Sentimento nu


……………Sentimento nu (sobre a poesia de Lau Siqueira)

 

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  1. 1. toda palavra

‘           Lau Siqueira (Jaguarão-RS, 1957) é poeta e ativista cultural. Reside em João Pessoa desde 1985. Orgulha-se de dizer que nasceu no dia 21 de março, Dia Internacional da Poesia. Como se vê, ele é poeta até por vontade dos deuses.

Desde que li, pela primeira vez, Lau Siqueira – e foi via Internet – sua poesia, concisa e substantiva, me chamou a atenção. Há nela provocação, provocações. O leitor inquieta-se com o sublime do lírico, a irreverência do satírico, o despojamento do coloquial, a reflexão haicaísta, o experimento concreto, o engajamento maiakovskiano, as pitadas pessoano-leminskianas. Está tudo nela. E ainda uma esnobada, muito bem arquitetada, com a displicência irresponsável da poesia dita espontânea.

Na matéria de base de sua poesia, que se caracteriza pela integridade da expressão poética, o tema sempre fica fora de foco. Distorção do dito pelo sugerido. Nada a ver com simbolismos evanescentes. A matéria concreta, da palavra e do referente, consubstanciam esta poesia que é pedra e é pó.

Era isto, então: em meio à porrada poética de um rigor pouco usual entre os poetas contemporâneos, a provocação do inconcluso. Algo de sólido desmanchando no ar. Ou desmanchando na página de um grande jornal, em ondas – mas próximo aos pés – como mostra a ilustração da capa deste Sem meias palavras (2002).

De novo o jogo matéria concreta e matéria pulverizada. Os pés, que sustentam-nos no chão, estão ao ar, apontando para o alto, para o título  do livro – que Joana Belarmino leu bem como Semeias Palavras. Isto mesmo: o leitor é chamado a ser parceiro-semeador do poeta no campo da palavra. Mas igualmente é convidado a ser parceiro-descodificador dos poemas que nunca caem na ingenuidade do didatismo – um dos piores inimigos da poesia.

Eis a surpresa: descodificação? Mas, como, se os poemas do Lau são tão simples? E de fato o são, sim. E quem disse que a simplicidade é sinônimo de facilidade? Fosse assim, teríamos milhares de Manuéis Bandeira. Temos um só.

Lau consegue tomar a simplicidade e vinculá-la aos requintes de uma linguagem poética que não se entrega de imediato. Estou seguro de que entrega-se parcimoniosa e incompletamente muitas e muitas vezes. Como toda boa poesia.

E o que provoca o leitor nos poemas de Lau, o que atiça-o na busca de novos significados, percebe-se depois, é o deslocamento contínuo que o poeta promove do referente, numa entonação melódica que mais preenche o leitor de significantes do que de significados propriamente ditos.

Resultado: fazendo uma leitura radial destes significantes o leitor começa a vislumbrar alguns contornos de uma rede de possíveis significações – todas devidamente escamoteadas pela musicalidade de sua poesia.

Música é Forma. A música informa-nos pela Forma. Ninguém jamais perdeu tutano reclamando que isto seja alienação. No geral, curtimos música e ponto. Ora, a música de Lau Siqueira nasce da palavra num rol de metáforas, símiles, antíteses, contrastes, paronomásias e até parábolas. Mas tudo arranjado num jogo de paralelismos muito bem arquitetado, realçando proximidades e destacando dessemelhanças.

Há uma coisa – mas falta outra. Àquela assertiva segue um abismo de indagações. Sempre fica faltando um pedaço nos poemas de Lau. O que é que acontece de fato? O poeta  não invoca o referente pelo seu nome, nem por codinomes chapados em imagens clichezadas. Lau chama o sentimento (sua poesia é quase sempre expressão de um sentimento diante do mundo pensado) descrevendo-o como se o sentisse pela primeira vez. Melhor: como se este sentimento estivesse sendo sentido/pensado pela primeira vez pelo leitor. Ao tomar o senti(pensa)mento como pessoal, Lau singulariza-o e torna-o, assim, universal desde o seu mínimo detalhe polifônico.

Não se re-conhece o mundo do qual o poeta fala, mas ele é sentido e pensado na sua singular materialidade. Isto quer dizer que o Lau libera a  percepção, a sensação e a reflexão do automatismo prosaico. E aí a percepção do leitor (percepção lógica e subjetiva) dirige-se e concentra-se na linguagem poética, chamando atenção para a palavra no poema. Assim, sua poesia estabelece-se enquanto duração. Ela dura,  permanece, fica. Ganha o leitor, imantando-o com o novo objeto.

