Sincretismos em fluxo


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Esta narrativa de Mauricio Salles Vasconcelos carrega em seu título o gênero para o qual inventivamente acena: a telenovela. Esse gênero, que ganha vulto no corpo e ao longo das páginas do romance, paraleliza cenas advindas dos enredos que saltam à tela da TV com histórias de personagens imersas no contexto amargo da vida familiar retratado na obra. O submundo das drogas, a complexidade presente nos relacionamentos afetivos, os expedientes circunscritos à carreira e à pesquisa universitárias aí se intercruzam, constituindo uma teia muito bem desenhada.

Mais de uma voz assume a narração. O leitor é inicialmente introduzido na rotina de Sara, que registra os seus infortúnios e desassossegos, educando os filhos Avelino e Aurora com o pouco dinheiro conquistado graças aos bordados, somado à pensão deixada pelo pai. Por sorte, o companheiro, antes de abandonar a família, providenciara a reforma da casa de dois andares em Engenho, bairro do subúrbio carioca; e é nessa ampla residência que Mãe Sara – inclinada a práticas místicas, influenciada por determinado homem de quem é consulente – decide construir em um dos cômodos o altar destinado à realização do seu próprio trabalho como vidente.

A morte dessa mulher, altamente identificada com certa atriz de nome Sarita Vizeu, de quem recolhe e arquiva fotos de revistas, acompanhando cada um de seus sucessos nas telenovelas, funciona na trama como ponto de partida para os relatos e a efetiva exposição dos dois filhos da proprietária do imóvel. (Avelino é traficante, viciado em cocaína e em óxi; Aurora, professora universitária bem-sucedida na área dos estudos de Literatura Comparada, à frente de um núcleo de pesquisa voltado a questões do mundo global, afinado com as realidades culturais.)

O curso do tempo confiado à venda da casa de Sara torna-se exponencial. Esse intervalo ora implica ora sela o retorno dos irmãos ao espaço tomado pelos pertences da falecida – objetos para a adoração, manufaturados ao gosto e à crendice populares. A um pano de fundo rubricado pelo luto assomam-se as lembranças, as cumplicidades, a revisão dos fatos e dos caminhos obscuros da existência humana; assomam-se a ele, ainda, as tentativas de acerto das personagens, visto que Avelino luta pelo abandono das drogas e pela reaproximação com o filho (também dependente químico), ao passo que Aurora, em suas vindas frequentes à casa da qual estivera há muito afastada, encontra, no grande sobrado, o material para desenvolver com Nívea, professora assistente e sua ex-orientanda, o anexo para um livro expressivo em registros que atestem os rituais envolvendo a magia, a rigor empregados para trabalhos de cura.

Lê-se que a “Médium-Vidente”, no seu exercício, “quis dialogar com muitas crenças, por mais que seu altar se pareça um pequeno oratório doméstico, sob a forma de capela doméstica” – e tantas figuram “as linhas espirituais reunidas no Altar”. Mapas, representação de “pequenos animais introduzidos ao rito”, visando a “fins energéticos, às cerimônias”, bem como “alguns desenhos de astros”, sem contar a sequência de números e nomes de pessoas, vêm totalizar o arsenal das peças inventariadas.

Aqui, como em demais escritos de Mauricio Salles Vasconcelos, o fluxo do pensamento, atado à palavra performaticamente encenada, com força e vitalidade, conquista uma latitude surpreendente. Adicione-se a essa potencialidade verbal a capacidade do autor na retenção das mais significativas nuanças, amalgamando fragmentos que traduzem a incompletude do sujeito contemporâneo marcado pela dissolução, à deriva, pois, das incertezas e das transitoriedades que nos tangenciam. Sobretudo nesse aspecto, a narrativa em questão dialoga de perto com o que o pós-estruturalismo problematizou no campo dos estudos da teoria literária. Isto é: o signo em seu processo de estruturação, à escuta do jogo que perfaz os vários discursos responsáveis pela feitura emaranhada do texto.

No tocante aos impasses que matizam as personagens desse romance, Aurora é sem dúvida exemplar. Ela incorpora a ambivalência de seu tempo histórico e hesita quanto à concretização dos próprios desejos. Os seus olhos contemplam com interesse a união homoafetiva entre Nívea e Bela (uma jovem estudante), e o seu corpo (embora tente resistir) acaba cedendo ao chamado instintivamente sexual, em busca de uma satisfação incapaz de lhe preencher a solidão – seja o amante, portanto, o homem com quem estivera casada, seja então o primeiro namorado (para quem não pôde se entregar), seja o rapaz que decidirá sobre a destinação de verbas para um empreendimento de pesquisa; em meio a isso, fica sugestivamente no ar um flerte, uma ação interditada com o jovem Rez, recém-chegado de um país vizinho, na esperança de tê-la como orientadora. Por ora, encontra-se instalado em uma sala de escritório de Aurora.

Livros, teses, congressos. Rio de Janeiro, Brasília, México. TV de tela plasma ligada, a anunciar cenas da recente novela de sucesso. Rondas de táxi. Recontagem, memórias e filmagens. Reencontros. Simulacros dinamizados… Tudo isso se espraia e se intensifica na escrita de Vasconcelos, na medida em que imanta lirismo à marginalidade e confere à transgressão um sabor indescritível.

 

 

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(VASCONCELOS, Mauricio Salles. Telenovela: romance. São Paulo: Giostri, 2014.)

 

 

 

 

 

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Ricardo Iannace é Doutor em Letras pela USP. Professor na Faculdade Estadual de Tecnologia (FATEC) e docente colaborador no Programa de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa (FFLCH-USP). E-mail: ricardoiannace@uol.com.br




Comentários (1 comentário)

  1. Daniela Kahn, Em linguagem expressiva e bem cuidada, a resenha de Ricardo Iannace valoriza a narrativa de Maurício Vasconcelos ao colocar em relevo as suas subtramas e os personagens que as movimentam em busca de sua realização pessoal e material. Temas bem brasileiros(e novelescos) como os desencontros familiares a vidência, o submundo das drogas e a pesquisa literária se entrecruzam e se combinam para constituir o enredo dessa “Telenovela”.
    5 novembro, 2014 as 17:01

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