Prosa do grande cineasta


Fratura e desmoronamento: dos incidentes da escrita

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Não há nada no intelecto que não tenha passado antes pelos sentidos, diz uma célebre máxima empirista levada às últimas consequências nas realizações estéticas.  Eis porque a sensibilia é o domínio próprio das artes, por meio do qual as obras se fazem na exuberância e na morte. A própria alma (esta invenção da cultura), segundo Aristóteles, é um modo de sentir o corpo.

A escrita literária é uma máquina de ilusões. Para funcionar bem, ela parte do princípio de que tudo é real: os tempos coexistem, os espaços se cruzam, os elementos se aglutinam, se intercalam, se fundem, os códigos se alternam, se misturam. O cinema vira prosa, o cineasta, personagem.

Vale para qualquer gênero e sua degradação (quando se tripudia com ele na paródia, por exemplo), a sentença segundo a qual “o que cai na rede é peixe”. É que são incorporados ao texto e seu código os elementos que dão liga e que a razão sensível usa como estímulo para jogar com seus desejos e os do leitor.

Se o signo literário é a possibilidade linguística de materialização do real, constituindo-se mesmo na sua matriz simbólica, a escrita é esta experiência-limite.

Nossas relações com o mundo são limitadas a determinadas condições e imposições (as tarefas diárias, o trabalho, a exigência utilitária das coisas) e a literatura e a arte surgem como meios de se ultrapassar estes limites. Por isso, o desafio para quem escreve é tornar tal experiência um jogo (alguns preferem o termo aventura, por considerá-lo mais requintado) na medida em que ler é seguir pistas (verdadeiras ou falsas, tanto faz), preencher lacunas, erguer pontes entre as ilhas de sentido sobre o mar do nonsense para, quem sabe, torná-lo suspense. Desta forma, as aproximações, os cruzamentos, tornam as práticas da escrita e da leitura operações nas quais participam simultaneamente o logos e o ludus, de maneira que o que entendemos por racional se torna o instante luminoso de abandono da consciência no gozo do lúdico e de sua revelação sensível. Do mesmo modo, para quem gosta pensar, entender é mais importante que sentir desde que se admita que o pensado seja sentido enquanto tal na experiência de pensar.

Importa às operações da escrita e de seu reverso imediato, a leitura, que as regras do jogo sejam aprendidas no próprio ato de ler. A experiência do leitor consiste em jogar com as ilusões da escrita. Entenda-se, aqui, por ilusões, o conjunto de artifícios produzidos pelo texto em razão da verossimilhança, dos efeitos de real, do trabalho com a linguagem, cujo resultado pode ser avaliado pela máxima de Novalis: “quanto mais poético, mais verdadeiro”. Talvez por isso o prazer ou gozo do leitor seja proporcional à sua participação num jogo em que os naipes leitor, obra, autor, não estabelecem necessariamente relações simétricas.

A escrita vem do autor, mas não toda. As fontes são difusas, obscuras, imanentes. Não pode ser medida, calculada por nenhum critério. A régua não tem patente científica, pois tende a ser subjetiva como algo que rarefaz. A rarefação, por sinal, é o efeito último do gozo e da perda.

Sobre os mecanismos internos da produção textual, vale lembrar a ideia de Barthes segundo a qual o impulso da escrita moderna, em seu campo de referências, se deve não à “autoridade” das escolhas, mas a um suplemento de lembrança circular que investe o autor de liberdade e paradoxalmente o condena ao intertexto, que é a impossibilidade de viver fora do texto infinito. O texto infinito é constituído de matérias diversas, imagens de toda espécie (literárias, pictóricas, cinematográficas, geradas pela experiência cotidiana, etc.).

A escrita vem do autor e do outro que reflui em sua linguagem como as margens espessas que assombram um rio: a obra nasce das sombras, banhada em luz negra.

