Reichenbach (Romance)


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É com um misto de desnudamento e sensação de algo irreversível, de solidão e sina, dor e danação, que faço este post. Algo como um desnudamento irreversível e, na mesma tacada, um enredamento crescente: ao sabor do cinema vivo de Carlos Reichenbach atravessado por sua morte, justo no dia em que ele nasceu (14 de junho). Tal como se deu com Ozu (em um circular 12/12), não à toa um diretor japonês, para criar uma consonância plena com o vasto conhecimento de Reichenbach sobre a cinematografia nipônica. Surpreendentemente, no dia 14 de junho, eu fazia uma homenagem inconsciente ao grande cineasta, tema da aula do curso de pós-graduação que ministro até o próximo 28/6 na USP – “Poesia, cinema e outras artes, a cena cultural contemporânea”. Tudo isso dá choque.

Estou transtornado, pois não veremos mais as reaparições das irrecusáveis falsas louras e dos anjos dos arrabaldes. Não há ninguém por trás das câmeras, em meio ao turbilhão do cotidiano, que tenha esse toque de afecção e agudeza crítica. Não leremos mais seus textos de paixão cinefílica postados no blog Olhos Livres, assim como não teremos as Sessões-Comodoro sob a curadoria dele, ali entre os espectadores, todas as primeiras quartas-feiras de cada mês.

São Paulo mudou. É um tempo que acaba para mim. Só me resta escrever por ora e dar rumo à pesquisa que venho realizando sobre CR, sem tempo mais de publicá-la com sua presença ativa para um encontro, um debate e leitura.

Sinto-me só no escuro do cinema, nos centros e nos arrabaldes de um lugar chamado SP (sob um céu escuro, muitas e muitas vezes). Tento, então, dar começo ao que quero escrever. Ou melhor, publico na íntegra o início de um texto a ser continuado (talvez sob a forma de livro). Divulgo um artigo iniciado em 2011, até o ponto de sua interrupção, para deixar com a força do corte o impacto da passagem das vidas e dos filmes, como se deu com Carlão e o melhor cinema desse país.

Enfatizo, nesta postagem, romance. Não só por depreender na produção do diretor uma narratividade passível de ser compreendida como um longo plot de gêneros fílmicos e literários, sob o itinerário de uma história fabulada da sexualidade e dos modos de ser (afetos, convivências, relações de poder, comunitarismos em emergência). Mas em atenção ao dado de que Reichenbach escrevia, nos últimos tempos, romances, impossibilitado que estava do esforço da realização cinematográfica, pela saúde mesmo, em dar continuidade a seus projetos concebidos para a tela. Torço para que ele tenha deixado um escrito no gênero (além dos roteiros integrantes do ciclo ABC CLUBE DEMOCRÁTICO, editados em 2008, assinalados com uma forte concepção romanesca).

De todo jeito, a narrativa se instila em seu cinema quando visto numa retrospecção – agora inevitável e urgente. Mostra-se numa voltagem de formação e gradativa construtividade, que o artigo a seguir busca captar, tomado pela dinâmica da inconclusão (para ficar no compasso da luta da criação cotidiana, assim como do choque que a vida intensa e a morte brusca do seminal Carlão lançam como signos onipresentes, entrelaçados).

 

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Histórias da Sexualidade e da Literatura – Cinema-Romance de Carlos Reichenbach

 

Ao dar foco à produção de Carlos Reichenbach, tenho o interesse de destacar o sentido mapeador de um projeto concentrado na abordagem da sexualidade, que se entrelaça, simultaneamente, com uma reflexão sobre a narratividade no espaço fílmico e a composição do que chamo de um cinema-romance. O itinerário do diretor apreende questões pulsantes do comparativismo contemporâneo, abrangendo filme/literatura.

Quando falo de sexualidade quero relacioná-la ao contexto da história brasileira recente – algo bem situado e de um modo sempre preciso pelo cineasta – e, também, àquele que envolve o sexo como saber na história dos últimos 40 anos, inevitavelmente desbravado pelo pensamento e pela genealogia de Michel Foucault na órbita das ciências humanas.