Para chegar a este novo objeto (instaurado pelo poema), o leitor tem de vencer a  dificuldade criada pelo poema: a coisa a ser apresentada surge do inesperado, como se o acaso se fizesse senhor do jogo.

Em parte sim. E em grande parte não. Lau me disse, certa vez, que é mais  coração do que cérebro ao fazer os poemas. Acredito nele, mas estou convicto de que ele mente. Lembro, por exemplo, que os cordelistas negam-se a reconhecer os processos estruturais e estruturantes de sua poesia – mas reagem energicamente ao primeiro sinal de quebra destes elementos.

Lau pode não pensar na hora H, mas sua poesia é cabeça-&-coração ao mesmo tempo. Tal como no verso pessoano: “o que em mim sente está pensando”.

Ao leitor cabe entrar neste jogo e saber que  sempre sentirá a falta de algo. Sempre haverá um dentro reclamando de um fora. Um fora que não se basta e berra por um dentro. Há uma parte que busca o todo e um todo que não se basta na unidade. Há o vazio querendo o preenchimento e um preenchido exangue de ser uno. Este movimento incessante de incompletude e busca é o que faz com que a poesia de Lau assuma o sólido e o pulverizado, numa linguagem que se vale de artifícios concisos, densos, rigorosos.  E à qual não temo nomear, neste livro, linguagem neobarroca.

Lau é neobarroco na condensação de significantes  que explodem numa cadeia de dissimulações de sentimentos universais, sempre anunciados e adiados. Por isto mesmo Sem meias palavras faz jus ao chamado de semear palavras. Não ideias.  Palavras. A palavra é a matéria de Lau Siqueira. Objeto de deleite erótico, neobarroco e minimal.

 

  1. a pele da poesia

Bandeira nos surpreende pelo inusitado do cotidiano visto tão de perto que nem parece real(idade). Drummond nos pega com peças do dia a dia expostas tão ao sol e à luz que parecem de cristal, ao invés de barro. Cabral revolve a matéria com tanta força e gana que nem parece que uma construção organizada vai resultar dali. Augusto toma a palavra contra tudo e contra ela, de tal forma que sua poesia parece saída da concretude de uma betoneira.

E eu poderia seguir falando assim, à moda de um crítico caipira apaixonado pela leitura de poesia, mas prefiro dar um break e mergulhar na poesia de Lau Siqueira.

Reafirmo que é uma poesia estonteante. Estonteante naquilo que nos toma de assalto, nos desinstala, nos põe chão abaixo, toma posse de nós e, por fim, nos leva ao alumbramento. Principalmente, como vimos anteriormente, no caso neobarroco de Sem meias palavras, em que o sentido é escamoteado (ou mesmo surrupiado), deixando o leitor à cata de. À cata da Coisa que se busca. Coisa que se oferece mas não se entrega. O jogo da linguagem poética consigo mesma, numa metapoesia que (e)leva o leitor à condição de coautor e copoeta: cúmplice de um ludismo em forma labiríntica.

Já no ultra lírico Texto sentido (2007), e no quintaniano Poesia sem pele (2011), temos um Lau Siqueira diferente no uso da linguagem poética. Ele abandona o neobarroco – ainda que a sensibilidade, de seu modo de olhar e sentir o mundo,  continue presente de forma incisiva.

Esta é sua grife poética: a revelação do mundo, do cotidiano e do social indo até o mais extremadamente íntimo e particular. Sua poesia percorre o arco que discorre do todo ao uno e do um ao todo. Ela nunca teve pele, casca, casacos. Sempre foi crua, nua, inteira. Ossatura de estrutura dura. E ao mesmo tempo, amorável.

Quando neobarroco, a busca pelo objeto perdido dava-se às claras – iludindo o olho do tolo que interrompia a corrida para apanhar as bolas de ouro de Atalanta – como no festejado poema “Elegia, indo para o leito”, de John Donne (1572-1631), em tradução de Augusto de Campos.

Seu neobarroco é um modo particular de perder-se na simplicidade (aparente) das palavras corriqueiras, das imagens cotidianas, da linguagem coloquial. Ele sabe driblar a sintaxe enviesada, retorcida, invertida do neobarroco e criar uma perda do objeto sob a claridade – e não mais sob as sombras e nebulosas da corrente na qual se inserira. Ele sabiamente também sabe ser neobarroco “ignorando” as características deste movimento.

A poesia de Lau é feita de miríades, de filigranas, como requintada e nobre ourivesaria. No entanto, seu rigor se apresenta como despojamento, tal a leveza com a qual consegue resolver questões poéticas e existenciais mais delicadas. Seja num trocadilho ou num paradoxo, a mirada de sua poética está na abordagem que ele, ao lado de poucos e raros, dominam na cena da poesia brasileira contemporânea.

