Sitiocidade


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Certo, Genésio. Confio na tua bosta (Ahhhh! Love is in the air!).

Quando receberes a minha carta, estarei a caminho do nosso destino, pegaremos trens diferentes, mas chegaremos no mesmo momento, cálculos ilógicos e lógicas incalculáveis de Belzebu Te-ama e de Belezura Também; dizem os Dois, não falamos, dizemos, digo aos Dois

Olá, pois não? Gioconda Lívida de Existência, muitíssimo prazer, toda vez que volto sou outra, outra da mesma, pois então, mais uma vez, muitíssimo prazer. Há quanto tempo não nos encontrávamos! Quanto tempo faz este há? Peraí, preciso contar os dias, verificar os meses, talvez até os anos, preciso estabelecer o tempo, um ano e três meses? Três meses ou uma fina fatia de dia que passou e nem percebi? Ou percebi demais? Perceber demais dá nisso, ruptura, névoa, e? Preciso de um calendário, onde estará o calendário? Estranhíssimo, o calendário da parede da cozinha sumiu, o que o arrancou da parede? O vento, provavelmente o vento, não há outra explicação. Por que preciso de explicação? Pelo mesmo motivo pelo qual preciso de um calendário. Ah, mas eu tenho outro, seguramente, eu tenho outro, o calendário na prateleira da sala, onde estará o calendário? O calendário da prateleira da sala também desapareceu, estranhíssimo, a janela está fechada, o vento não foi, quem o tirou daqui? O gato, provavelmente o gato, a explicação mais razoável. Para que serve o razoável? Para a mesma coisa que serve um calendário. Mas eu não tenho mais calendários, tinha somente estes dois, nunca fui muito precavida. Para que serve a precaução? Para não se tornar um ser composto apenas de brumas, um espelho possuído pelo vapor. Ah, mas eu ainda posso medir o tempo com a saudade, a saudade é a prova definitiva da existência do tempo. O que faço com a saudade esmagadora dos instantes de acuidade e quietude? Deixo que o tempo a leve para uma dobra macia da memória, a dobra que se chama lembrança terna, durante tal espera evito a música e o jasmim, estranhíssimo, ainda assim o tempo pesa e desaparece concomitantemente, parece tão irreal quanto eu, o tempo cada vez mais se confunde com o sonho, estranhíssimo? Os relógios também desapareceram, os sinos nem sequer existem, o sol se locomove mas permanece imóvel, no rádio silêncio, só silêncio. E Agora? O que faço com o silêncio absoluto? Como vivo com a ausência da medida? Ou a ausência da medida significa que estou morta? Mas como estarei morta se vejo tanto e tão fundo em nada e em tudo? Se viver é ver, estou mais viva do que nunca. Querem saber o que vejo? Vejo a reconciliação das gêmeas xifópagas Maria Louca e Maria Lúcida, vejo as duas as gargalhadas, deitadas numa Montanha imensa de papel, picotando em vários pedaços os meus calendários, não apenas os meus, a Montanha é muito alta, elas já devem ter feito isto antes, elas já devem ter feito isto com Outros, elas devem fazer isto SEMPRE e AGORA, com aqueles que como eu são pouco precavidos, com os muito precavidos Maria Louca e Maria Lúcida brigam de ser duas, mas são uma, meu Belzebu Te-Ama e minha Belezura Também, e como são uma! Olá, pois Sim, Gioconda Lívida de Existência, muitíssimo prazer, toda vez que fico sou outra, outra da mesma, pois então, mais uma vez, muitíssimo prazer. Sintam-se em casa, ah, é exatamente o que querem, se sentir em casa, mais até, querem intimidade dentro dela, querem um lugar para passar a noite de núpcias, ah, então se casaram? Ah, são casados há muitíssimo tempo, no tempo sem calendário, SEMPRE e AGORA amantes, eu que ainda não tinha visto, eu que percebia de menos, perceber de menos dá nisso, distância, venda, e. Pois bem, que seja feita a vossa Vontade, cedo-lhes todo o meu sítio, a varanda, o porão, os lampiões, as cercas, os cobertores, a minha cama. Viajarei em breve, ah, já sabem do destino, sabem inclusive que os trens serão diferentes, mas que a chegada será no mesmo momento, sabem que o Genésio sente saudade, sabem tanto quanto eu que o Genésio me ama, pois bem, Belzebu-Também-Te-Ama-Belezura, Belezura-Te-Ama-Também-Belzebu, Sim Sim, o meu Sim e o teu Sim, o sítio é de vós, que seja feita a nossa Vontade.

 

Genésio, andemos.

Beijos e até breve.

Gioconda Lívida de Existência Nua e Repleta,

 

 

 

 

 

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Isadora Krieger é de Santa Catarina. Começou como estilista da marca Gêmeas, criou coleções e produziu desfiles. É idealizadora e produta do Cabaret Revoltaire, espaço aberto a experimentações artísticas em diversas linguagens. Publicou poemas na antologia Portapoema, pela Publicações Iara, em 2011. E-mail: gemeas1@hotmail.com

 




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