Preço fixo ou desconto nos livros?


………………….Preço fixo e políticas públicas para o livro – 1

.

Na última FLIP, a Senadora Fátima Bezerra (PT-RN), deu entrevista para a TV PublishNews a propósito de seu projeto de Lei do Senado 49/2015,  cuja ementa declara que “Institui a Política Nacional do Livro e a regulação de preços”, mais conhecida como projeto da lei do preço fixo.

A Senadora Fátima Bzerra (PT-RN), é uma defensora do livro e da leitura.
Fotos de Luiz Xavier
.

Em repetidas ocasiões escrevi que sou favorável ao projeto, como se pode ver aqui, por exemplo, e faço questão de reiterar que se trata de medida importante para os leitores, os autores, as livrarias e para a indústria editorial brasileira. Mas também já afirmei que essa medida, quando e se for aprovada e sancionada, não será uma panaceia. Até porque, como tentarei mostrar, está muito longe de instituir uma política nacional do livro.

O projeto da Senadora Fátima Bezerra, que vem se distinguindo desde seu mandato de Deputada Federal, como uma das mais ativas defensoras do livro, da leitura, das bibliotecas, das livrarias e da indústria editorial brasileira, está evidentemente calcado na chamada Loi Lang, em vigor na França desde 1981. É bom chamar atenção que o link acima reflete uma série de modificações importantes na Loi Lang até este ano, incluindo alguns dispositivos que comentarei mais adiante, já em vigor na França.
.


..Jack Lang, Ministro da Cultura da França, introduziu a “Lei do Preço Fixo”.

.

Em resumo, a lei do “preço fixo” se forma em torno de alguns pontos fundamentais:

1) O editor fixa o preço de venda ao público do livro (preço de capa);

2) Esse preço de capa, na França, poderá ser oferecido pelos varejistas com desconto máximo de 5%. Essa a disposição do art. 1 da lei francesa: “Les détaillants doivent pratiquer un prix effectif de vente au public compris entre 95 % et 100 % du prix fixé par l’éditeur ou l’importateur”.

3) Na redação do projeto da Senadora, aparentemente se preferiu estabelecer o desconto máximo de 10%. Entretanto, a disposição está confusa, por duas razões. Primeiro por declarar que o preço efetivo será de 90 a 100% “do preço da efetiva aquisição pela livraria”, o que não faz sentido. A redação francesa, diz que “le prix effectif de vente des livres peut être compris entre 91 % et 100 % du prix de vente au public”, ou seja, do preço de capa determinado pelo editor, e não do preço da efetiva aquisição pela livraria. Essa menção a um desconto maior de fato existe na lei francesa, mas está no art. 3 da Loi Lang que trata da aquisição de livros pelo estado, por comunidades e bibliotecas, e que examinarei no próximo post. Por hora vale mencionar que, acredito, o projeto da Senadora Fátima Bezerra pretende limitar o desconto na venda ao público a 10% do preço de capa.

4) Esse preço de capa determinado pelo editor será válido por um ano a partir do seu lançamento. O projeto determina que as modificações de preço deverão ser comunicadas pela editora com uma antecedência mínima de 30 dias. Aqui, também seja dito que a redação está confusa. A redação do artigo determina a validade do preço por um ano, mas o § 3 desse mesmo artigo 6 estabelece esse aviso prévio. Como ainda vivemos na sombra de inflação, esse dispositivo abre a possibilidade de que a editora modifique o preço antes do prazo de um ano. Precisa ser melhor redigido.

5) Depois do prazo estabelecido por lei, quem comercializa no varejo pode fixar o preço que quiser. Existem determinadas exceções à regra de fixação (livros raros, edições especiais, etc.).

Alguns autores independentes, em comentários que andei lendo nas redes sociais, reclamaram que esse dispositivo lhes impede de “vender barato” seus livros. Acredito, no entanto, que essa posição decorra de uma falha na compreensão do texto. O editor – ou o autor independente que edite – pode fixar o preço que quiser. Os autores que reclamaram possivelmente estão pensando no fato de que as redes e grandes livrarias não lhes comprarão o livro “porque não lhes interessa”. Bem, isso já é outro problema, que não diz respeito à fixação do preço, e que também já abordei em outras ocasiões.