Parcimônia. Frugalidade. Sobriedade. Humor davinciano à la Monalisa. O inusitado retirando o leitor do cotidiano e entranhando-o na linguagem da poesia. A palavra como matéria viva, prima, osso. A linguagem como domínio de expressão rigorosa do ser, do objeto, do sentimento, da cena, da reflexão.

Enfim, reiteramos, uma poesia de lastros no pessoal e no social, indistintamente. Isto faz com que ela se destaque no marasmo de coisas e loisas feitas à revelia, em desrespeito à sensibilidade e à inteligência do leitor. Mais: sem respeito ao repertório crítico-poético do leitor minimamente antenado com o estágio que a poesia brasileira contemporânea atingiu.

Vejamos, en passant, um poema de Poesia sem pele: “Macambúzio”

 

a solidão

é um passo inseguro

para dentro dos próprios

muros

como se em nada

além das palavras

houvesse luz

a solidão é esse barco

que jamais naufraga

ou sai da deriva

.

A solidão desnudada nos intramuros pessoais, “jamais naufraga / ou sai da deriva”. Solidão, solidão, vasta solidão. O poeta não precisa da repetição para enfatizar o sentimento: ele o nomeia entre imagens, sonoridades e deslocamento das palavras na página em branco.

Solidão. No entanto, há uma saída e ela mora na palavra. Palavra de poeta. Palavra pra uso do poeta. Fiat lux. Faça-se a palavra. Palavra, companheira. Ela acalenta o poeta e o atordoa. Ela é sua meta e seu desafio. Jamais naufraga. Jamais deixa a deriva. Vive neste vaivém do movimento dos barcos. Das ondas das águas.

O poeta, assim, é um sujeito macambúzio, errando taciturno da proa ao leme, do leme à proa. Sua solidão é universal. Por isto o leitor sente-se contemplado na perplexidade, que é mútua.

Outra coisa: a poesia de Lau é poesia da afirmação. E da conceituação. Por isto mesmo o verbo ser, na terceira pessoa do presente do indicativo, (pre)domina. Isto implica um raciocínio que tende para a lógica, para o pensamento, para a ideia, para a opinião. Coisa de filósofo, não de poeta.

No entanto, esta “lógica” é desestruturada pelo uso, também recorrente, das metáforas, dos “conceitos indefinidos”, da semântica coloquial que é vencida pela força magnética (diria mesmo: hipnótica) do ritmo de cada poema. Para Lau, também em Poesia sem pele poema é, acima de tudo, música.

Um exemplo, catado a esmo, desta pseudo lógica, apoiada na conceituação, encontramos em “pensamento / é plano sem planos” (p. 27). Eis a definição. Eis a indefinição. Este jogo de dizer não dizendo, ou dizer ao espelho, percorre todo o livro, como a criar elos entre os poemas. Elos amarrados por uma musicalidade que nasce da rítmica engendrada por cada palavra, numa ciranda de versos. (Considere-se, aqui, a recorrência da aliteração do /p/ e a presença da assonância no uso da nasalização).

Este modo de tomar a palavra e vertê-la em poesia, dentre tantos, é uma das marcas registradas deste poeta. Dentre mantras, tantras, magia, dissimulação, iconoclastia escondidos por entre versos – sempre pontuados pela primeiridade peirceana da música. Puro sentimento de qualidade de som: “e a vida baila / em disfarces” (p. 57).

O poeta sabe desconstruir a sintaxe contagiada e contagiosa. No compasso dos passos da balada, do baile, da noite de gala, ele pulsa a vida mascarada. A vida de personas. A vida tal como ela é: representação. Fantasia. Carnaval. Com brevidades de quaresmas.

Neste ponto sua poesia toca a existência naquilo que ela tem de essencial: “real e de viés”, como nos lembra Caetano. O que é e o que não é, como nos ensina a filosofia.

Mais que flertando – copulando – com a música, a poesia de Lau é um canto de rock, um bolero, um frevo, um tango, uma habanera, uma milonga, uma sonata. Cada poema traz impregnado em si o ritmo, a harmonia, a melodia, a musicalidade que os versos envolvem em uníssono.

Há a música bandeiriana que o Lau desentranhou das vivências quintanianas. Há o rock pesado que o metal de alguns versos carregam em alta voltagem. Há tanta música quanto poesia. Por isto mesmo, Poesia sem pele: “poemúsica” na pele da gente. Pra suspirar fundo. De tanta imensa beleza nua. Desconstruindo.

