Qual é a moral de Alice?



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Alice no país das maravilhas é um daqueles livros que, como toda grande literatura, estica e encolhe muito facilmente conforme os interesses, as habilidades e a idade do leitor.

Apesar disso, afirma Gilles Deleuze que Alice tem sobrevivido ao tempo graças principalmente ao interesse dos adultos por ele. O livro tem sido estudado de diferentes perspectivas: psicanalítica, hermenêutica, matemática, filosófica etc. Assim, muitas vezes, acabamos esquecendo que Alice nasceu para as crianças.

Sabe-se que a história surgiu num passeio de barco pelo rio Tâmisa, quando o reverendo e professor de matemática, na Christ Church, em Oxford, Charles Lutwidge Dodgson narrou as aventuras de Alice para três menininhas, entre elas Alice Liddell, que deu o nome à protagonista da aventura.

Muitos adultos consideram Alice no país das maravilhas um livro obscuro demais para atrair os pequenos, não confiando, como diria Cecília Meireles, na visão poética das crianças, na sua capacidade de ver o mundo com olhos livres de preconceitos e de regras impostas.

Alice começa com uma reflexão sobre o que seria um livro para crianças. Já na primeira página, a protagonista olha uma ou duas vezes para o livro que a irmã mais velha está lendo e se pergunta “de que serve um livro sem figuras nem diálogos”.

Se um livro para crianças precisa de ilustrações e diálogos, parece-me que Alice no país das maravilhas não deveria frustrar nenhuma criança, pois nele os pequenos encontrarão não só muitos diálogos como também muitas ilustrações, sendo que as primeiras foram desenhadas pelo próprio Carroll.

Apesar disso, paradoxalmente, Carroll mostra que a forma pode ser enganosa e que um livro ilustrado e dialogado pode esconder muitos temas relevantes e complexos, que interessariam mais diretamente o leitor adulto, sem que perca, contudo, a sua característica de livro infantil.

São muitos os temas abordados em Alice no país das maravilhas, como se sabe. Interessa-me aqui discutir a crítica ao sistema educacional que o livro comporta.

No nono capítulo de Alice, intitulado “A História da Falsa Tartaruga”, a menininha se encontra uma segunda vez com a Duquesa, uma personagem assustadora e bastante impositiva. Alice caminha distraída, quando, de repente, é interrompida pela Duquesa que diz:

“‘Você está pensando em alguma coisa, minha cara, e isso a faz esquecer de falar. Neste instante não posso lhe dizer qual a moral disso, mas vou me lembrar daqui a pouquinho’. ‘Talvez não tenha nenhuma’, Alice se atreveu a observar. ‘Ora, vamos, criança!’, disse a Duquesa. ‘Tudo tem uma moral, é questão de saber encontrá-la”.

Essa busca pela moral era, e parece-me que ainda é, perseguida pela escola. Na instituição escolar, tudo tem que ter um porquê, tudo tem que ter uma conclusão, de preferência uma única resposta para evitar grandes discussões, ainda que, muitas vezes, essa conclusão seja tão nonsense e absurda quanto as conclusões da Duquesa.

Nesse mesmo capítulo, mais adiante, por exemplo, para alimentar a conversa, Alice diz: “O jogo está bem melhor agora”, e logo ouve a réplica da Duquesa: “…e a moral disso é … ‘Oh, é o amor, é o amor que faz o mundo girar”.

A propósito, a literatura oferecida às crianças na escola não precisaria apresentar uma moral ao final da história, não é mesmo? Mas não é tão fácil nos livrarmos da moral, ou dos ensinamentos.

Será que é por isso que até hoje não ensinamos os nossos alunos a ler textos de vanguarda, isto é, textos mais inventivos e contestadores? Sabe-se que esses textos podem não ter uma moral facilmente discernível nem mesmo uma narrativa linear; aliás, muitas vezes, nem uma fábula eles apresentam.

