Sobre as bibliotecas na minha vida


“Antes, deixa eu ir ali rapidinho”: uma reflexão sobre as bibliotecas na minha vida, minha vida nas bibliotecas

…………….[Imagem de Andreza Nazareth disponibilizada na Internet]

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O subtítulo original deste texto já foi “bibliotecas, sociabilidade e a formação de uma leitora”. A ideia era falar para algumas dezenas de bibliotecários da rede pública municipal de bibliotecas do estado de Minas Gerais, em uma manhã de inverno, no auditório da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa, em Belo Horizonte.

A Luiz de Bessa não é apenas uma biblioteca. Nada tem a ver com as bibliotecas que mais frequentei na vida, especialmente quando adolescente. A Luiz de Bessa, além de um lugar que me parecia quase inatingível, é um monumento. Um prédio da lavra de projetos de Oscar Niemeyer, localizado em uma das pontas da Praça da Liberdade, na capital mineira. Um cenário, uma fotografia, mais do que uma biblioteca. E tanto é assim que muita gente não tem coragem de entrar nela. O espanto do olhar externo ao ver aquelas curvas de concreto, tão paralelas, sinuosas feito quase mais nada ao redor, acaba por paralisar o transeunte.

É uma honra entrar na Luiz de Bessa para falar para pessoas que amam o livro ou que trabalham com ele, mesmo se não o amarem. É imensa a vontade de fazer com que o amem também, afinal todas as grandes escolhas da minha vida têm a ver, de alguma maneira, com este objeto. Para quem gosta, fica a curiosidade: como alguém vive sem isto? Curiosidade meramente egoísta, é claro. Nem precisa ser debatida.

 

Depoimento

Comecei alertando sobre a pessoalidade e a particularidade da minha fala. Um depoimento, mais exatamente, talvez, embora as minhas credenciais de professora-e-pesquisadora me transformassem no que chamam de “conferencista”. Não, eu ia apenas fazer a memória ressoar. Passara dias me lembrando de mim nas bibliotecas, aqui e ali; ou delas em mim. Dias de memória acesa, de procura de documentos que sempre guardei. Era isso e mais quase nada. Talvez uma vontade de conquistar aquelas pessoas.

Isto sou apenas eu. Apenas o que eu vivi em relação ao nosso tema. Não é regra, não é manual, não é receita, não é obrigação, não é pesquisa acadêmica e não agradará a todos. Nem toda biblioteca da minha vida me tratou bem, talvez não fossem minhas preferidas, talvez eu não tenha boas lembranças dos bibliotecários com os quais topei por aí. Talvez a biblioteca nem seja lá a grande peça deste xadrez que é formar um leitor. E se ela for dispensável, especialmente nos dias de hoje? Não me adiantei. Apenas quis dizer que comigo foi assim. Daí as questões de sociabilidade, de formação e de vivência que uma instituição como esta suscita. E mais nada.

Mostrei a bela foto que fiz de um outro monumento: parte das pernas da estátua de Fernando Sabino segurando seu livro O encontro marcado. A estátua dele – assim como as de Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino – está diante da Luiz de Bessa, como se conversassem animadamente até hoje, em alguma esquina da Savassi. Fui lá e focalizei um detalhe deste encontro, que queria ser também uma metáfora para a minha fala, neste encontro de bibliotecários. Já alertei também: não sou bibliotecária. Nunca trabalhei em bibliotecas. Mas o que me traz aqui? Fui usuária desses espaços e eles fazem parte da minha formação como leitora e, também, como escritora.

 

Nada como um poema

Seriam alguns dias de encontro. Alguns dias de discussões sobre as bibliotecas de Minas, ouvindo e falando entre especialistas e profissionais. Por que chamaram uma escritora? Para dissonar? Para distrair? Fiz um outro movimento. Poderia ter buscado um excerto de algum acadêmico; um trecho da teoria de um Fulano bem francês ou inglês; talvez o fragmento de um livro traduzido do alemão, nascido onde a prensa nasceu; não era nada disso. Eu queria arrebatar. O movimento ideal foi, então, ler um poema.

