Resa: no mínimo o máximo


 

“Ques que ti pance? Que chup-chup caju et no canse. Caaaanse! Et como
canse. Avec la castanhe…principalmant.”

 

O poeta Resa, de tantas capas maravilhosas, grafismos mágicos eobjetos poéticos de múltiplos significados – na certidão Luis Eduardo Resende de Brito, ex-editor gráfico da histórica revista de poesia experimental Bric-a-Brac, que nos deixou prematuramente aos 56, no início do último abril – adorava fazer essa citação com arte e engenho.

No sorriso cheio de dentes que o caracterizava, parecia até um ator quando puxava do seu repertório anedótico a performance: fazia biquinho, rodopios e trejeitos. Tinha plena consciência de que estava escaneando (ou sacaneando) a mania de eruditismo de certos intelectuais brasileiros. Trouxe a brincadeira de Maceió, Alagoas, onde está uma de suas peças mais significativas: um Cristo crucificado com duas seringas.

O dramático da brincadeira é que ela termina sendo uma caixa de espelhos multiplicadores da própria vida dele como artista e ser humano. Tudo no Resa era verdade absoluta e radical. Nada nele foi “boi com abóbora”, como disse o radialista Cristiano Menezes. Absolutamente nada no seu traço era fácil ou facilitador. Resa foi o operário do design que acendeu a vela nos dois lados, gerando luz e energia em tudo que riscou, pintou, bordou, bolou e pariu.

Amava trabalhar, enfrentar no silêncio criativo o branco da prancheta, buscar boas soluções para desafios estéticos. Morreu como bem viveu, desafinando o coro dos contentes do qual falou Torquato Neto, no estilo “doce bad boy”: de sexo, drogas e rock and roll.

Autor de todas as capas e da magistral programação visual das seis revistas Bric-a-Brac editadas em Brasília, além do projeto Graphoesia com 10 lâminas poéticas editados em serigrafia; e também de alguns dos mais importantes livros da editora UnB, como “Noel Rosa, uma biografia”, de João Máximo e Carlos Didier. De sua prancheta nasceram coleções infindáveis de cartazes e logomarcas da cultura brasiliense: Martinica, Bom Demais, Feitiço Mineiro, etc. Também foi por mais de 10 anos programador visual da rede de hospitais Sarah em Brasília e Salvador e do Clube do Choro de Brasília, com magníficos desenhos de fundo de palco.

Resa chega a Brasília em 82 a convite do então secretário de Cultura, o também poeta Reynaldo Jardim. De cara, monta uma coleção de cartazes com poemas do então desconhecido Manoel de Barros. Mas já desembarcou na capital com o passaporte carimbado pela respeitável bagagem de trabalhos gráficos da juventude. Editou na saudosa revista Flor do Mal, de Rogério Duarte; e fez parte do grupo Nuvem Cigana, no início dos anos 70, tendo participado do Almanaque “Biotônico Vitalidade” com o trabalho “a sétima face do dado”, que ganhou nova versão em calendário no ano passado, 40 anos depois. Foi o rei das letras Setes.

Parceiro gráfico de grandes poetas e aqui cito só alguns: Manoel de Barros, Chacal, Claudio Lobato, Ronaldo Santos, Xico Chaves, Carlos Nico (seu irmão e “bad-boy” da capa na Bric-a-Brac nº 6, a derradeira), Angélica Torres Lima, Paulo José Cunha, Antônio Risério e deste que vos escreve.

Resa lia muito, era designer letrado. De formação visual, ex-aluno da escola do Parque Laje, era capaz de pegar um verso estroncho e malanjambrado e transformá-lo num poema publicável. Mas quando não gostava do dito, era implacável, capaz de picar o original e fazê-lo voar em mil pedacinhos pela janela do 12º andar da redação da Bric-a-Brac, em pleno Planalto Central do país. Fez isso algumas vezes. “Ah, essa m ee r d aaaa… é impublicável”, sentenciava. E de tanto fazer cirurgias plásticas em poemas capengas, tornou-se também ele um poema vestido por macacão jeans desbotado, cuja melhor tradução é sua obra-prima, o poema “Tênis de beiço”.
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…………………………………….O poema visual “Tênis de Beiço

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.Mas disso falaremos depois. Voltemos à sua trajetória.

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Reconhecimento nacional

Resa começou a fazer carreira solo na passagem do século XX para o 21. Mas agora é o poeta-mestre Augusto de Campos que conta essa história em texto de apresentação do livro Cartas Marcadas, Poesias Visuais, uma espécie de catálogo da exposição com o mesmo nome:

“Ele tenta agora uma outra aventura, um novo desafio, propondo-se apresentar um conjunto de trabalhos visuais que pedem exposição e livro próprio. Pertencem àquele gênero de trabalhos que não se pode classificar ou tabelar facilmente. Wagner Barja (diretor do Museu da República, em Brasília) incluiu com justeza alguns deles na exposição Obranome, dedicada precisamente a esse espaço ou “vão” (expressão de Barja) interdisciplinar da poesia-arte visual. São trabalhos que se posicionam numa linha intermediária entre objeto-poema e/ou poesia-plástica, aquilo que o norte-americano Dick Higgins, discípulo de John Cage e integrante do grupo Fluxus, denominou “intermídia”.
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E prossegue Augusto de Campos: “Com elementos do cotidiano, cartas de baralho, prego, agulhas, pequenas esferas metálicas, palha de aço, alfinetes, dados, constrói ele um universo minimal que parece conter interrogações inquietantes. Dados e cartas de baralho acentuam, dominantes, o caráter lúdico dessas formações artísticas ambivalentes, a que os títulos apensados pelo artista, carregados de humor – ao modo de Satie, Klee, Duchamp, Joan Brossa, parentes próximos ou remotos – dão a nota verbal, poética.”

