Redenção


 

Três anos de idade.

E ele diz “eu vou te pegar”, com o desejo de estar soando de forma ameaçadora, indiferente ao sorriso largo que se estampa de lado a lado do rosto, as mãozinhas crispadas como o arremedo de personagem assustador que — onde foi que ele viu? — já tem registrado no seu pequeno arquivo de imagens para serem usadas nesta hora. Faz isto enquanto corre atrás de você, em proposital desacelaração, excitado demais para não querer de fato tocá-lo e pôr fim à perseguição, enquanto corre atrás de você, os pezinhos dentro de sandálias do Homem-Aranha levantando poeira do chão, enquanto corre atrás de você, desviando dos limites impostos pelo pequeno labirinto de concreto naquela área da pequena praça no canto mais assombreado pelas árvores da Redenção.

E enquanto ele diz “eu vou te pegar”, a voz buscando uma guturalidade que a cadência doce, tão suave, não permite, você desempenha o seu papel, correndo também de forma desacelerada, desviando dos limites do pequeno labirinto e tentando não mostrar a facilidade que, se quisesse, teria para fugir completamente de um menino de três anos de idade; você desempenha seu papel, são só três anos de idade, mas é claro que você está mergulhado no personagem, apostando no mise en scène de perseguido, desacelerando quase que por completo e ainda assim não esquecendo de adicionar uma aparência de dificuldade à sua fuga, malsucedida ao final, como não poderia deixar de ser, quando então, em uma espécie de tropeço, você se deixa, enfim, capturar — um toquinho só, na altura da sua cintura, pela mãozinha ainda crispada deste menino de três anos e tudo muda: agora está com você.

Três anos de idade.

E ele diz “eu vou te pegar”, e o canto dos seus olhos repara na composição corporal dele — tudo em seu arremedo de um personagem assustador está evidente —, querendo congelar cada detalhe naquela tarde onde o sol só se infiltra de forma muito escassa por entre o pouco espaço aberto entre as copas das árvores naquele canto mais assombreado da Redenção.

E enquanto ele diz “eu vou te pegar”, as perninhas grossas, de uma cor próxima do café-com-leite (cor de caramelo, disse aquela sua colega da empresa anterior, a empresa anterior velha e antiquada demais mas que, pensando bem, você se sentia um tanto mais seguro), você desempenha o seu papel, ainda que saiba que não com a intensidade que este menino de três anos de idade é merecedor; você desempenha o seu papel, ainda que já tenha idade suficiente para se alhear um tanto desta atividade a qual você gostaria de poder dedicar toda sua atenção e fazer dela, somente dela, a sua fonte de felicidade única nesta tarde tão gostosa, onde o sol só se infiltra de forma muito escassa, é como a doçura da mão de uma avó já muito velha que se deita sobre a sua pele, aquela mão assim tão macia e sempre cheirando a talco, é assim que se parece a luz do sol deitando sobre a pele de vocês dois em uma tarde como esta.

Três anos de idade.

E ele diz “eu vou te pegar”, e seus ouvidos captam cada sílaba da frase deste menino de três anos de idade e percebem a sua intenção de parecer assustador, enquanto corre atrás de você, e você tem repertório suficiente para lembrar que esta intenção na voz dele — ainda que você consiga abrir parênteses mentais de espanto — é associada àquele personagem vilanesco da animação que ele já viu uma boa dezena de vezes, retornando com seus dedos gordinhos, os mesmos dedos que agora estão crispados na tentativa completa de composição do personagem, pressão sob medida sobre a tela do tablet que este menino de três anos de idade maneja com uma facilidade e coordenação motora que você não sabia serem possíveis em uma criança tão pequena assim.

E enquanto ele diz “eu vou te pegar”, a cor próxima do café-com-leite das suas perninhas grossas recebendo a suavidade da luz do sol que se esgueira por entre o pouco espaço da copa das árvores muitos metros acima, você tem a consciência de perceber todas as camadas interpretativas e as referências de cultura popular presentes no papel desempenhado por este menino de três anos de idade, são só três anos de idade, e por isso, ainda que somado a diversos outros motivos — entre eles, o fato deste menino de três anos de idade ser seu filho e você desejar viver em intensidade cada detalhe naquela tarde, como se isto fosse realmente possível —, você deseja poder se concentrar com toda sua alma àquela suave perseguição que foi proposta totalmente por este menino de três anos de idade, retirando do seu pequeno arquivo de perseguições a noção de que uma perseguição como aquela, na qual ele desempenha um papel vilanesco e você foge, ameaçado, trará ainda mais alegria àquela tarde tão gostosa, onde o sol só se infiltra de forma muito escassa, e se faz sentir como a doçura da mão de uma avó já muito velha que se deita sobre a pele de vocês dois.

Três anos de idade.