 

  1. 3. outra poesia

 

No silêncio de seus versos, na calmaria de sua poesia, Lau Siqueira vem dando nova feição à cena brasileira hoje. Ele atua de soslaio, na contracorrente da onda que morre na praia. Como quem nada quer – e tudo faz – está redimensionando nossa poesia a partir de temas cotidianos e prazerosos – quer seja: mundanos. E um jeito de corpo com a palavra que a desnuda e obscurece ao mesmo tempo. Cria uma linguagem da vida nua e crua. Sem pele. Pano sobre a carne. Que explode em epifanias e alumbramentos.

Em Livro arbítrio (2015), desde o título o poeta sinaliza para duas linhas principais de sua poesia: o uso de trocadilhos e a liberdade de experimentar. E experimenta a linguagem partindo tanto de novas como de tradicionais formas poéticas. E toma a vida sob um outro olhar – o de quem está dentro mas sabe viver fora. Daquele que habita aqui, mas respira mais além. Por isto anuncia: “viver é voar / até sumir”.

Opera sempre com a leveza de quem não tem pressa. De quem se move na companhia de poetas consagrados, ao mesmo tempo que está inserido no tutano da produção de nossa poética contemporânea.

Ao fazer uso dos trocadilhos, um dos recursos que remontam à Antiguidade Clássica, Lau ratifica uma das colunas dorsais de toda sua poética até agora: lançar os dados das palavras, sons e ideias, numa ciranda de eterno retorno. E de eterna busca em espiral.

A imagem do círculo e a da curva em espiral, associadas à da elipse, compõem a tríade geométrica de sua dicção. Condensada. Singular. Significativa.

Ele recicla os trocadilhos com fina inventividade. Desinstala o leitor e revitaliza o poema através da desestruturação das percepções usuais.

Eis uma das delícias de sua poesia: a iluminação, da qual vislumbramos um tisco. E, no entanto, nos possui em plenitude.

Quando experimenta a partir de formas fixas – como o soneto, o haicai – e quando lança mão do poema longo, como fizera anteriormente apenas em Texto sentido, o poeta embrenha-se numa selva selvaggia traiçoeira: revolver os modelos consagrados – ou o jeito engessado –, e embrenhar-se num modo que ainda não explorara.

Ao visitar tais formas, o poeta maravilha o leitor com a beleza do amor dentro da saudade. Tomemos seu soneto “Nervos devassos”:

 

esse riso que atravessa o silêncio
vindo duma porta aberta um palmo
antes da mesma escala geométrica
de outras tantas portas incertas…

onde o risco é a orelha de van gogh
cuspida num hálito de aço sangrado
na santa ceia dos olhares mutilados
pela essência de uma bolha de ar

não tenho sensações que possam
medir esse jeito esquisito quando
qualquer acerto a solidão desova

no máximo desfaço-me dos eixos
numa trova sumária na veia deste
estranho que do espelho diz sim

 

Predominantemente decassílabo, o poeta desafina o ramerrão da escansão ao inserir versos octossilábicos e um alexandrino. Assola (no sentido de invadir e pôr a descoberto) a forma tradicional, tornando-a mais próxima do texto poético: a “escala geométrica” trinca-se em “portas incertas”, já que, pontua o eu lírico: “não tenho sensações que possam / medir este jeito esquisito”.

É assim que o poema comenta, isomorficamente, o que diz. Ou seja: a forma e o fundo estão em interação recíproca e verticalizada. O que se afirma é ratificado pelo modo como é feito. As quebras de expectativas (da vida) associam-se às quebras (das formas) do soneto, que reincorpora/remete/recicla o título (e o tema) da canção “Nervos de aço”, do amoroso imprescindível: Lupicínio Rodrigues.

Ao lançar mão de outra forma fixa, a dos haicais, que a modéstia do poeta nomeia “tercetos”, os jogos verbo-visuais e sonoros incorporam, à perfeição, a síntese temática e tropicalizada deste jeito oriental de fazer poesia. A homenagem a Alice Ruiz revisita e lança nova luz sobre a rica produção desta poeta.

Ao nos referirmos a Alice Ruiz, lembramo-nos dos versos “quando eu tiver setenta anos / então vai acabar esta adolescência…”, de Paulo Leminski. E no poema “Black bloc”, de Lau Siqueira, a voz que fala, fala do mesmo megafone do polaco-curitibano:

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rebeldia
não tem idade

aos vinte
joguei pedra
na lua

aos cinquenta
desafio a lei
da gravidade

.