Curioso é traçar esse elo cinema/literatura na história, no instante em que o campo do pensamento se redesenha a contar do espaço filosófico esquadrinhado por Foucault e das mutações ocorridas com a realização cinematográfica no Brasil e no mundo.  Para quem trava contato com a filmografia de Carlos Reichenbach, visíveis se mostram duas vertentes: aquela do cinema autoral, desenvolvida desde os 1950-1960 e consolidada pelo crítico-cineasta JLG – uma espécie de regente exponencial de todas as dimensões estéticas do áudio-visual – e, também, um veio mais popular, primitivo mesmo das imagens em movimento. Na época em que Reichenbach começa a filmar, época do experimentalismo, ele firma seu projeto em produções de baixo custo, fundadas sobre gêneros em voga no mercado (hoje algo associado à designação trash, uma designação de culto). Dá-se uma incursão pelo filme de aventuras, de viagem – filmes de férias, de comportamento jovem (veja-se seu primeiro longa, feito nessa trilha B, inspirada em Roger Corman, Corrida em busca do amor) – até atingir a órbita do cinema pornô, que começava a se mostrar nas telas.

No início de Reichenbach, bem se vê tal aderência. O filme em episódios As libertinas (1967), experiência coletiva propiciadora de uma nova política de produção e de ingresso no mercado por parte de cineastas jovens, foi concebido a partir do sucesso popular obtido por Sexy Gang (1966), do francês Henry Jacques. Uma verdadeira fita de exploração desinibida dos atos sexuais dentro dos limites de corpos de mulheres e homens vestidos à altura de suas genitálias. Curioso é notar que Sexy Gang abre uma espécie de filão capaz de viabilizar a atividade cinematográfica de Reichenbach no contexto da chamada Boca do Lixo paulistana – polo do cinema de baixo custo, eminentemente erótico, dentro de uma modulação soft, no estilo brasileiro misto de pornografia e chanchada, até galgar, já na passagem para os anos 80, a forma desabrida do cine pornô.

A tentação de se reprojetar a gênese da filmografia do cineasta acaba por incidir numa história da sexualidade, na sexualidade em um momento preciso da história e da cultura, na esfera da filosofia e da teoria, como se depreende do percurso traçado por Michel Foucault. Por um lado (por uma das vertentes perseguidas pelo diretor), há mais de um filme em cada take rodado por Reichenbach sob o influxo do cinema godardiano, cinema da citação e da situação das imagens em movimento, no tempo de sua autorecorrência e redefinição de arte que é, também, devedora da literatura, da pintura, da música, assim como da publicidade, da televisão, das atualidades políticas, em uma época de mutações técnicas e revoluções de toda ordem. Por outro flanco, outra via de produção, pode-se dizer que há mais de uma história a ser fabulada e ser inserida na compreensão do registro e da narrativa propiciadas pelo correr da película no tempo.

 

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Romance

 

A filósofa Judith Revel, estudiosa de Foucault, propõe uma arguta hipótese de abordagem da formação de uma arquigenealogia das Humanidades, embasada na história da sexualidade, do sexo como saber no Ocidente).  Empreendimento que se vincula com as leituras de autores literários efetivadas pelo autor de As palavras e as coisas. Suas análises sobre escritores preparam os projetos mais arrojados e decisivos para a transformação da episteme contemporânea. Emerge um pensamento sobre a literatura, a ponto de descortinar toda uma tradição moderna incisiva sobre os rumos da criação contemporânea abarcando uma erótica, um dizer cruel sobre corporalidade e transgressão, no ponto tangente com a loucura (algo que se dá desde o pré-romantismo dos Diálogos de Rousseau, no ver de Foucault) e a escrita de si, sob o signo-autor em alta problematização.