Dizer que O CINEMA SONORO INVENTOU O SILÊNCIO (o aforismo em letras garrafais é de Robert Bresson), nos faz pensar não apenas no cinema ou no silêncio, mas no modo como as relações entre imagens e coisas se produzem na subjetividade. No comércio entre ambas são os sentidos que contam, isto é, os jogos de linguagem que aliam ao exercício intelectual de prazer ou gozo uma experiência de vida. Nesses jogos, as aproximações são súbitas, promíscuas, fornecendo aos sentidos um gozo extra. Mesmo porque não há arte pura, ao menos segundo o paradigma estabelecido pela modernidade. Baudelaire reflete sobre isto: “Será por uma fatalidade das decadências que hoje cada arte manifesta a vontade de invadir a arte vizinha e que os pintores introduzem gamas musicais na pintura, os escultores, cor na escultura, os literatos, meios plásticos na literatura…?”

Há tempos que a história dos gêneros tornou-se processo de dissolução das formas fixas. Isto porque, conforme a intuição de Maurice Blanchot, a evolução da literatura moderna faz de cada obra uma interrogação acerca do próprio ser da literatura. Daí o caráter promíscuo das obras da modernidade, nas quais se misturam gêneros, códigos de diferentes linguagens, quem sabe para que a arte recupere sua sintonia com a potência de sentir e exprimir os sentidos desta experiência. Não certamente para comunicar algo, mas para transmitir percepções, pedindo novos signos e interpretações. A decadência como forma de arte e estilo no homem é um modo de gozar na intensidade os estertores de uma era nesse movimento da cultura que leva a razão sensível até o fundo do poço para expiar a espécie e quem sabe assim resgatar a potência. Nos termos de Baudelaire: indo “ao fundo do desconhecido para encontrar o novo”. Exceder sentidos talvez nos leve a conceber novos sentidos, outros valores para o homem. A produção do novo implica atualização do homem em relação ao mundo. Chama-se atual o que inventamos como medida para nossa sintonia com o que entendemos por realidade, este sentido que uma época atribui ao que se encontra em estado de transição permanente.

A reflexão acima surgiu com a leitura de Prosa de O Grande Cineasta, de Francisco dos Santos, particularmente de certos incidentes da escrita, como a degenerescência, a fratura, o desmoronamento.

Nesta obra, o estímulo e o excesso se fazem pela fragmentação da narrativa, pelos cortes bruscos, em rajadas inesperadas de sentido que por vezes deixam os sentidos em suspensão. O máximo pelo mínimo: eis o poder da síntese. A fratura é um artifício que permite expor a anatomia de um texto (suas partes íntimas e sensíveis, à maneira de uma ferida), estabelecendo com a leitura vínculos de intensidade. Quebra-se um texto para fazer vibrar as frases (irresistível dizer: torná-las extremidades dolorosas) e com isso intensificar seu poder de expressão. O paradoxal nesses efeitos de descontinuidade é que eles servem para realçar o desejo primordial pela continuidade, levando-se em conta que o sentimento da continuidade perdida é uma das maiores motivações humanas.

No livro de Francisco dos Santos, o recurso da fratura exposta das frases promove na leitura o desejo de resgate, pedindo que a razão sensível construa enquanto lê uma ordenação geral, como se pudesse restabelecer o elo de continuidade entre os fragmentos, enfim, sua totalidade perdida. Esta é uma das ilusões da escrita por conta de seus incidentes na leitura.

As frases entrecortadas do texto funcionam como chamarizes de leitura, ou faróis em alto-mar. Por isso têm de ser buriladas ao extremo, fornecendo ao texto sua dimensão poética, já que isoladas, desgarradas, as frases se voltam para si mesmas. Não é esse o princípio que Mallarmé enseja com a fórmula: “poesia se faz com palavras”?

