Scheerazade & o Sultão


Scheerazade & o Sultão: narrativa e neurose

 

Gosto de escrever histórias, de contar histórias, inventar, ouvir e ler narrativas em prosa de ficção. Consta que todos os povos da Humanidade, desde os mais antigos, manifestam esse bom gosto em seus costumes.

Há felizes motivos para tais prazeres, associados ao que nos ensina e aprendemos com a literatura oral e/ou escrita em prosa imaginada.

É algo que cresce de significado se concordarmos que a própria História da Humanidade – conforme assegura o filósofo Hans Magnus Enzensberger – é a seu modo uma vasta obra de ficção coletiva.

São infinitos os exemplos de ensino e aprendizagem presentes na prosa de invenção. Saberes que reafirmam a importância do conhecimento expresso e vivenciado nas narrativas contadas oralmente e/ou escritas através dos tempos para seus ouvintes e/ou leitores.

Bem sucedido ensino, sensível aprimoramento da arte de viver para quem se entrega às tramas de um texto e às controvérsias de um enredo criativo, presentes nos cenários, valores, procedimentos e ânimos contraditórios das personagens.

Conjunto que faz de toda narrativa de invenção um expressivo painel alegórico, simbólico, realista e/ou fantasioso dos modos de vida, dos sentimentos, dos fatos de dada época e do cotidiano da História social conforme são contados e/ou escritos.

Toda a literatura em prosa de ficção fornece esse mundo vivo, um acentuado conhecimento objetivo e/ou subjetivo, à vivência, à experiência existencial de seu ouvinte e/ou leitor.
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Antiga terapia

Em síntese, essa situação da narrativa é o propósito do tema e da tese de Purificacion Barcia Gomes, em “O Método Terapêutico de Scheerazade”, valioso ensaio da escritora, publicado em livro, no início deste século, pela Editora Iluminuras/SP.

À primeira vista o título da obra traz algo de aparentemente contraditório. A terapia é uma atividade datada, sendo uma criação clínica do século XX, bastante distante do assunto proposto. Impasse que a autora resolve no desenvolvimento de seu estudo.

Scheerazade, bem se sabe quem é.

Trata-se da corajosa e hábil princesa que conduz os relatos do clássico “As Mil e Uma Noites”, contando histórias plenas de aventuras e moralidades para o marido, o poderoso e sanguinário sultão Shariyar, senhor de Samarcanda Al-Ajam.

Shariyar encontra-se infinitamente triste e humilhado.

Traído pela primeira esposa e cercado por notícias de perfídias amorosas, o sultão tornara-se um homem doente. Com a alma ferida e o corpo enfraquecido, descrente da Humanidade, está certo de que jamais será amado de verdade.

Cheio de ressentimento e ódio, Shariyar temia obsessivamente ser traído por outra mulher. Desde então passara a dormir cada noite com uma virgem diferente de seu reino, determinando que a moça fosse decapitada na manhã seguinte.

Cresce a lista macabra de vítimas do tirano, até chegar a hora e a vez de Scheerazade se entregar a ele.

Princesa de Samarcanda Al-Ajam, pois filha do vizir que serve ao sultão, ela não se intimida.

Vai ao encontro do soberano disposta a pôr fim na matança.

O que faz Scheerazade para cumprir seu desejo?

Nada mais, nada menos do que contar histórias a seu rei.

Contos fantásticos, eróticos ou épicos, moralidades, fábulas e mesmo anedotas que se estendem por mil e uma noites, uma após outra, com Shariyar sempre adiando o cumprimento da pena de morte, ansioso por saber dos relatos que seguem narrados pela princesa.

Na culminância dessa prática noite após noite, o sultão vence sua dor, insegurança e ódio. Curado de seu obsessivo desespero, aceita para sempre o amor de Scheerazade, com quem passa a viver plenamente feliz.

Este é o corpo de “As Mil e Uma Noites”, que, embora obra milenar de origem hindo-persa, tornou-se emblema profano da cultura árabe, documento de seu cotidiano medieval, compêndio moral, painel de vivências e aventuras pleno de criatividade.

Registro imaginário de tal porte e grandeza que o escritor argentino Jorge Luis Borges chegou a considerá-lo um “livro tão vasto, que nem é preciso lê-lo, pois já é parte de nossa memória”.

Vastidão narrativa multiplicada por tantos outras obras que incluem em suas páginas diversas passagens das histórias de Scheerazade, desde o “Decamerão”, de Giovanni Boccaccio, a “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco. Lista significativa que se reproduz mais de mil e uma vezes, com o aproveitamento de seus enredos pelo cinema e pela televisão.

Foi investigando os relatos dessas “Noites Árabes”, que a psicóloga Purificacion Barcia Gomes escreveu a obra “O Método Terapêutico de Scheerazade”.

Mas, com que objetivo?

E que resultados a escritora alcançou, no estudo?

Quem narra & quem ouve

De imediato, vale chamar atenção para outra estranha curiosidade: se o sultão, em seu processo de cura, é o ”cliente” da princesa-terapeuta, a situação que se estabelece é deveras o inverso do cotidiano da prática clínica onde o analisando, em livre associação, relata sua história pessoal e suas fantasias ao terapeuta-ouvinte.

No caso específico, porém, quem “fala” é Scheerazade. E, no decorrer das mil e uma noites, é Shariyar quem “ouve” paciente as histórias de sua “analista”.

Essa inversão funciona como uma espécie de “licença poética” da psicóloga, espelhamento que favorece Purificacion Barcia Gomes em seu intuito de investigar, basicamente, entre outras coisas, a força transformadora da narrativa.