Alice é um exemplo de um livro que não tem uma moral explícita, nem poderia ter, já que o paradoxo é uma de suas características principais. De modo que Carroll afirma uma coisa para mais adiante negá-la ou contrariá-la.

Muitos escritores de vanguarda produziram textos experimentais para crianças: Eugène Ionesco, Gertrude Stein etc., mas parece-me que nos tempos atuais ainda sofremos da mesma nostalgia da Duquesa, a nostalgia pelos contos de Charles Perrault, todos eles acompanhados por um preceito moral no final, pelas fábulas de La Fontaine… Não que essa literatura não seja boa, mas é importante abrir os horizontes do leitor, mostrar diferentes formas de escrita e diferentes propostas literárias.

A propósito da literatura infantil, ela ganhou um papel de destaque na Inglaterra, no século XVIII, com a difusão de uma política de alfabetização em massa. Grande parte da literatura dedicada às crianças, produzida nesse período, era voltada à escola e refletia as mudanças sociais promovidas pela Revolução Industrial, entre elas, a consolidação da burguesia.

A escola se tornou obrigatória nesse período justamente para colaborar com a solidificação política e ideológica da classe econômica dominante (a burguesia): estando as crianças em sala de aula, elas, além de desafogar o mercado de trabalho, seriam orientadas para a vida em sociedade segundo os padrões burgueses.

Naquela época, a literatura oferecida nas escolas estava ancorada em posturas pedagógicas nítidas e por isso inspirava a confiança na burguesia nascente, não apenas por endossar valores dessa classe, mas sobretudo por imitar seu comportamento.

Datam do século XVIII, todavia, grandes obras irreverentes destinadas às crianças, que são até hoje lidas, como, por exemplo, Robinson Crusoé (1719), de Daniel Defoe.

Já o século XIX ficou conhecido como “A Idade de Ouro” da literatura infantil, ainda que, em sala de aula, os livros de “boas condutas” ainda reinassem. Alice é justamente dessa época, assim como as obras Edward Lear, Hans Christian Andersen etc.

Voltando à Duquesa, ela representaria também a figura do professor convencional e autoritário, que se curva aos objetivos da instituição escolar, vista por Carroll de forma bastante crítica.

Quando a Duquesa aparece pela primeira vez no livro, no sexto capítulo, intitulado “Porco e Pimenta”, ela segura um bebê no colo e o obriga a gostar da pimenta, posta abundantemente na sopa. Martin Gardner lembra que, na Inglaterra vitoriana, era comum colocar muito pimenta na sopa para disfarçar o gosto de carne e vegetais estragados. Isso tem um grande valor simbólico, além de ser no mínimo um dado grotesco sobre a época.

Poder-se-ia traçar um paralelo entre a pimenta e os livros, pois muitas vezes os livros oferecidos aos alunos na escola, ainda que não sejam do gosto das crianças, são enfiados nelas goela abaixo, para usar uma expressão autoritária com a qual a Duquesa talvez concordasse.

No afã de fazer o pequeno se acostumar com a pimenta, a Duquesa chega a maltratá-lo e parece ensinar à Alice a maneira correta de tratar os pequenos teimosos. Diz a Duquesa: “Fale grosso com seu bebezinho,/ E espanque-o quando espirrar:/ Porque ele é bem malandrinho,/ Só o faz para azucrinar”.  Lembro que, naquela época, na escola, a palmatória e outros castigos não menos cruéis, ou inaceitáveis hoje, eram usados.

De volta ao capítulo nove, um dos preceitos morais da Duquesa deixa Alice bastante confusa. A Duquesa replica uma frase de Alice dizendo: “e a moral disso é ‘Seja o que você parece ser’ … ou, trocando em miúdos, ‘Nunca imagine que você mesma não é outra coisa senão o que poderia parecer a outros do que o que você fosse ou poderia ter sido não fosse senão o que você tivesse sido teria parecido a eles ser de outra maneira’”.

