta. Minha parede ficou vazia dos veleiros que esperavam seus marinheiros. Ao olhar a mancha do quadro na parede, desci a serra em direção ao mar em busca de veleiros, e naveguei para o nunca mais.

 

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Faltavam apenas alguns minutos para ir embora. Eu não queria ir, mas era preciso. Fiquei a noite toda acordado vendo tevê, escrevendo, fumando cigarros e ouvindo um temporal que caiu de madrugada, pois sabia que, com o amanhecer, arrumaria as minhas coisas e teria de ir. Frio eu não passaria, teria com o que me cobrir. Nem fome, teria o que comer. Teria um amigo para conversar. Pela manhã, antes de fechar a porta, saí para entrar em minha vida.

 

 

 

 

 

 

 

Rafael F. Carvalho é paulistano, nascido em 27 de Fevereiro de 1978. Foi publicado em antologias de novos escritores e em jornais universitários, e é formado em Letras pela Universidade de São Paulo. Os textos acima fazem parte de seu livro A Estante Deslocada, lançado pela Editora Patuá. E-mail: rafercar@yahoo.com




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