Outros críticos da medida do “preço fixo” citam sempre o exemplo dos EUA, onde os descontos de venda ao consumidor final são completamente liberados. Só que esses críticos se esquecem de que a Lei Robinson-Patman, exatamente conhecida como lei contra a descriminação de preços, torna ilegal que os fabricantes (incluindo os editores) ofereçam descontos diferentes para varejistas que ocupem posição similar no mercado. Ou seja, todas as livrarias recebem o mesmo desconto das editoras, que pode mudar por livro, mas é sempre válido para todas. Os atacadistas podem receber descontos maiores, mas todos os atacadistas (distribuidores) recebem descontos iguais, e atacadistas não podem usar essa vantagem como varejistas. Em suma, todos os varejistas recebem o mesmo desconto, e se oferecem descontos maiores ao consumidor final, isso se dá às expensas de suas próprias margens (ver “Merchants of Culture – The Publishing Business in the Twenty-First Century”, de John B. Thomson, pg. 268 e seguintes). Em 1994, a ABA processou – e ganhou a causa – a Houghton Mifflin, Penguin e outras por oferecerem maiores descontos para as cadeias.

Isso é exatamente o contrário do que acontece por aqui, onde as grandes redes e livrarias conseguem descontos muito maiores que as livrarias independentes, e assim “fingem” dar descontos aos consumidores que, na verdade, não alteram suas margens de comercialização e lucro. Quem já tem uma certa experiência do mercado editorial brasileiro há de lembrar do Sr. Oswaldo Siciliano logo depois do Plano Real, esbravejando e exigindo mais descontos para sua rede, que ganhava muito com a inflação recém domada. Substituam-se os ganhos com a inflação com os maiores descontos das grandes redes e pode se compreender como é possível que essas ofereçam os tais descontos impossíveis para as livrarias independentes ou de menor porte.

Ora, acredito que a adoção do “preço fixo” tenda – repito, tenda – a tornar os descontos um pouco mais homogêneos. Mas, como diz o ditado em castelhano, “hecha la ley, hecha la trampa”, tanto a lei Robinson-Patman quanto a possível adoção da lei do preço fixo aqui deixam uma bela janela aberta. São as publicidades “cooperadas”.

A editora que quiser, hoje, colocar seus livros em vitrinas, ou nos balcões de entrada das lojas, além de eventualmente ser achacada para oferecer um desconto maior (que, aliás nessas redes, já virou praxe: sem o desconto que elas querem, não tem papo) ainda deve entregar “x” exemplares de bonificação. Ou, quando inauguram nova loja, pedem o “enxoval” – prática herdada dos supermercados – para o estoque inicial da bela loja. Nada disso, que representa de fato um desconto adicional, estará impedido pelo projeto de lei. Nem nos EUA, e isso é um tópico quente nas negociações entre as editoras e as cadeias e a Amazon.

Só que, como as lojas não poderão oferecer “descontos” para esses mega-lançamentos (embora possam oferecer essa exposição maior), a sua alavancagem diante das editoras diminui. Em tese, pelo menos, pois os “comerciais” já devem estar escarafunchando as respectivas cucas em busca de outros modos de burlar o “preço fixo”. E não duvido que consigam.

Caso se consiga que os descontos diminuam para as grandes redes, acredito que haja um efeito colateral importante, que é o da diminuição do preço de capa.

Dessa vez, diminuição real, e não essa brincadeira sem sentido, perpetrada por algumas pesquisas, de dividir o total de faturamento pelo número de livros vendidos, que não significa coisíssima alguma. Essa brincadeira equivale a somar preços de laranjas, mexericas e limões (fico aqui só porque todos pelo menos são cítricos) e dizer que a média do preço deles é “x”. Quando se vendem mais limões, o “preço médio” baixa. Com a venda de mais laranjas, o “preço médio” sobe. Não quer dizer nada.

Por que diminuiria o preço de capa?