Desse modo, a autora do estudo “ouveScheerazade e suas histórias, “não para elucidá-las através da teoria psicanalítica, mas, ao contrário, para apreender o que há de essencialmente terapêutico nelas, utilizando-as como ponto de apoio, pretexto e contraponto” clínico.

Assim, em seu livro, a ensaísta percorre as muitas aventuras e moralidades de “As Mil e Uma Noites”, rastreia suas estruturas e esclarece suas recorrências, para esclarecer o hábil andamento da “estratégia terapêutica” da princesa, em sua sedutora compaixão pelo marido enfermo.

Scheerazade sabe que vive duplo perigo nas mãos de Shariyar: ser decapitada e trocada por outra. É, porém, astuta e corajosa, além de sutil educadora.

Com habilidade, conduz o sultão por histórias plenas de aventuras, paixões, traições, vinganças, assassinatos, perdões, tolerâncias e valores generosos.

Não desmascara o orgulho, a ignorância, a crueldade, as perversidades do marido, seu medo de ser traído, seu medo de amar. Antes, por suas narrativas, procura convidá-lo a compartilhar com ela as suas fraquezas, fantasias e desejos assassinos.

Quer convencê-lo de que é parte da Humanidade, mais um alguém sobre a Terra a sofrer as mesmas dores. Situação que consola e fortalece Shariyar para enfrentar os duros fatos a respeito de si, sentimentos nada lisonjeiros que irão se desvelando ao longo das mil e um noites de histórias e convivência, inclusive, sexual.

Muitas vezes, a princesa relata aventuras de heróis que contam fábulas para salvar suas vidas ameaçadas por alguma figura poderosa.

Desencadeia desse modo um turbilhão de sucessivos narradores, com evidente propósito especular, onde o tempo e o espaço parecem mantidos em suspensão.

Outras tantas vezes, conta passagens venturosas de personagens reais, como o emir Haroun Al-Raschid, poderoso senhor de Bagdá, exemplo de governante sensato, que lhe serve de avalista da veracidade de suas histórias e modelo para o controverso sultão de Samarcanda Al-Ajan. Modelo viável, pois bastante hábil a princesa não se esquece de incluir, em meio às tramas dessas aventuras, os momentos de ira e desvario do próprio Haroun.

Todas as noites, com oportuna sabedoria, na hora certa, ao suspender a continuidade de sua narrativa, Scheerazade aguça a curiosidade do sultão pela aventura que ela conta, o que faz com que, manhã após manhã, Shariyar adie a morte da princesa, desejando o desfecho da história e mais outras novas histórias, até sua cura.

Purificacion Barcia Gomes, em seu livro, rastreia o “método terapêutico” de Scheerazade de modo extremamente detalhado.

Está convencida de que o mar de relatos de “As Mil e Uma Noites” mimetiza o próprio funcionamento do psiquismo. Ampla ressonância que, segundo a estudiosa, “talvez seja um dos maiores atrativos” dessa obra milenar do Oriente.

A presença da metáfora

Para suas conclusões, vale ressaltar que a ensaísta lança mão de vasto conhecimento histórico, mergulhando na análise dos contos das “Noites Árabes” com acentuada erudição.

Investiga como a obra veio para o Ocidente e de que maneira ela sobreviveu por séculos no cotidiano da sociedade muçulmana.

Com igual cuidado, esmiúça conceitos de Teoria Literária, onde se destacam suas sofisticadas considerações sobre a eficácia da metáfora na narrativa, procurando, então, entender de que modo essa figura da linguagem reverbera na relação terapêutica.

Também desenvolve observações a propósito de algumas categorias da Psicanálise costumeiramente aplicadas na interpretação de obras literárias.

Chega a fornecer certos contornos políticos a seu estudo, ao tecer considerações a respeito do “feminismo” de Scheerazade, personagem emblemática de uma cultura islâmica amplamente complexa, para não dizer problemática, no trato da presença social da mulher.

Ainda que seja indubitavelmente um livro erudito e vasto, pelas dimensões do saber que expõe ao leitor, “O Método Terapêutico de Scheerazade” satisfaz tanto a especialistas, como a todos os demais interessados em seu tema.

Sua erudição não é um mero esforço de afirmação pessoal da autora, sendo, sobretudo, um material vivo, um instrumento enriquecedor de suas teses e pontos de vista, na fundamentação dos conteúdos da obra.

Ágil erudição tantas vezes também expressa em feitio narrativo, o que traz ao leitor uma agradável certeza de que o encantamento terapêutico de Scheerazade se reapresenta no próprio estilo enredado das tramas acadêmicas de Purificacion Barcia Gomes a favor de seu texto, ao expor justa valia significativa para a prosa de ficção.

 

 

 

 

 

 

José Arrabal é professor, jornalista, escritor, autor de contos, romances e ensaios. Entre suas 50 obras publicadas sobressaem “O Nacional e o Popular na Cultura Brasileira: Teatro” (Editora Brasiliense), “O Livro das Origens”, “Lendas Brasileiras – Vol 1/Vol. 2”, “Da Vinci das Crianças” e “A Chave e Além da Chave” (Editora Paulinas), “Stalin – Biografia” (Editora Moderna) “Histórias do Japão” e “O Lobisomem da Paulista” (Editora Peirópolis), “Contos Brasileiros (Editora Expressão Popular), “A Sociedade de Todos os Povos” (Editora Manole), “Anos 70 – Ainda Sob a Tempestade” (Aeroplano Editora) eNouvelles Brésil” (Antologia de contos/com outros autores) –CollectionArchipel–ÉditionsRefletsd’Ailleurs–France.  Blog: http://josearrabal.blogspot.com.br/ E-mail: josearrabal@uol.com.br




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