Em Prosa de o Grande Cineasta, o cultivo das frases as faz soar, por vezes, como máximas ou perfeitos aforismos, ainda que paródicos ou em tom de deboche: “Com um cetro e pedaço de seda tem gente que faz notas de cem, mas falsificar um cacto é coisa que não se faz” (…) “Aniquilação é morrer engalfinhando no próprio ego” (…) “Um homem bom está muito próximo de um homem bomba…” Neste último, a moral da história é pendurar a moral de cabeça para baixo.

Numa outra ponta de análise, o texto fragmentário se deixa ventilar e invadir pelo branco da página, tornando-se agrupamento de ilhas de palavras, não totalmente isoladas, já que cabe ao leitor e ao jogo proposto pela escrita estabelecer os ligamentos, criando a trama paralela da leitura.

É certo que o olhar do leitor jamais encontra o do autor no outro lado do arquipélago. Ele submerge no alto mar da travessia. Nesse périplo o leitor, na melhor das hipóteses, não pode encontrar ninguém a não ser ele mesmo. Este encontro é sua vitória, seus louros pela participação no jogo.

A página em branco, símile do écran do cinema antes do filme, é um elemento mais perturbador do que pacífico e enquanto tal afeta os sintagmas e suas possibilidades de sentido, produzindo a proliferação em déficit, ou seja, fazendo emergir entre as frases, a armação ostensiva do branco, essa retórica do espaço sempre se impondo, intercalando as frases, aumentando o abismo entre as ilhas de sintagmas, inundando-as numa claridade cega. Deste modo o espaçamento é uma operação de linguagem por meio da qual a narrativa adquire poder de navegação próprio, remetendo o leitor a múltiplas configurações de sentido. A lógica, aqui, não é conduzir o leitor são e salvo a algum lugar, ainda que remoto, mas deixá-lo à deriva (à própria sorte) em alto-mar para que o sentido da viagem seja a viagem em si. A bem dizer, uma viagem sem volta.

O branco (o silêncio) é elemento não-verbal que força o texto a produzir sentidos por espaçamento, como, aliás, ocorre no cinema com os tempos mortos que os cineastas (Antonioni, Tarkovsky, Ozu, por exemplo) enxertam na narrativa, fazendo o olhar deter-se demoradamente sobre algo aparentemente insignificante, dando a impressão de que em cena nada acontece. Eis o espaço-tempo do olhar invertido, da imersão subjetiva, da experiência interior. Assim, contemplando (religiosa e eroticamente) as imagens em A aventura, ou em A noite (ambos de Antonioni), o espectador segue por meandros alheios à lógica corriqueira do olhar. Neles, o que interessa, é dispor-se em estado de morosidade plena (delectatio morosa), cujo deleitar-se é a razão de ser do observador improdutivo, e, no extremo, a mais-razão de seu gozo. O largo uso deste recurso em Prosa de o Grande Cineasta conduz ao paradoxo de Wittgenstein, segundo o qual é mais importante aquilo que não se diz do que efetivamente o que está dito.

A imprevisibilidade é outro valor literário que Prosa de o Grande Cineasta nos lega. Navegamos num falso roteiro ao leme da incerteza. Nada nele parece querer plantar-se, tornar-se sólido, estável. Tudo é escorregadio, vacilante. Mas não saber para onde ir, na leitura, não é nenhum martírio. Pelo contrário, faz parte do espírito do jogo. Perder-se na leitura é algo mais do que experiência de consumação do sujeito. Implica aquisição de bens intelectuais além do gozo próprio da consumação. Nessa medida, a literatura é uma experiência de gozo e de perda, incorporação de valores abstratos e consumação de impulsos subjetivos.

O que parece cativar Francisco dos Santos é a possibilidade de tornar as relações textuais jogos de luz e sombras, como numa espécie de lanterna mágica, tornando o leitor um eventual espectador de artimanhas formais que o levam a associar imagens na troca simbólica entre os códigos da literatura e do cinema.