O mestre foi revisitado no protesto, na malandragem, no amor. Em golfadas de grafite certeiro.

Nos outros poemas curtos o trocadilho vem associado, não raro, ao chiste. Aquele do riso entre-lábios e que satisfaz até a alma. Em “Filosofree”, que abre o volume, já se vislumbra seu projeto:

 

dialogar
com o vento

mesmo
sem ar

eu tento

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O eu lírico é aquele que busca aos quatro cantos a leveza e a oxigenação dos ambientes. A vida sem amarras e sem limites. Ele quer tudo leve e ventilado.  Daí, “dialogAR” “mesmo sem AR”. PoetizARnos atos de inspirAR e expirAR.

Nos poemas discursivos, que se caracterizam pela modalidade logopaica da linguagem – quer seja, pela exposição de ideias, procedimento caro ao barroco, ao neoclassicismo, ao romantismo, por exemplo – Lau não teme bater de frente numa fronteira delicada: a do didatismo, primo-irmão da poesia panfletária. Tal como fez ao valer-se dos trocadilhos, aqui também ele dá asas às ideias, sem trincar o cristal do poema.

Estes poemas longos vêm marcados, por via de regra, pela memória familiar – tinta de dor. O sofrimento, no entanto, não imobiliza. Antes: impulsiona as asas do voo “em busca da melhor / ventania”. E o vento, dentro do poema, mimetiza-se no corte sintático que desloca o objeto direto para voar sozinho no penúltimo verso de “Cerro da pólvora”. Vale conferir. Objeto identificado. Mas inusitado.

 

era um tempo de luto
intenso e pequenas
alegrias

a espora o trapo e um
riso farrapo escondido
na sombra silenciosa
das figueiras

o mundo era longe

mais longe era o cerro
da pólvora na planície
escancarada

carne viva no pasto
de um caminho
sem volta

a vida renascendo
nas pedreiras

onde os olhos
tristes da minha avó
sorriam amparados
pela ternura

até que o mundo cercou
minha alma e minhas asas
ainda tão pequenas saíram
em busca da melhor
ventania

pra nunca mais voltar

.

Em “Silêncio”, a dor imiscui-se no ritmo drummondiano e “engasga / num desaguadouro / de lágrima contida”. Não há vazão. Há retenção. O poeta abisma-se na perda da própria irmã. O que dizer diante do inexprimível? Exprimir-se. Parcimoniosamente.

Em “Silhuetas do hábito” a dor atravessa o mundo “em pelo. No lombo redomão”. A vida segue ao arrepio da memória infantil. Dentro dos pampas. No galope dos cavalos indomáveis.

Eis, sucintamente, dois (dentre outros) modos poéticos deste livro pleno de miríades & de filigranas – que se oferece como requintada e nobre ourivesaria.

Lau é o feliz proprietário de uma poesia que toma-nos de baixo ao alto – de assalto. Reverte nossa percepção. Põe-na chão abaixo. Toma posse de nós. E, por fim, depois da epifania, leva-nos ao alumbramento do cavalo de terreiro.

Com sua escrita mansa, Lau desconstrói a sintaxe contaminada e contagiosa. Toma a língua submissa e domesticada, torcendo-lhe em raios e chuvas imprevistos. Tudo com a leveza e o entretenimento dos jogos brincantes de sons e sentidos. Sua poesia sabe fazer o leitor feliz.

Esta parece ser sua cartografia: mapear campos e espaços, domínios e fronteiras da palavra como compêndio de revolução, alumbramento, livre arbítrio – e livro arbítrio.

 

 

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[capítulo inédito do livro Lirismo com siso; notas sobre poesia brasileira contemporânea, de Amador Ribeiro Neto, a ser publicado pela editora Ideia, de João Pessoa, ainda em 2015]

 

 

 

 

 

 

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Amador Ribeiro Neto nasceu em Caconde (SP), em 1953. Autor de uma dissertação e uma tese de doutorado sobre a criação lítero-musical de Caetano Veloso, recebendo os títulos de mestre em Teoria Literária pela USP e doutor em Semiótica pela PUC/SP. É autor de “Barrocidade” (Landy Editora, 2003). Integra as antologias Na Virada do Século, organizada por Claudio Daniel e Frederico Barbosa e Poemas que escolhi para as crianças, organizada por Ruth Rocha. Atualmente vive em João Pessoa, onde leciona na UFPB.  Durante muitos anos escreveu regularmente crítica literária em diversos jornais de São Paulo. O autor escreve periodicamente nos blogues augustapoesia e em festassemiotas. E-mail: amador.ribeiro@uol.com.br




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