Quando Moda e Literatura costuram juntas


[de Ronaldo Fraga]

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Está na moda falar em Moda. O tema salta aos nossos olhos em qualquer lugar ultimamente, seja no jornal de domingo, na navegação sem compromisso pela web, ou na exposição do centro cultural mais próximo. Moda e mídia andam juntinhas, isso é certo. Estranhamente, como denuncia o pensador francês Gilles Lipovetsky, o tema não tem estado em alta como deveria entre os teóricos, estes sempre às voltas com os fenômenos sociais mais insolúveis.

Não-arte ou inutilidade, conforme queira o burburinho, o fato é que não dá pra pensar a história social e de costumes sem pensar naquilo a que a moda se atrela, o vestuário. Moda, e isso não é novidade nenhuma, é código, invenção, linguagem. E assim sendo, dialoga com o que está ao seu redor e comumente se exprime em páginas e páginas da melhor literatura.

Quem duvida?

Sempre que as duas palavras estão costuradas uma à outra, a primeira figura que me vem à lembrança é a de Emma Bovary, com suas luvas, seus chapéus, seus brochinhos e sua vaidade que, se a pôs a perder por uma perspectiva, por outra a faz muitíssimo interessante até hoje. Numa cena de baile, vamos encontrá-la num vestido cor de açafrão erguido por buquês de rosa pompom, mais uma rosa no coque e, girando no salão, as outras mulheres, adornadas de rendas, estremecendo nos corpetes. Os homens, casacas macias.

Da nossa moda no século XIX, José de Alencar foi um dos autores que pintou retratos bem vivos. Quem lembra de Horácio Almeida, príncipe da moda, leão da Rua do Ouvidor? O dândi transita por lá ainda, nas páginas de A Pata da Gazela. Esse nosso esteta frívolo se  apaixona por um objeto, um sapato, um “primor de pelica e seda”, para só depois se apaixonar pelo pé que calçara esse sapato (ah, os fetiches!). As discrições mais enxutas da indumentária masculina, segundo a filósofa Gilda de Mello e Souza, eram compensadas pelos acessórios de natureza fálica, charutos e bengalas, por exemplo.

Mais que contornar um personagem, suas roupas, seus sapatos, seu senso estético dão um desenho mais sólido de sua composição para o nosso imaginário, dizem um tanto sobre quem é aquela pessoa de palavras. E mais que a teatralidade com que escolhemos uma roupa ou deixamos de escolher, vestir-se e despir-se nos transformam, a nós, pessoas de carne, em personagens ao nosso modo.

No contrafluxo, a literatura também instiga a moda. Prova disso é o mineiro Ronaldo Fraga e suas leituras de vestir: A Cobra que Ri, baseada em Guimarães Rosa,  Todo Mundo e Ninguém,  inspirada em Carlos  Drummond de Andrade e O Turista Aprendiz, em conversa com Mário de Andrade. A fotógrafa americana Annie Leibovitz e seus editoriais para a Vogue no qual o tema são os contos de fadas e a literatura infantil, como Alice no País das Maravilhas, põe mais um elemento nesse alinhavo, a fotografia.

Para terminar, uma cesta de costuras:

O Império do Efêmero, a moda e seu destino nas sociedades modernas, de  Gilles Lipovetsky, Companhia Das Letras;

O Espírito das Roupas, Gilda de Mello e Souza, Companhia das Letras;

Roupa de Artista, o vestuário na obra de arte, Cacilda Teixeira da Costa, Imprensa Oficial;

Ronaldo Fraga, Carol Garcia, Cosac Naify.

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Micheliny Verunschk é autora de três livros: Geografia Íntima do Deserto (2003, indicado ao Portugal Telecom no ano seguinte), O Observador e o Nada (Bagaço, 2003) e A Cartografia da Noite (2010). Escreve porque é tudo o que pode saber. Gosta de teoria literária, moda, arquitetura, design, arte de rua e, ocasionalmente, de música. É blogólatra e workaholic. Costuma dizer que Osman Lins é seu pastor e por isso a ela nada faltará. Já viveu muitas vidas numa só e está sempre curiosa para saber as cenas do próximo capítulo.




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