Li um poema de Edson Cruz, com esta minha voz meio embargada, poema do Ilhéu (Patuá, 2013). Poema que amei de verdade. Não era desses que a gente guarda apenas para qualquer serventia. É um poema que se alojou embaixo da minha pele, desde quando o li, em 2013 mesmo. Fiquei com ele, tatuou-se. Não sei direito por quê. Ou sei. Impressão. Levei esse poema porque ele se chama “Bibliotecas”. Mas quantos poemas levam este nome? Poderia ser qualquer um. Mas este… Eu quis dizer sobre bibliotecas surpreendentes, mas tão comuns; bibliotecas sem alvenaria e estantes. Vejamos:

 

Bibliotecas
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A biblioteca do pai de Borges
foi o fato capital de sua vida.
Ele nunca saiu dela, disse.

Em minha casa nunca tive
livros.
O fato capital de minha vida
é não ter tido pai.

Minha mãe foi minha biblioteca.
Ensinou-me tudo.
Nunca saí dela.
Era analfabeta e deveria
ter se chamado Alexandria.

 

Tão, tão humano. Pude ouvir o eriçar dos pelos dos braços de cada um na plateia. Se me lembro bem, houve também suspiros, sorrisos, interjeições, espanto. O que mais pode querer um texto literário?

Mostrei a foto de Edson e a capa do livro, em um grande slide projetado em uma tela branca. Era apenas curiosidade. Quem escreveu este poema? E o paratexto de Ilhéu fala tanto em autobiografia. Sabe lá. O importante para mim era que cada bibliotecário ali reposicionasse o que chama de biblioteca. Não me interessava saber a metragem quadrada de cada prédio em que atuavam, a quantidade de títulos ou de estantes (provavelmente o Ilhéu não habitava nenhuma delas…), quantos funcionários, seus salários, seus concursos públicos, seus leitores em busca de informação pronta, suas datas de empréstimo e devolução. Biblioteca era a mãe! Os fatos capitais de nossas vidas. Toda a humanidade teve um pai e uma mãe. Toda a humanidade tem narrativas sobre esse encontro ou este desencontro. E as mulheres têm sido bibliotecas desde sempre. Não à toa, como comentei, que são público-alvo de campanhas de leitura e que sejam responsáveis por receber o fomento de programas de governo. Geralmente – atentem aos advérbios!, as mães ensinam tudo.

Meu convite era pensarmos uma biblioteca mais humana, em tempos de internet, quem sabe? Uma biblioteca que atenda ao que todos querem: conversar. Será possível? E passei à minha narrativa, depois de mostrar minha carteirinha antiga de cadastro na biblioteca Luiz de Bessa, décadas atrás, com uns cabelos curtos juvenis e certo ar de objetividade.

 

Leitora de carteirinha


Apontei: vejam, minha ficha não foi totalmente preenchida. Fiz com as mãos o gesto da moça que batia o carimbo com a data de devolução, geralmente de mau humor. Riram. Não é isto? Minha carteira tinha espaços em branco, lacunas que não preenchi. Mas como, se eu disse que fora uma leitora frenética?

Nós transitamos. A formação de um leitor é uma trama complexa, cheia de imprevisível e de fortuidades. Transitei entre três tipos de bibliotecas e mais alguma coisa. Vejamos: a biblioteca particular; a biblioteca escolar; a biblioteca de acesso público; e a livraria. Transitei desavergonhadamente. Esses espaços me auxiliaram na busca do que eu queria ler. E a biblioteca pública não era por onde eu transitava mais. Não era. Fazer o quê?

O que chamei de biblioteca particular era um conjunto das pequenas bibliotecas de pessoas donas de livros. Essas pessoas emprestavam seu acervo, sem muito dizer e sem qualquer censura. Foi ótimo. As duas bibliotecas particulares mais importantes da minha formação foram, sem dúvida, a da minha avó materna, formada por clássicos nacionais e estrangeiros, e a da minha tia, cheia de livros juvenis do quilate de Pimpinela Escarlate ou de Chore não, Taubaté. Transitei por essas estantes durante anos, entre livros de capa dura, brochuras volumosas e folhas amareladas.

A biblioteca escolar era aquela que me servia nos intervalos de escola. Minha vida naquele colégio municipal, no qual passei muitos anos, compunha-se de muitas amizades, muitas aulas, esportes, música, lanches e uma biblioteca escura, que funcionava em uma espécie de porão. Mal dava para enxergar os títulos dos livros à luz fraca que vinha de uns basculantes. Uma moça baixinha, em desvio de função, atendia sem muito dizer. Repito: sem muito dizer, exceto porque me estranhava. “Por que você não vai pro recreio?” Bem, eu iria. Mas “antes…”.