E ele diz “eu vou te pegar”, os olhos completamente focados no alvo de sua perseguição, você, que ainda com o canto do olho consegue notar isto, a obstinação presente naqueles pequenos olhos deste menino de três anos de idade, enquanto corre atrás de você, concentrado única e exclusivamente àquela perseguição, ou arremedo de, com concentração que você inveja, já que, ao mesmo tempo em que corre, não consegue deixar de pensar que a tarde já se vai quase por completo, o sol se infiltrando agora de forma muito escassa por entre o pouco espaço aberto entre as copas das árvores naquele canto mais assombreado da Redenção,  e daqui a pouco o domingo já chega ao seu fim e são menos horas ainda para tentar descobrir como você vai pagar aquela conta que de segunda-feira não pode passar.

E enquanto ele diz “eu vou te pegar”, os pequenos olhos deste menino de três anos de idade que são assim, quase como dois riscos quando o sorriso se expande pelo seu rosto, estes pequenos olhos onde você gostaria de depositar por tempo infinito os seus, e conseguir, nem que se fosse por um átimo de segundo, ter a capacidade de compreender como é possível um milagre assim, algo que ontem era uma fagulha, uma intenção entre você e a mãe deste menino de três anos, e hoje corre atrás de você, as perninhas grossas, a cor próxima do café-com-leite, os pezinhos dentro de sandálias do Homem-Aranha levantando poeira do chão, enquanto corre atrás de você, que gostaria de ter a capacidade de compreender, mesmo que fosse para depois esquecer, e isto já valeria a pena, mais do que as coisas que agora estão na sua mente e que você não consegue esquecer mesmo que queira, como a conta que você precisa pagar na segunda-feira, ainda que tudo o que você quisesse fosse viver em intensidade cada detalhe nesta tarde, como se isto fosse realmente possível, esta tarde tão gostosa, onde o sol só se infiltra de forma muito escassa por entre o pouco espaço aberto entre as copas das árvores naquele canto mais assombreado da Redenção.

Três anos de idade.

E já restam poucas horas para tentar descobrir como você vai pagar aquela conta que de segunda-feira não pode passar, e daqui a pouco o domingo chega ao seu fim, parece chegar antes naquele canto mais assombreado da Redenção, naquele pouco espaço aberto entre as copas da árvore no qual o sol vai se infiltrando agora de forma muito escassa nesta tarde que já se vai quase por completo, mais rápido ainda porque você corre, pesaroso por não conseguir ter a concentração única e exclusivamente à perseguição deste menino que corre atrás de você, com uma obstinação visível nos pequenos olhos — você nota isso com o canto dos seus —, enquanto ele diz “eu vou te pegar”.

E enquanto ele diz “eu vou te pegar”, os pezinhos dentro de sandálias do Homem-Aranha levantando poeira do chão, você pensa na probabilidade deste menino de três anos de idade descuidar-se e cair no chão, sem conseguir desviar dos limites impostos pelo pequeno labirinto de concreto naquela área, e então você não consegue mais concentrar-se e cumprir o seu papel, nem perto de cumpri-lo com a intensidade que este menino de três anos de idade é merecedor, não consegue dedicar toda sua atenção àquela tarde, onde o sol já praticamente não existe, é como o acinzentado do lençol de uma casa já muito antiga que se deita sobre sua pele, aquele lençol assim tão escuro e sempre remetendo a medo, é assim que se parece a pouca luz do sol deitando sobre a pele de vocês dois naquela área da pequena praça no canto mais assombreado pelas árvores da Redenção.

Três anos de idade.

E ele diz “eu vou te pegar”, e seus ouvidos captam cada sílaba da frase deste menino de três anos de idade e você nota o quanto ele sibila, é sigmatismo o nome, e talvez amanhã você deva marcar um fonoaudiólogo de uma vez.

Três anos de idade.

Você lembra como ele era com dois?

E com um?

Era este mesmo sorriso, enquanto ele diz “eu vou te pegar”, o sorriso largo que se estampa de lado a lado do rosto? Um sorriso assim tão franco e resultante único do mais puro prazer que pode estar concentrado na sua noção de que uma perseguição como aquela, na qual ele desempenha um papel vilanesco e você foge, ameaçado, pode ser tão repleta de motivos para se ter alegria, um sorriso para você desistir de pensar em qualquer outra coisa — não importa a conta que você precisa tentar descobrir como vai pagar, não importa a probabilidade deste menino de três anos de idade descuidar-se e cair no chão, também não há por que preocupar-se com a escuridão deitando sobre a pele de vocês dois naquela área da pequena praça no canto mais assombreado pelas árvores da Redenção, e muito menos importa o sibilar deste menino de três anos de idade, com sua voz em cadência doce, tão suave, enquanto ele diz  “eu vou te pegar”. É um sorriso para você também sorrir; não pelo mise en scène, não pelo papel, mas sim porque é tudo o que esta tarde tão gostosa pede, e é tudo o que este menino de três anos de idade quer ver enquanto corre atrás de você.

 

 

 

 

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Alessandro Garcia nasceu em Porto Alegre (RS), em 1979. É autor de A sordidez das pequenas coisas, finalista do Prêmio Jabuti. É editor da revista literária Flaubert e finaliza o romance A zona da invisibilidade. E-mail:  www.alessandrogarcia.com

 




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