Revi(vi)sitando a Bric-a-Brac (1)


 

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Huidobro: a poesia como atentado celeste

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Citação:

“Meu pára-quedas se enredou numa estrela apagada que seguia sua órbita conscienciosamente, como se ignorasse a inutilidade de seus esforços. E aproveitando este repouso bem merecido, comecei a preencher com pensamentos profundos as casinhas do meu tabuleiro:

“Os verdadeiros poemas são incêndios.

A poesia se propaga por todas as partes, iluminando suas consumações com estremecimentos de prazer ou de agonia.

Deve-se escrever numa língua que não seja a materna. Os quatro pontos cardeais são três: o sul e o norte.

Um poema é uma coisa que será.

Um poema é uma coisa que nunca é, mas que deveria ser.

Um poema é uma coisa que nunca foi, que nunca poderá ser.

Foge do sublime externo se não queres morrer aplastado pelo vento.

Se eu não fizesse ao menos uma loucura por ano, ficaria louco.”
Pego meu pára-quedas, e da beira de minha estrela em marcha me atiro à atmosfera do último suspiro.”

Vicente Huidobro, poeta chileno

 

Recordar é reviver: a revista de poesia experimental Bric-a-Brac, editada a partir de Brasília de 1985 a 1992, foi uma das mais extraordinárias aventuras poéticas brasileiras do final do século passado.

Logo na sua primeira edição já avisávamos: “ninguém assina por ninguém. O radical convívio dos diversos.” Veio então a Bric nº 2, junto com a redemocratização do país, e os horizontes se aprofundaram:

“prenúncio do século XXI; um momento e muitas direções. Como os estilhaços da challenger ferindo o espaço, sem retorno, com uma única diferença: tudo nos salva e ilumina.”

É nesse texto-editorial que resplandece a proposta-síntese que iluminaria o caminho da revista ao longo de seus seis anos (e números) de existência: “a poesia clip na idade mídia.”

Como um dos co-pilotos dessa viagem-galáctica (ao lado do programador visual Resa, da jornalista e produtora Lúcia Leão, da fotógrafa Regina Bittencourt e do poeta e também jornalista João Borges), falo sem falsa modéstia e com pingos de orgulho e lágrimas da saudosa revista. E não por nós, que fizemos a cozinha da revista, mas por todos aqueles que juntaram-se a nossa caminhada, fizeram parte de sua trajetória e de especial os que formaram, informalmente, seu Conselho Editorial: Augusto de Campos, José Mindlin, Manoel de Barros, Arnaldo Antunes e poeta-antropólogo Antônio Risério, todos cabeças-iluminadas e biscoitos finíssimos da cultura poética brasileira.

Pretendo assim, a partir de agora (março de 2012), escrever alguns artigos revi(vi)sitando uns bons tantos bocados de luz que jogamos nas páginas existenciais dos amantes da poesia deste mundão de letras e invencionices. Trata-se – e que isso fica bem claro – de uma visão absolutamente individual sobre temas complexos e em alguns casos controversos – disso, repito, faço questão de registro.

Dedico este espaço inicial ao poeta-pensador bahiano Antônio Risério, um dos mais entusiastas do projeto que se desenhava naqueles anos no Planalto Central do país. Entre tantas brilhantes contribuições, Risa (assim o chamava Augusto de Campos, para sublinhar a dupla que ele fazia com o designer Resa), nos apresentou em um estonteante micro-ensaio sobre o poeta chileno Vicente Huidobro, vanguardista criador do movimento “criacionismo” no início do século XX.
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No seu texto de transparência cintilante, Risério avisa de cara: “Em matéria de poesia chilena, nosso repertório médio não vai além de Pablo Neruda, Gabriela Mistral, Nicanor Parra. No entanto, em meio a um pequeno grupo de connaisseurs, Huidobro é amado – e seu prestígio aí, como fabbro e teórico, é bem maior do que o de Neruda e Mistral juntos.”

E prossegue: “O ideólogo de “criacionismo”, que caminhou luminosamente da estética romântica para a maré de fogo das vanguardas do início do século XX, converteu-se, no âmbito deste círculo reduzido e exigente, em ponto fundamental de referência. Em marco inaugural da nova poesia hispano-americana, instaurando a modernidade poética em meio aos nossos companheiros-de-viagem continentais (…) Antes de timidez ou prudência, o que encontramos em Huidobro, espírito ousado e independente, irrequieto até à medula, é o desejo, a ânsia de inovar.”
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O texto de Risério – “Huidobro: a poesia como atentado celeste” – ocupa seis páginas da Bric-a-Brac nº 6, a derradeira, editada em 1992, com papel reciclado e espetaculosa capa de Eduardo Resende, o Resa, em cima de uma foto de dois anos do seu irmão Carlos de Brito, o “Nico”, que foi transformado num tremendo Bad Booy, também uma canção composta por L. Willians e gravada pelos Beatles em 1965. De tão detalhista, Resa usa trechos da letra transcritas manualmente na capa.