Corria furtivamente pelos corredores com o livro tomado de empréstimo, voltava para a sala de aula, guardava meu tesouro na mochila e, aí sim, retornava às atividades normais do pátio escolar. Não pegava bem ser consumidora dos livros da biblioteca. Não havia com quem conversar sobre isso. Nem mesmo algum professor. Não havia ou haveria interlocução. O jeito era ir à biblioteca quase clandestinamente e agir como se nada tivesse acontecido. “Antes, deixa eu ir ali rapidinho…” era o que eu dizia aos colegas de pátio, com o máximo cuidado da imprecisão.

A biblioteca de acesso público era distante. Fiz uso da carteirinha da Luiz de Bessa na filial que existia no bairro, à época. Nem é mais da mesma rede. Um espaço pequeno e precário, com um perfil de sala de estudos, onde muitos jovens, na verdade, iam fazer o dever de casa. Era isso. Nos anos 1980-90, o jeito era procurar a Barsa, a Mirador. Era lá. Usei pouco porque não precisava disso. Conseguia na biblioteca particular da minha avó.

Enciclopédias tinham alto valor simbólico na família. Minha mãe, frequentemente, falava nesses livros, dizia de como eles eram completos e sabiam de tudo. Descíamos a rua à procura dos volumes da minha avó. E em minha própria casa? Nem tanto. (Mais adiante até herdamos a Barsa.) Bem, os poucos livros de minha mãe viviam trancados em uma estante treliçada; os de meu pai eram talvez uma dúzia, de assunto que pouco nos devia interessar.

E eu transitava livremente entre esses três tipos de bibliotecas, incluindo alguns empréstimos de amigos ou de vizinhos. Mas ninguém – nin-guém – com quem compartilhar qualquer trecho, palavra ou espanto. Minha tia, às vezes. Mas pouco havia de mediação nestas leituras. Que vontade de contar sobre as histórias, mas principalmente de como elas se materializavam em palavras perfeitas, às vezes ásperas, às vezes macias. Quem entenderia disso? Um caderno.

 

Caderno de capa dura

Minha tia, um dia, presenteou-me com um caderno grosso, de capa dura, quase um livro pautado. Nele, passei a anotar minhas impressões sobre os livros que lia. Julgava as obras, falava bem e mal, qualificava com estrelas, copiava trechos bonitos, interessantes, impactantes. Manuscrevia tudo isso, como que a conversar com um interlocutor silencioso, mas atento. Dei de compartilhar leituras com um caderno. Prestimoso, fiel. Tenho-o ainda, aliás. Colei em sua lombada a palavra Literatura em letras recortadas de revistas. Encapei-o com contact. Meu amigo desleitor.

Pensando bem, não fosse um caderno e eu talvez não fosse escritora.

 

Livrarias

Transitei. Entre bibliotecas, livros, capas, cadernos e poucas pessoas. A livraria foi meu próximo nó. Era nelas que eu morria de fetichismos. Os livros que eu gostaria de ter. Os mais atuais, os mais bonitos. Os livros com cheiro de gráfica. Os livros do desejo. O desejo de ter minha própria biblioteca, minha, sem datas de devolução, com margens receptivas, meu nome, meus ex-libris, minhas impressões digitais. Minhas escolhas. Meus poetas – ah, a poesia, como era parca em todas as estantes! Quanta lacuna em poetas, meu Deus! Na minha estante, não. A poesia reinaria. E reina.

Duas livrarias me acolhiam. Saía da escola, descia do ônibus e procurava os dois endereços. Garimpava, garimpava, minerava. Encontrava livros novíssimos, atualíssimos. Vez em quando, um vendedor vinha me dizer: este é de um cara lá do Rio; este outro é de um cara de Brasília. Eles estão vivos! Que espanto. E minha imensa vontade de ser um deles? Nem me passavam pela cabeça certas restrições – que descobri muito mais tarde. E ainda bem que não as percebi. Teriam me envenenado, como a tantas moças. Bem, leia! Com o dinheiro juntado de vários lanches não consumidos, dei de comprar livros nessas livrarias. E de compor minha biblioteca particular.

