Alma oblíqua


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Alma oblíqua é o primeiro livro do escritor espanhol Vicente Cervera Salinas a ser publicado no Brasil. Entre os muitos méritos desta realização, dois se destacam. Em primeiro lugar, colabora para que se ampliem as formas de contato dos leitores de língua portuguesa com a produção cultural hispânica. Em segundo lugar, há uma valorização do trabalho do escritor contemporâneo, cuja obra ainda está em construção, com a tentativa de fazer circular suas ideias e de submetê-las à decifração e ao diálogo com os leitores.

Apesar de ser um autor somente agora apresentado ao público brasileiro, a intimidade de Cerveras Salinas com a escritura poética e com a palavra, ultrapassa os limites deste livro e diz respeito à publicação de outros livros de poesia, anteriores e posteriores a Alma oblíqua, bem como a estudos ensaísticos.

No que diz respeito especificamente à organização, Alma oblíqua reúne poemas que foram agrupados em quatro partes e que constituem uma voz poética que se adona da riqueza de estímulos sensoriais e temáticos da realidade para recriá-los por meio do jogo com a linguagem. A dificuldade da meta está reconhecida desde o primeiro poema e,  ao invés de amedrontar, instiga o poeta a criar sua realidade fincada no jogo simbólico e na tradição literária: “(…) Soy la ruta esquiva y sinuosa /  en el plano inmaculado. La sesgada / dirección de toda línea. Alma / oblicua que ama, al fin, la rectitud.” Mas o alerta ao leitor sobre a pauta que rege essa realidade esteticamente construída, também funciona como um convite para acompanhar o eu-lírico em suas descobertas.

Por último, como se trata de uma edição bilíngue, é importante registrar a opção do tradutor por manter-se fiel ao exercício com a linguagem que o poeta realiza na edição original que se reflete, por exemplo, em sua opção por valorizar o padrão formal da linguagem em português.

 

Solange Munhoz
[Doutoranda em Literatura Espanhola – Universidade de São Paulo-USP]

 

 

 

Alma oblíqua

 

Se me concedes o benefício da dúvida,

acharás tesouros refulgentes

cuja luz dimana esse passado que,

buscando em mim, descobres, pois te

ofereço. Mas também poderás

embriagar-te com vetustas casas de

dois andares, câmaras de sonhos estendidos

no verão, barguenses[1] disfarçados

de escrivaninhas ou terraços onde

clívias e gerânios velam a tênue

passada de um gato remoto e cinza.

Pensa bem. Ali, a mais

diáfana das cores acha sua sombra

desprendida. Em seus brilhos podes

ofuscar-te e ainda cair. Não é traidor,

talvez, quem hoje te avisa.

E não é que eu queira te transmitir

uma obscura notícia que perigo

chamas e ameaça. Só quero

desmatar futuras selvas com presentes

comunhões. Em mim desembocam

depressões. Precipícios aparecem na

planície. Sou a rota esquiva e sinuosa

no plano imaculado. A enviesada

direção de toda linha. Alma

oblíqua que ama, ao fim, a retidão.

 

 

 

El alma oblicua

 

Si me concedes el beneficio de la duda,

hallarás tesoros refulgentes

cuya luz dimana ese pasado que,

buscando en mi, descubres, pues te

ofrezco. Mas también podrás

embriagarte con vetustas casas de

dos pisos, cámaras de sueños tendidos

al verano, bargueños disfrazados

de escritorios o terrazas donde

clivias y geranios velan la almohadilla

rota de un remoto y gato gris.

Piénsalo bien. Allí, el más

diáfano de los colores halla su sombra

desprendida. En sus brillos puedes

ofuscarte y aun caer. No es traidor,

tal vez, quien hoy te avisa.

Y no es que quiera transmitirte

una oscura noticia que peligro

llamas y amenaza. Sólo quiero

desbrozar futuras selvas con presentes

comuniones. En mí abocan

hondonadas. Precipicios aparecen en el

llano. Soy la ruta esquiva y sinuosa

en el plano inmaculado. La sesgada

dirección de toda línea. Alma

oblicua que ama, al fin, la rectitud.


[1] Móvel de Bargas (Esp.): Mueble que toma su nombre de la ciudad española de Bargas donde se fabrican. Es un mueble de madera, con muchos cajones pequeños adornados con labores de talla, y en parte dorados y con colores muy vivos.

 

 

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LANÇAMENTO:

Dia 18 de agosto (a partir das 11h), no Instituto Cervantes (São Paulo), com um bate-papo sobre a poesia de Vicente Salina e leitura bilíngue de seus poemas. A edição é acompanhada por um Audiolivro com os poemas declamados em espanhol e em português.

 

Instituto Cervantes de São Paulo

Av. Paulista, 2439 / 1º
Metrô Consolaçao
Bela Vista – São Paulo
01311-300 – SP
Tel.: 55 11 3897 96 00
Fax.: 55 11 3064 22 03
informasao@cervantes.es

 

 

 

[O selo MUSA RARA é uma parceria com a TERRACOTA EDITORA] [Onde encontrar os livros do selo: AQUI]

 

 

 

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Vicente Cervera Salinas (Espanha, 1961) é professor, ensaísta e poeta. Professor catedrático da Universidade de Múrcia desde 2004, onde se doutorou com uma tese sobre Borges.

Como pesquisador tem escrito diversos ensaios e estudos sobre literatura hispano-americana comparada (La palabra en el espejo. 1996) ou nos vínculos entre o pensamento filosófico e a criatividade poética (La poesía de Jorge Luis Borges: historia de una eternidad. 1992 e La poesía del logos. 1992.) Recebeu o Prêmio Anthropos de Ensayo com sua obra La poesía y la idea e publicou em Caracas, em 2007, Fragmentos de una vieja querella. Editou Corrientes literarias de América Latina de Pedro Henríquez Ureña (2007) e Cuentos fríos de Virgilio Piñera (2008).

De aurigas inmortlaes, sua primeira obra poética, foi publicada em 1993. Nela surge uma constelação histórica de vozes unidas pelo espaço comum do amor e suas contraluzes. La Partitura (2001) é seu segundo livro de poemas e propõe uma passagem por sete estações espirituais, que pautam, em seu contraponto, o compasso musical dos afetos e das paixões. Em 2003, publicou El alma oblicua, obra que agora traduzimos ao português, depois de ter sido vertida ao italiano (L´anima obliqua. 2008) e ao francés (L´âme oblique, 2010). Em 2010, publicou Escalada y otros poemas, precedido de um prólogo-poema de José Emilio Pacheco.

 

 

 

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Rodrigo da Rosa (1982): Bacharel e licenciado em Letras (Português/ Espanhol) pela Universidade de São Paulo (USP) é poeta premiado, cronista e professor de Língua Portuguesa e Espanhol da Rede SESI. Tem diversos trabalhos publicados em revistas literárias, como BalaioCartaphilus (Espanha), em jornais, como Diário de Montemor (Portugal) e em livros, pela Secretaria Municipal de Educação de São Paulo e pelas editoras Humanitas e Annablume. E-mail: franzrosa@hotmail.com Blogue: www.temotemposuaordemjasabida.blogspot.com


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