As lacunas deixadas são invariavelmente preenchidas, pois a leitura em si mesma é trama, articulação de signos sobre um fundo imamente, entrelaçamento de dados sensíveis e imateriais, conjuração de aspectos simbólicos, afetivos, ornamentais. Eis o que leva à dilatação do tempo e do olhar que deste modo se consumam em meio a imagens, sentidos, sensações de perda e gozo.

Tomando o cinema e seu código como principal referência, o romance (?) joga o verde para colher o maduro, Isto é, impregnar o leitor de micro-episódios que formam aos poucos um conglomerado de cenas, ações irregulares, por meio de personagens instáveis, flutuantes como as sombras deambulantes dos filmes, as quais, no entanto, produzem efeito de real na leitura.

Prosa de o Grande Cineasta se divide em seqüências que parodiam a forma dos roteiros de cinema. As ações da narrativa são indicações de cena e simultaneamente efeitos de acontecimento por antecipação. O texto entrecortado gera a ilusão de relações paralelas sobre um grande plano-sequência imanente. Será outra coisa o fragmento? O fragmento é a impossibilidade do texto absoluto, mas paradoxalmente se converte num modo de agenciar o indizível por elipse, por força de atração e condensação das possibilidades linguísticas, deixando entrever, pela leitura, a potência infinita dos signos. Em sendo o fragmento parte de uma suposta totalidade, ele se exibe como falta, como ausência, reportando-se a uma unidade ideal, porém inexistente ou inalcançável, mas que contraditoriamente se faz presença imaterial, como quem sente dor numa parte extirpada do corpo.

Talvez se possa esboçar uma imagem da estrutura do livro do seguinte modo: ilhas de sintagmas que formam as microcenas da narrativa, cercadas e intercaladas pelo espaço em branco como um mar de silêncio: as dimensões do dizível e do indizível. Em princípio é isto. Mas a operação da leitura desvela os mecanismos secretos da escrita nesse jogo de fundo e superfície, elementos também fictícios, isto é, modos de atualização do real.

Entre o dizível e o indizível, algo vem à tona na leitura, constituindo este suplemento ou diferença: o interdito. O interdito não é outra realidade, mas a própria, mostrando-se no âmbito do singular, do primordial da vida. As ilhas correm no olhar do leitor associando-se a outras ilhas imaginárias interligadas numa entretela interna ou arquipélago infinito. Partindo-se dessa visada, concebem-se outros livros e dizeres, fatos de linguagem produzidos no corpo a corpo com o texto.

A narrativa traz planos-sequência cuja montagem a leitura realiza. As personagens surgem e desaparecem muito rapidamente, já que as palavras, aqui, devem acompanhar o ritmo acelerado das imagens, lembrando que o cinema se articula na conjunção de três fatores imanentes: imagem-movimento-tempo. O livro de Francisco dos Santos representa o jogo desta simulação que a escrita transfigura e oferece como real: “Depois passa correndo o jovem amigo do Homem-do-cigarro atrás dos quenianos que vão à frente com as suas contas…” O leitor imagina o grupo de corredores subindo o “morro cenográfico” que o “Grande Cineasta” supostamente constrói. Mas, no momento seguinte desta ação simulada, ressurge outra de maior dimensão que engloba a primeira na voragem súbita das imagens: “[ Abre a cena e a cidade toda corre atrás dos quenianos… ]” A inversão dá conta do poder das palavras e de sua soberania com relação às imagens. As imagens literárias são efeitos que as palavras adquirem em seu âmbito próprio. As imagens podem suscitar palavras, mas precisam do discurso para poder se articular, interrogarem-se a si mesmas e não apenas se constituindo em mera interrogação. Quando se trata de gerar sentidos, há duas saídas: tudo acaba na linguagem ou no silêncio (poder-se-ia argumentar que nada então se acaba, mas é suspenso).