Para o poeta concreto paulista, “a nova aventura a que se propõe Resa” é “obra de “amor e humor” que oscila entre o real e o irreal, a plasticidade e a poesia, num vôo plástico, demasiadamente plástico, mas também poético, demasiadamente poético, ao mesmo tempo rigoroso e aberto.”

Já a produtora e curadora Marília Panitz diz que “Resa foi um escritor de objetos, inventor de uma língua sem som, ou talvez povoada por ruídos de dados sendo jogados, de peões sendo deslocados no tabuleiro, de cartas batendo umas nas outras ao serem embaralhadas.”

Ao montar a exposição “Miserere Nobis”, em 2010, Resa foi fundo, radicalizando nos seus poemas-objetos com retratos da realidade brasileira pinçados de crueldade e humor. Essa exposição mereceu artigos, citações e interpretações, com destaque para poema Sabor da Sobra do cantor e compositor Chico César.

“Cada oratório é uma casa de favela com seus segredos expostos/ com seus templos profanados/ dourado sangradouro de ouro sagrado/ ê ê ê vida de engodo/ é o gasguito falando do engasgado” (…) “a nação em armas/ a pátria de pistolas / todo homem de bem tem direito a seu revólver/ seu fuzil/ a uma metranca sensual bem lubrificada/ um homem sem armas é uma mulherzinha / a vida real meus amigos não é uma reunião de ong não/ o buraco é mais embaixo/ então capricha na mira.”
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………………………………………Poema “Ave Maria no Morro
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Seguiu sua trilha caprichando na mira. Embaralhando ainda mais as Bric-a-Bracs, invertendo os calendários, revelando a sétima face do dado, buscando sua matéria-prima nas mais antigas feiras de antiguidades, como a da Praça XV. Enquanto enfrentava seu câncer, tão radical como sua obra, ele, o operário do traço, jamais parou de trabalhar. Preparou uma exposição que será apresentada em agosto com poemas inéditos em forma de livros sagrados e/ou profanos. Depois enjaulou gaiolas para se libertar. Fez cartazes e logomarcas para o Clube de Engenharia.Ou como diz o próprio Chico César: “sobre o insalubre coração de pedra do mundo/ o artista prepara as próprias sobras/ em seu canto de genuflexão e ofertório/ Resa reza.
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Descansa em paz, mano. Sua obra não sobra.

 

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[O título deste artigo foi extraído do poema Resa, do Chacal, publicado na contracapa do livro  “Cartas Marcadas – Poesias Visuais”.]

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Luis Turiba é pernambucano, criado no Rio de Janeiro, radicado em Brasília. Fundou a revista de poesia experimental BRIC-A-BRAC, em Brasília, em 1985. Na poesia, tem militância ativa há mais de 30 anos. Publicou seu primeiro livreto, Kiprokó, em 1977, no Rio de Janeiro. Em Brasília publicou Clube do Ócio, em 1980, Luminares, em 1982; Realejos, em 1988; a antologia Cadê?, em 1998; e Bala, em 2005. Em 2010, lançou dois livros em Brasília: “Meiaoito”, pela coleção Oipoema; e o infantil “Luísa, Lulusa: a atriz principal”. No jornalismo, trabalhou em O GLOBO e na Manchete, no Rio de Janeiro, ainda na década de 70. Chegou em Brasília em 1979, onde trabalhou na Gazeta Mercantil, no Jornal do Brasil, no Jornal de Brasília, no Correio Braziliense, onde cobriu a campanha das Diretas e a eleição de Tancredo Neves. Fez assessoria de imprensa para a Assembléia Nacional Constituinte e foi da equipe do Ministro Gilberto Gil no MinC por quatro anos. Publicou um livro com os principais discursos do ministro Gil, editou dois DVDs: Gil na ONU e Programa Mundial da Capoeira. Foi vencedor da Bolsa Literária FUNARTE em 2008, pelo qual escreveu seu livro “Meiaoito”. E-mail: turibapoeta@gmail.com




Comentários (2 comentários)

  1. LUIS tURIBA, Turiba, belissimo teu artigo sobre-e-para o Resa !… comovida homenagem e maravilhoso compacto, esclarecedor escrito contando a personalidade e obra de nosso Artista. Participo contigo, e todos amigos, amigas, e Família do Resa, nas saudades pela partida… Mas ele já mesmo agora está voltando, pra conviver conosco, o Resa de sempre, seja hoje, ontem ou amanhan… digo pra vocé isso que vocé já sabe, e muito melhor que eu, saravá, mas digo pra que vocé saiba que na saudade pelo Resa estou aí com toda nossa gloriosa galera Bric-a-Brac . Abbrazzzone <<< Zuca Sardang
    19 maio, 2012 as 5:08
  2. Helena Gilka Soares da Silva, Texto perfeito porque descreve, com perfeição, um grande poeta, artista e, sobretudo, o maior amigo. Saudades…
    13 outubro, 2013 as 0:56

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