Revel sublinha a simultaneidade com que irrompe no chamado espaço literário o traço de uma ressubjetivação repercutida como genealogia de uma história da subjetividade indissociável de uma analítica do poder. Exatamente, no campo da escrita, interessava a Foucault a invenção de formas novas e códigos inéditos propiciadores de uma criação, tendo-se em foco o contra-poder trabalhado pela literatura. É justo na idéia de uma biopolítica que o filósofo se concentrará em sua última fase – após o convívio com autores predominantemente de narrativas –, interessado que estava em suscitar a potência da vida na contraface de um poder sobre a vida.

 

uma outra maneira de dizer que não se encerra a criação, e que o homem é uma figura na areia destinada a se apagar progressivamente, essa produção de ser é feita para se descobrir outras margens. (Revel, 2004: 66).

 

Biopolítica e produção de subjetividade surgem de forma indiscernível na passagem decisiva do pensador pela literatura. Marca observável de uma margem nos discursos de saber submetidos a uma arqueologia e, mais tarde, erguida à “descrição genealógica das práticas de dominação e das estratégias de governo às quais podem se submeter os indivíduos” (Ibid., 63), a literatura se mostra presente, interferente mesmo, desde o estudo feito sobre Raymond Roussel até algumas linhas dedicadas aos romances de Marguerite Duras.

Interessante é captar na história que se move nos anos de atuação de Foucault a história redesenhada por ele sob o crivo da genealogia nietzscheana, potencializada pelo diagrama heterogêneo de fontes e discursos os menos oficializados. A história se transforma na extensão de exterioridade que seus ditos e escritos promovem e nos quais estes se inserem numa mutação incalculável de forças (individuais, culturais) e atos de conhecimento ressignificados.

Os filmes de Carlos Reichenbach são coetâneos de tal corte cartográfico na história, formador de um campo extensivo de arte e criação de subjetividade. Especialmente no que diz respeito ao sentido de produção, definidor do itinerário do cineasta em suas realizações. Autoria interventora dos seus meios e modos de produção, como queria Walter Benjamin e pôde Foucault atualizar ao deixar vivos os elos discursivos como formas inseparáveis daquelas que sustentam a idéia de autor.

O autor de A vontade de saber já apreendia o surgimento de um cinema erótico, a par de suas incursões pela literatura desde Sade e da criação de sua história da sexualidade. Quando analisa os filmes do alemão Werner Schroeter, tendo como destaque A morte de Maria Malibran (1976), é posta em revelação a germinação do corpo (Foucault, 2001: 367) que ali se engendra. Em contraponto a títulos como da O porteiro da noite (1974), de Liliana Cavani, interessados em encapsular a eclosão do erotismo num contexto de repressão e militarização, como aquele do nazifascimo, A morte de Maria Malibran faz “o corpo escapar de si mesmo” (Idem), dizendo uma dissociação, uma desierarquização a partir do sexo. O vínculo muito forte formado entre sexualidade e história, arte erótica e a conjuntura do microfascismo cotidiano subsistente em  grande parte do mundo, é observável na cinematografia dos anos 1970. Mas para Foucault todo o ponto de uma erótica se encontra em “desmantelar essa organicidade” (Ibid.) promovida entre contexto e corporalidade. Seu interesse recai na “coisa inominável” (Ibid.) que atravessa os sexos “por fora de todos os projetos do desejo (Ibid.).

Intrigante se revela a autoria de Reichenbach se articulando no interior de um meio de produção de filmes eróticos como aquela da Boca do Lixo, no centrão paulistano. O corpo inteiramente plástico pelo prazer (Ibid.) se subleva como um suplemento incalculável a correr nos curta e longa-metragens rodados por Carlão (apelido do cineasta). “Alguma coisa que se abre, que se retesa, que palpita, que bate, que berra (…) ao contrário do sadismo, que recortava a unidade” (Ibidem, 368). No interior do regime militarista brasileiro, dentro da Boca do Lixo, os corpos de atores típicos do filme popular paulistano de apelo pornô esplendem, deixam-se mostrar em toda minudência e urgência do desejo. Mas, instigantemente, se põem a falar. Interrompem a prática corrente do sexo. Falas sobre Proudhon, recortes de Bataille e da poesia libertária do surrealismo ganham as telas feitas para o voyeurismo. Como está num de seus títulos, Extremos do prazer por conta de todas as implicações do cinema do erotismo. Ou como frisa Foucault, “prazeres de múltiplas entradas: …não é detalhar o corpo para o desejo, é fazer fermentar o corpo como uma massa e dele fazer nascer imagens de prazer e imagens para o prazer (Ibid.).