Remeto aqui ao já mencionado post que escrevi para o portal Cultura e Mercado:  “como as editoras têm seus limites de custo e rentabilidade, descontos maiores podem ser uma ilusão: são dados porque o preço de capa nominal é elevado para que isso aconteça. Exemplo hipotético, de um livro com preço de capa nominal de R$ 100,00. Suponhamos que o custo da editora + direitos autorais + impostos + lucro seja de 40% do preço de capa. É o limite mínimo que a editora tem que receber. Suponhamos também que os custos do varejista, em média, sejam de 30% do efetivamente pago às editoras. O grande varejista pode então dar um “desconto” de 25% sobre o preço de capa, vendendo o livro a R$ 75,00, com vantagens. Mas o pequeno livreiro, que recebe o livro com desconto de 45%, ou seja, tendo que pagar R$ 55,00 para a editora, não tem condições de fazer isso”.

Se o preço fixo fosse adotado, todos poderiam vender os livros a um preço de capa menor, sem prejudicar suas margens. Acredito quer isso tenderia a baixar, pouco a pouco, esse preço de capa.

Como se pode ver, no caso dos EUA, a legislação tende a aplainar o campo de negociação entre editoras e varejistas de uma maneira diferente que a legislação francesa. Nos EUA, deixa aberta a porta para que, com ganhos de produtividade, melhores práticas administrativas e mais investimento em tecnologia, os grandes varejistas possam ofertar descontos a seus consumidores finais. A legislação francesa, por sua vez, provoca um alinhamento no preço final ao consumidor o que, em tese, favorece o leitor comprador de livros. Entretanto, se as redes melhoram sua produtividade, passam a ter lucros maiores, e maior capacidade de investimento e expansão. Isso levou a outros fenômenos no mercado francês. Embora protegendo as pequenas livrarias, não eliminou o ímpeto de crescimento das cadeias e, principalmente no interior da França, as livrarias tiveram que buscar outros modos de melhorar sua competitividade, como foi o caso dos “groupements libraires”, espécie de semi-cooperativa de livrarias regionais.

O surgimento dos e-books e o avassalador crescimento da Amazon trouxe complicações adicionais, tanto nos EUA como na França – sem falar na razzia no Reino Unido, onde as livrarias vivem situação periclitante.

A resposta francesa foi um aperfeiçoamento da legislação. Nos EUA, a tentativa da Apple e de algumas editoras de mudar as condições de fixação de preços da Amazon (com o famoso sistema de agenciamento, que é uma forma disfarçada de “preço fixo”) tiveram uma primeira e fragorosa derrota judicial. Mas o jogo continua, com negociações duríssimas entre as grandes editoras e a gigante varejista.

Sinteticamente pode-se dizer que, tanto nos EUA quanto na França, existem dispositivos legais regulatórios das vendas. Nos EUA, são mais genéricos e incluem as relações entre os produtores de todos os tipos de mercadorias, os atacadistas e os varejistas, enquanto na França o foco mais visível está na proteção aos pequenos varejistas através da fixação do preço de venda final ao consumidor, durante um certo período. Mas é certamente um equívoco dizer que, nos EUA, o “mercado” é totalmente desregulado. Essa ideia é uma construção ideológica e falsificada das relações comerciais por lá.

O que acontece por aqui é que a versão da proteção ao consumidor assumida pela legislação brasileira é manca. Está focada tão somente no suposto de que “quanto mais barato o produto ou serviço for entregue ao consumidor”, melhor. Mas esquecem – salvo nos casos de grandes concentrações de empresas, ou “domínio de mercado” – que as relações entre produtores e varejistas não são desreguladas, e que a oferta de preços mais baixos se dá por aumento de produtividade e diminuição das margens, e não por truques bestas como o de aumentar o preço “nominal” para dar descontos maiores.

Esses desenvolvimentos e outras questões relacionadas especificamente com os mercados livreiro e editorial brasileiro serão examinados no próximo post.

 

 

.

[Confira este e outros artigos de Felipe Lindoso sobre o Mercado Editorial em http://oxisdoproblema.com.br/ ]

 

 

 

 

.

Felipe Lindoso é jornalista, tradutor, editor e consultor de políticas públicas para o livro e leitura. Foi sócio da Editora Marco Zero, Diretor da Câmara Brasileira do Livro e consultor do CERLALC – Centro Regional para o Livro na América Latina e Caribe, órgão da UNESCO. Publicou, em 2004, O Brasil Pode Ser um País de Leitores? Política para a Cultura, Política para o Livro, pela Summus Editorial. Site: http://oxisdoproblema.com.br/ E- mail: felipe.jose.lindoso@gmail.com

 




Comente o texto


*

Comente tambm via Facebook