Em Prosa de o Grande Cineasta a circulação das personagens em ritmo alucinante as deforma no olhar como vultos retorcidos. Uma das maiores surpresas do livro é poder acrescentar à ficção este suplemento ilusório que deixa as personagens quase fluídas, leves e diáfanas como os fantasmas de celuloide que tanto encantam os cinéfilos. Afinal, “esses tipos pegam as pessoas pela sombra…”

Já é tempo de mencionar, na alegoria de Prosa…, uma personagem especialmente estranha e multifária: a “pauta”, pretexto para as figurações do sentido.

A pauta, antes de qualquer coisa, é a medida do que deve ser feito ou seguido, portanto, um regulamento, uma pragmática. A pauta é o princípio da cena. Ela pode ser o script, conter marcações, rubricas, protótipos de personagens, esboços, rabiscos. Mas no livro de Francisco dos Santos, as “pautas” são curingas que jogam em várias posições e representam qualquer papel: “É assim mesmo? Elas vão com um… Vão com outro”… “O Sr X (balançando a cabeça sem acreditar no que ouvia…) responde: São pautas, cara…”

Deslocadas de seu código original, as pautas produzem certo estranhamento sobre as outras personagens com as quais contracenam. Às pautas não basta ser honestas, é preciso aparentar ser, como a mulher de César. Mas o que aparentam é precisamente o que não podem ser. Ou se preferirmos, como nas simulações de Magritte, as pautas não são pautas, mas seres de linguagem (podendo até passar por cachimbos) que jogam com os sentidos na encruzilhada dos gêneros:

“Ajoelhada, a pauta fez sua oração…”

(…)

“Pediram porquinho… A pauta burra fez cara de nojo e perguntou se porquinho era pescado no Tietê…”

(…)

“Com beijos de língua e tapinhas de incentivos o Sr. X  põe duas garotas para faturar… Depois diz à pauta uma dessas coisas que se diz para agradar às pautas…”

(…)

“Melhor maneirar, querido, o corpo humano não aguenta o que você anda fazendo”… “Problema do corpo humano pauta”…

O que são estas figuras senão seres mimetizados para efeito de ilusão da escrita? O que legitima a função das pautas e as torna verossímeis é o jogo de permutação dos códigos, no caso, a literatura e o cinema. O jogo é fazer o cinema falar pela literatura e a literatura pelo cinema de modo que as trocas simbólicas se façam e os sentidos se produzam.

O dado inicial apresentado ao leitor como advertência é que o morro a ser filmado, isto é, projetado pela leitura, encontra-se em franco desmoronamento. Ou seja: o filme que o leitor produz a partir da narrativa deste falso roteiro acaba tomando ares de uma paranoia com a própria ficção (ou sua realidade) e o que o leitor vê como filme são as imagens de seu próprio desmoronamento na leitura. Afinal, a história de Prosa de O Grande cineasta é semelhante a do diretor-personagem de Oito e meio e sua impossibilidade de realizar o filme absoluto. O absoluto talvez seja o pretexto para a literatura, como para toda arte, se colocar numa relação com a potência.

Segundo o autor, a ampulheta é a melhor imagem para definir seu livro. Minimamente falando, há que se considerar o tempo e seus efeitos. A ampulheta é o próprio tempo figurando-se na ação de passar e de arruinar seres e coisas simultaneamente aos olhos de quem vê (de quem sente?). Isto porque o único modo de conceber o tempo (e lhe conceber real) é colar-se a ele como realidade suplementar. É um pouco deste exercício de simulação que Francisco dos Santos nos leva a fazer, já que a instabilidade proposital da narrativa e o deslocamento constante das personagens nos planos-sequências aceleram o efeito de desmoronamento do sujeito e dos elementos do texto até o último grão de areia ou suspiro em fade – out. É que não se pode subir um morro com segurança, nem no espaço literário, nem na vida real. Se algo desmorona é porque não pode permanecer estável, idêntico a si mesmo, homogêneo. O jogo é propor um exercício de heterogeneidade entre os códigos (literatura, cinema) que não saem incólumes dos abalos provocados pelo desmoronamento (da leitura, do sujeito, da narrativa, do gênero).