Vivaz, vivificante, se apresenta essa mista implicação capaz de, a um só tempo, incitar e esquadrinhar o desejo, no átimo de seu núcleo indissolúvel de subjetividade, de liberdade, exercido no seio mesmo das relações de poder (Revel, p. 62). Na filmografia de Reichenbach, Lílian M – Relatório confidencial (1975) surge como sua realização mais arrojada e mais acabada na sua primeira fase e acaba por se estabelecer como marco, como matriz do que passaria a ser seu cinema até o presente. A partir de um entrecho básico – uma mulher em movimento, munida de sua mínima bagagem, em migração indeterminada desde que sai do campo para a cidade, retornando ao lugar de origem, numa breve retomada do marido e dos filhos, para ali não mais se fixar. Lilian M. percorre várias instâncias da sexualidade mantidas em campos discursivos e âmbitos de controle, numa ampla extensão traçada no contato com um e outro homem, em variantes de libertação e domínio, de mão em mão.

CR conta a história desses anos significativos enquanto se forma por meio do sexo reticulado pelos espaços de produção na Boca, no Lixo das cidades e das películas da arte, entre os corpos vivos e as codificações, prontamente catalogáveis com os adereços do poder.

Sob o rastro dos 70 um cinema incisivo (cineromance de Lílian M ao ciclo ABC) vai se consolidando pela ótica de uma escrita cinemática, passível de redefinir o gênero romanesco e as linhas narrativas no espaço fílmico.

Saber/poder/biopotência pulsam na ética-estética da convivialidade e do comunitarismo contemporâneos.

Frisar Lilian M como personagem modular, reengatado em FALSA LOURA (especialmente com a citação de Sócrates lida, nesse último filme, por uma garota nua diretamente do livro, acerca do heroísmo de uma vida celebratória nutrida de morte).

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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FOUCAULT, Michel. Ditos & Escritos III. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Trad. Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

REICHENBACH, Carlos. ABC Clube Democrático. São Bernardo do Campo: MP, 2008.

REVEL, Judith. “La naissance littéraire du biopolitique. In

ARTIÈRES, Philippe (org.). Michel Foucault, la littérature et les arts. Paris: Kimé, 2004. p. 47-70.

 

 

 

 

 

 

 

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Mauricio Salles Vasconcelos é autor do ensaio Rimbaud da América e outras iluminações (2000), de Stereo (ficções), editado em 2002, e do romance Ela não fuma mais maconha (2011). Publicou os livros de poesia Sonos curtos (1992), Tesouro transparente (1985) e Lembrança arranhada (1980). Dirigiu, entre outros videos, Ocidentes (2001), tendo por base seu livro-poema Ocidentes dum sentimental (1998), uma recriação de “O sentimento dum ocidental”, de Cesário Verde. Inéditos: Brasileira (romance); as narrativas de Alguém, Augusta (Garotas); Espiral Terra – Poéticas contemporâneas de língua portuguesa (ensaio) e Giro Noite Cinema – Guy Debord (video). Carioca, vive em São Paulo. E-mail: vasconcelosmauricio@hotmail.com




Comentários (1 comentário)

  1. Ivan Antunes, coisa que dá choque, no entusiasmo de uma tarde e entre pessoas que comungavam o indizível, esvai-se às 18h (no horário do término da aula) CR, como diz Vasconcelos “dá choque”, realmente “dá choque”, pensar em tudo isto, daí quem viu e sentiu a novidade ficou plugado em alta voltagem.
    23 junho, 2012 as 1:01

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