Quando se tem uma biblioteca é preciso tomar cuidados. Não fui uma guardiã tão generosa quanto minha avó ou minha tia. Sou mil vezes mais egoísta, cem vezes mais ciumenta e possessiva. Carimbo meu nome até nas lombadas. Comprei livros, alguns livros, e cada vez mais. Comprei estantes, chapas de aço, madeira grossa. Comprei suportes, comprei marcadores. Um universo e uma arquitetura circundam o livro.

O que eu procurava em cada espaço que eu frequentava? Coisas diversas. O que eu encontrava em cada um? Informação, pesquisa, literatura. O que eu buscava nas bibliotecas, especialmente a escolar e a particular? Atualidades. Eu queria saber de uma literatura que as aulas da professora de literatura não me davam. Aprendi os clássicos, é certo, o cânone escolar, mas não aprendi que a poesia também zanzava pela cidade e pela rua. Não aprendi isso em lugar algum. Só quando comprei livros de vivos. Fui saber do que eu gostava ou não – porque o leitor tem este direito – depois de garimpar, garimpar. Fora dos livros didáticos, fora das aulas, fora da biblioteca de alvenaria. Parte nela, parte não. Transitei. Apenas um amigo se dispunha a visitar livrarias comigo. Um.

 

Compartilhar, afinal

O que eu buscava? Conversar, compartilhar. Não encontrava. O que as pessoas fazem tanto, hoje, na internet? O quê? Conversam, afinal. Do que se servem Facebooks e Twitters? Das conversas de todos entre si, dos assuntos mais diversos, do futebol, da política, do dia a dia, dos acidentes, das campanhas, das opiniões. Essas “redes” são lacunas, são ocos que se preenchem com nossas vozes a fim do papo.

O que eu procurava? Comentar e comentar. Mas com quem? Com meu caderno de capa dura, pois bem. O que vim procurar? A quem mostrar meus fragmentos copiados? Meus trechos destacados? Corte e cole neste espaço em branco sempre aberto para você. Hoje, afinal, não somos mais tão solitários nas leituras, se quisermos. Encontraremos redes inteiras onde discutir um episódio; faremos parte de um grupo consolidado que debaterá cada parágrafo do escritor eleito. Hoje, afinal, minha felicidade não seria tão clandestina.

O que importa dizer, então, é que é preciso atender ao desejo de todos de conversar. Um livro não é silencioso como pode parecer. Um livro é burburinho puro. Um livro lido às vezes é a gritaria. O silêncio das e nas bibliotecas cala os sentidos de ser leitor. Se é vedado o compartilhamento ou se a leitura em voz alta é proibida, melhor fechar as portas. Vim buscar interlocução e atualidades. O que encontrei? Silêncio. E ainda posso me considerar uma privilegiada, afinal nasci em uma cidade onde foi possível transitar. Transitar livremente entre espaços variados que poderiam me servir com livros. E quem não? – afinal, a maioria de nós, nesta terra de silêncios e silenciados… Escolas do século XXI ainda sem bibliotecas ou computadores; um país inteiro de poucas livrarias e congêneres, a rigor, inclusive de leitores-inveterados. Ou um país que só parece país em alguns poucos lugares. Quanto ao resto prefere um silêncio cínico ou uma interlocução falsa. Nossa felicidade poderia mesmo ser nossa, de todos, sem precisar mais, reitero, ser tão clandestina.

 

 

 

 

 

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Ana Elisa Ribeiro é doutora em Linguística Aplicada pela UFMG, pós-doutora pela Unicamp. Professora e pesquisadora do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais. É escritora, com diversos livros publicados, entre eles “O e-mail de Caminha” (RHJ, 2014), que tem aproximado estudantes do ensino básico da Carta de Caminha, e “Novas tecnologias para ler e escrever” (RHJ). E-mail: escrevaquerida@gmail.com




Comentários (1 comentário)

  1. Alessandra Assis, Estava presente….que delícia foi viajar com suas memórias…. seu humor e leveza ao apresentar nos faz querer saber cada vez mais… e q achado foi o poema de abertura…. ameiiii
    3 julho, 2016 as 11:03

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