Em suma: Prosa de o Grande Cineasta é uma narrativa alucinada e descontínua em que as cenas se produzem por meio de trucagens, arremedos, simulações e arapucas de todo tipo. Situamo-nos, com efeito, na presença de personagens que desaparecem inadvertidamente na linha seguinte e reaparecem em outro lugar sem nenhum motivo aparente a não ser em razão do jogo que desloca o olhar o tempo todo, como se fossem retirados os trilhos na frente daquele que segue por eles. Isto porque a cadeia de ações da narrativa importa menos que sua ruptura, este modo de descontinuar as linhas do texto em troca de uma ampliação do olhar por seus interstícios. Mas toda descontinuidade, no fundo, vive da nostalgia da continuidade perdida. Por isso é necessário reatar os fios, trazer de volta as personagens, o Grande Cineasta e suas inseparáveis pautas. Não esqueçamos, é preciso agradá-las.

A alucinação é o ponto mais alto na escala das ilusões da leitura: “Mas qual a medida do belo nos dias atuais? Questionável, se há algo a ser questionado, foi não se levar em conta o volume de sangue do paciente… Podiam ter evitado o constrangimento dos desmaios…” “A economia chinesa será a maior do mundo… (Desconversa o médico…)”.

É certo que estas frases disparatadas recheadas de peripécias esdrúxulas são feitas com o distanciamento crítico que o humor exige. Porém, não é o discurso do louco que vem à tona, mas o artifício lúdico da simulação. O humor e seu principal agente, o riso, se produz em golfadas que arrebatam o olhar. O propósito do humor é nos prender algum tempo na berlinda, para que encaremos algo que nos incomoda e faz desmoronar em nós mesmos o que talvez preservemos ou queremos manter em completo sigilo. Não é à toa que o riso parece sempre algo fora do lugar. Baudelaire prefere dizer que o riso degrada. O degradado (ou degenerado) é o valor corrompido pelas forças que contrariam as determinações do mundo homogêneo: “Seus amigos rolam de rir toda vez que Hdc sugere que Toulouse-Lautrec não sofreu acidente algum, que na verdade era filho de um dos anões de Velásquez…

Certamente as obras de arte geram e degeneram em sua própria filiação. Eis um bom motivo para o humor não de todo desprovido de maldade (caso contrário não seria humor). A beleza do humor dialoga com os gêneros baixos e com o degenerado e não com os mais elevados. Aristóteles já o demonstrou na Poética.

É um pouco essa a dinâmica de Prosa de o Grande Cineasta, deixando o leitor em meio a efeitos de fratura, imprevisibilidade, degradação, desmoronamento. Certas obras exigem mesmo ser lidas a fórceps, à navalha do olhar, como no caso desta em particular, orientada às cegas pelas “pautas” à maneira de uma claquete simulando um cortador de grama.

Não será um total despropósito encerrar este texto com um aforismo em homenagem a este livro incomum: viver a farsa é questão de estilo; atenuá-la é morrer.

 

 

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Leia mais fragmentos do livro aqui.

 

 

 

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Contador Borges, poeta, ensaísta e dramaturgo, publicou as seguintes obras: Angelolatria (poesia,1997), O Reino da Pele (poesia, 2003), Wittgenstein! (teatro, 2007) e A Morte dos Olhos (poesia, 2007); Insônia ou a Sombra da Lua (teatro, 2011), A cicatriz de Marilyn Monroe (poesia, 2012). Traduziu Aurélia, de Gérard de Nerval, O Nu perdido e outros poemas, de René Char, A Filosofia na Alcova, do Marquês de Sade, Diálogo entre um padre e um moribundo (do mesmo autor), entre outros títulos. E-mail: borgesmenor@yahoo.com.br




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