Alice diz que entenderia melhor a frase se ela fosse escrita, mas em troca ouve a seguinte ameaça da Duquesa: “Isso não é nada perto do que eu poderia dizer, se quisesse”.

De fato, a instituição escolar, na figura do professor, pode ser bastante ameaçadora, obrigando o aluno a entender, ou melhor, a engolir sem protestar, coisas absolutamente sem sentido concreto. Quando Alice afirma: “tenho o direito de pensar”, a Duquesa responde: “tanto quanto um porco tem de voar”. A liberdade é posta em xeque diante do sistema escolar.

Mais adiante, nesse mesmo capítulo, Alice é apresentada a um Grifo e a uma Falsa Tartaruga, os quais teriam frequentado a “escola do mar” e parecem ter aprendido nela que ouvir é muito mais importante do que falar ou indagar.

Não demora muito para Alice fazer uma pergunta à Falsa Tartaruga e ser repreendida pelo Grifo, que diz: “Devia ter vergonha de fazer uma pergunta tão simples”, deixando Alice com “vontade de se enfiar debaixo da terra”. Mais à frente, quando Alice novamente interrompe o discurso da Falsa Tartaruga, o Grifo a manda calar a boca.

Será que ainda hoje, nós, professores, não falamos mais do que escutamos? Será que não continuamos em sala de aula a impor sempre o nosso ponto de vista, como se os textos que lemos junto com os alunos só tivessem sentido se decodificados por nós? Será que sempre somos levados a procurar em tudo uma única resposta, como faz a Duquesa?

A Falsa Tartaruga explica a Alice algumas disciplinas da sua escola. Muitas delas bastante absurdas. Uma das disciplinas é “lavanderia”, uma matéria inútil, como bem observa Alice, já que se trata de uma escola no fundo do mar. Outras disciplinas são completamente aleatórias, todas oferecidas aos alunos indiscriminadamente.

Na Inglaterra vitoriana, a escola formava massas de alunos que deveriam se comportar “bem” em prol dos interesses econômicos e sociais do país.

No início do século XX, Durkheim afirmava que “o ideal pedagógico de uma época exprime, principalmente, o estado da sociedade naquele período”, pois, “a sociedade só pode viver enquanto exista entre seus membros suficiente homogeneidade: a educação perpetua e reforça”.

Pergunto-me qual seria o conceito de homogeneidade no século XXI. Será que não continuamos a reproduzir na escola teorias de outras épocas? Será que nossa escola continua no fundo do mar?

Mas, ao mesmo tempo que vivemos num mundo globalizado, existem as especificidades de cada região, e a multiplicidade é um valor do qual não queremos nem devemos abrir mão.

Outra pergunta que me faço é: será que a escola não continua ainda perpetuando e reforçando a homogeneidade social, como sempre fez?

São apenas reflexões que surgem da minha leitura de Alice, que não é necessariamente a leitura de vocês. Mas tenho direito de pensar, como diria Alice. Embora, devo confessar que, às vezes, me comporto como a Duquesa.

Quanto às crianças, talvez elas não façam nem estas nem outras reflexões. Mas isso não tirará delas o prazer de ler e se divertir com Alice e os amigos atrapalhados que ela encontrou quando caiu na toca do Coelho.

 

 

 

 

 

 

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Dirce Waltrick do Amarante é autora de As antenas do caracol: notas sobre literatura infantojuvenil e Pequenas biblioteca para crianças: um guia de leitura para pais e professores, ambos publicados pela Iluminuras. Tradutora de Alice no país das maravilhas, publicada pela Rafael Copetti Editor. E-mail: dwa@matrix.com.br

 




Comentários (1 comentário)

  1. Ana Guimarães, Dirce, adorei saber da pimenta na sopa para disfarçar alimentos estragados, concreta e simbolicamente. Maravilhoso texto sobre maravilhoso livro, parabéns! Sugiro divulgá-lo em todas as escolas do país.
    19 outubro, 2015 as 16:33

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