De todas as edições, este é o nosso melhor número da revista: além do ensaio sobre o vanguardista chileno, acompanhado por três poemas de Huidobro traduzidos pelo próprio Risério; há uma adorável conversa entre Caetano Veloso e Augusto de Campos sobre os caminhos da poesia, do tropicalismo, etc, etc. Há ainda uma longa e histórica entrevista com a Dra. Nise da Silveira (13 páginas) sobre o Museu da Imagem do Inconsciente; as primeiras experiências poéticas em Mac feitas por Arnaldo Antunes; a versão original da letra-música “Circuladô de fulô” extraída por Caetano do livro “Galáxias” de Haroldo de Campos; o inacreditável poema “Anaflor”, de Kurt Schwitters, transcriado e composto em português, com lixo tipográfico, por Guilherme Mansur,de Ouro Preto; além de um artigo “Beba Cole”, de Augusto de Campos sobre o compositor Cole Porter.

Mas voltemos ao cosmos “huidobriano”, via Risério. Segundo ele, Huidobro coloca-se, ao criar o movimento “criacionismo”, como um combatente da visão do poeta como um imitador, ou da arte como plágio da natureza. É de Huidobro a citação: “Toda a história da arte nada mais é que a história da evolução do homem-espelho ao homem-deus,” sentenciava ele em 1916, na sua conferência de Buenos Aires.

Risério, então, se baseia numa citação de Ramón Xirau, para explicar o essência do “Criacionismo”: “Se o poeta era o imitador da natureza, ele será a partir de agora o criador de realidades poéticas novas, precisamente porque surgem da consciência e não do mundo. O poeta será, verdadeiramente, essa natureza criadora de suas próprias árvores imaginativas.”

Segundo Risério, “o que Huidobro quer é a construção de um universo autônomo de signos, com sua “fauna e flora próprias”. O poema é assim pensado como mentefato independente, livre construção do espírito.

Um dos pontos básicos da doutrina estética criada por Huidobro é que os poeta podiam “criar realidades” num mundo próprio. “O poeta em plena consciência do seu passado e de seu futuro lança ao mundo a declaração de sua independência frente à natureza. Já não quer servi-la na qualidade de escravo.”

Para Risério,em Huidobro “é possível tripular bandeiras e hastear navios(…) ou acender o cigarro no Sol que se põe”. E ele busca auxílio numa citação de Octávio Paz sobre a poesia de Reverdy para clarificar ainda mais a situação: “No sistema solar que é cada poema, a imagem é o sol.”

Antônio Risério, no entanto, vai mais fundo ainda apontando uma diferença. “Com Huidobro – e especialmente em Atazor, poema do dilaceramento solitário e da morte, “protesto interminável desse angústia chamada “homem”, mas também poema da linguagem -, o que temos é uma desnorteante proliferação de sóis. Enfim, no seu transcendente ensaio publicado em primeira mão na Bric nº 6, Risério vai fazendo, como é bem do seus estilo, “tabelinhas” tipo Pelé-Coutinho com outros poetas e estudiosos até chegar na inacreditável associação Huidobro/Maiakovski/surrealismo, via Boris Schnaiderman: “a imaginação solta, voltada para o descomunal e o hiperbólico, e que frequentemente busca os espaços cósmicos”, “a reação contra um realismo imediatista e chão”; “o gosto evidente pelo visual, pela imagem”.

Entretanto, ao comparar a poética huidobriana com o surrealismo de André Breton e seus companheiros, o autor do ensaio põe o pé no freio. “seu texto tem muito de alucinação e de delírio, mas de delírio e alucinação controlados”, pois o próprio Huidobro costumava disparar; “o vigor verdadeiro/ reside na cabeça.” E mais: “desde o momento em que o escritor se senta à mesa, lápis na mão, existe uma vontade de produzir e o automatismo desaparece.”

E vamos parar por aqui, pois a viagem pelas galáxias frásicas de Vicente Houidobro é imensurável. Muchas Gracias a “Dom” Antônio, nosso porreta e inesquecível Risa, pela grandiosa missão da “amostra grátis” que ele nos permitiu naquela Bric-a-Brac de 20 anos atrás. Risério finaliza seu ensaio focando o já falado poema Altazor, obra-prima do poeta chileno.

Escreveu ele: “Altazor = alto + azor (“açor”, em português: ave de rapina). E se alguém se dispuser a fazer um mapeamento microestética de reelaboração formal a que Huidobro submete o material lingüístico, experimentando-o em diversas direções, certamente não vai ficar sem ter o que recolher e classificar – do jogo frásico e das operações criativas centradas diretamente na palavra à intervenção no domínio dos “metalogismo”, das “figuras de pensamento”, “passando pela atomização lingüística, a pulverização da linguagem de Altazor, roçando o sonorismo zaum, “transracional”, à maneira de um Krotuchônikt. Octávio Paz comentou, por sinal, este último aspecto: “

“Não é o idioma de uma terra, mas o de um espaço aéreo. Idioma de aviador: as palavras são pára-quedas que se abrem em pleno vôo. Antes de tocar a terra estouram e se dissolvem em explosões coloridas.”

 

Para ler a íntegra do poema Altazor vá em

www.vicentehuidobro.uchile.cl/poemas_principal.htm

 

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ALTAZOR

Trechos do Canto II, uma declaração de amor

 

Mulher o mundo está mobiliado por teus olhos

Faz-se mais alto o céu em tua presença

A terra se prolonga de rosa em rosa

E o ar se prolonga de Paloma em Paloma

 

Ao partires deixas uma estrela em teu lugar

Deixas cair tuas luzes como o barco que passa

Enquanto te segue meu canto encantado

Como uma serpente fiel e melancólica

E volves a cabeça por trás de algum astro

(…)

As planícies se perdem sob tua graça frágil

Perde-se o mundo sob teu andar visível

Pois tudo é artifício quando te apresentas

Com luz perigosa

Inocente harmonia sem fadiga nem esquecimento

Elemento de lágrimas que gira para dentro

Construído de medo altivo e de silêncio

(…)

No entanto te advirto que estamos costurados

À mesma estrela

Estamos costurados pela mesma música estendida

De um a outro

Pela mesma sombra gigante agitada como árvore

Sejamos este pedaço do céu

Este trecho em que se passa a aventura misteriosa

A aventura do planeta que estala em pétalas de sonho

(…)

Tenho uma atmosfera própria em teu alento

A fabulosa segurança de teu olhar com suas constelações íntimas

Com sua própria linguagem de semente

Tua fonte luminosa como um anel de Deus

Mais firme que tudo na flora do céu

Sem torvelinhos de universo que empina

Como um cavalo por causa de sua sombra no ar

(…)

Achei-te como lágrima num livro esquecido

Com teu nome sensível desde antes em meu peito

Teu nome feito do ruído de palomas que voam

Trazes em ti a lembrança de outras vidas mais altas

(…)

Minha alegria é olhar-te quando escutas

Esse raio de luz que caminha até ao fundo da água

E ficas suspensa um bom tempo

(…)

Minha glória está em teus olhos

Vestida do luxo de teus olhos e de seu brilho interno

Estou sentado no ponto mais sensível de teu olhar

Sob o silêncio estático das pestanas imóveis

Vem saindo um augúrio do fundo de teus olhos

E um vento de oceano ondula tuas pupilas

Nada se compara a esta lenda de sementes que deixa tua presença

A esta voz que busca um astro morto a que dar vida

Tua voz faz um império no espaço

E esta mão que se levanta de ti como se fosse pendurar sóis no ar

E este olhar que escreve mundo no infinito

E esta cabeça que se inclina para escutar um murmúrio na eternidade

E este pé que é a festa dos caminhos encadeados

E estas pálpebras onde vêm encalhar as centelhas do éter

E este beijo que incha a proa de teus lábios

E este sorriso como um estandarte à frente de tua vida

E este segredo que dirige as marés de teu peito

Adormecido à sombra de teus seios

 

Se tu morresses

As estrelas apesar da lâmpada acesa

Perderiam o caminho

Que seria do universo?

 

FIM

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Ou a gente se Raoni
Ou a gente se Sting

Luis Turiba

 
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Luis Turiba é pernambucano, criado no Rio de Janeiro, radicado em Brasília. Fundou a revista de poesia experimental BRIC-A-BRAC, em Brasília, em 1985. Na poesia, tem militância ativa há mais de 30 anos. Publicou seu primeiro livreto, Kiprokó, em 1977, no Rio de Janeiro. Em Brasília publicou Clube do Ócio, em 1980, Luminares, em 1982; Realejos, em 1988; a antologia Cadê?, em 1998; e Bala, em 2005. Em 2010, lançou dois livros em Brasília: “Meiaoito”, pela coleção Oipoema; e o infantil “Luísa, Lulusa: a atriz principal”. No jornalismo, trabalhou em O GLOBO e na Manchete, no Rio de Janeiro, ainda na década de 70. Chegou em Brasília em 1979, onde trabalhou na Gazeta Mercantil, no Jornal do Brasil, no Jornal de Brasília, no Correio Braziliense, onde cobriu a campanha das Diretas e a eleição de Tancredo Neves. Fez assessoria de imprensa para a Assembléia Nacional Constituinte e foi da equipe do Ministro Gilberto Gil no MinC por quatro anos. Publicou um livro com os principais discursos do ministro Gil, editou dois DVDs: Gil na ONU e Programa Mundial da Capoeira. Foi vencedor da Bolsa Literária FUNARTE em 2008, pelo qual escreveu seu livro “Meiaoito”. E-mail: turibapoeta@gmail.com




Comentários (3 comentários)

  1. LUIS tURIBA, belíssima edição, Edson. Digna da Bric-a-Brac, Serão ao todo 10 artigos sobre “momentos luminosos” da revista bric-abraços em todos Turiba
    5 março, 2012 as 2:17
  2. Frederico Barbosa, Maravilhoso texto, Turiba! E traz belas lembranças da heroica Bric-a-Brac. Parabéns!
    5 março, 2012 as 3:19
  3. admin, grande Turiba. sua revista foi a que me fez a cabeça pra esse troço de revista literária e afins. foi uma honra. ‘o radical convívio dos diversos’ sempre foi meu lema e sempre será. abração. edson cruz
    5 março, 2012 as 12:55

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