Polifemo


              No final do ano passado, dia 9 de novembro de 2018, na Casa das Rosas, eu tive o prazer de lançar a Coleção Polifemo durante a feira de editoras alternativas. A coleção é uma série de plaquetes; trata-se de um projeto meu, produzido junto à editora Córrego, do amigo poeta Gabriel Kolyniak. Uma das plaquetes lançadas é composição minha: o poema Polifemo, que dá título à coleção.

              Polifemo é nome próprio, o nome do ciclope, filho de Poseidon e da ninfa Teosa, enamorado de outra ninfa, Galatéia, mas também quer dizer Muitas Vozes, do grego polýs, “muito”, seguido do verbo phemí, “dizer”. Nessa concepção, o ciclope encaminha um paradoxo, seu único olho – seu monóculo – contrasta com sua polifonia; desse ponto de vista, Polifemo confunde-se com a linguagem: seu vir a ser funda-se em uma polêmica constitutiva – um olho vs. muitas vozes –; em suas vozes, cada voz se define em relação às demais, como na gênese dos discursos e na semiose.

              Nessa polifonia, Galatéia e Polifemo também são tema de um poema de Haroldo de Campos, o terceiro poema da série “entre vênus e minerva”, a primeira seção do livro Crisantempo, de 2004, cuja leitura me motivou a escrever meu Polifemo. Em princípio, a intenção era – e ainda é – escrever uma epopeia pessoal, com pelo menos 24 cantos, cada um deles com pelo menos 136 versos, cada canto composto em uma forma poética. O Canto I seria feito em tercetos decassílabos, sem rimas, mas com aliterações e assonâncias alternadas segundo o esquema aba/bcb/cdc… ; pensei em fazer relações entre o tema inspirado por “Polifemo contempla Galatéia”, de Haroldo, e o modo de composição, semelhante àquele utilizado em sua “Máquina do mundo repensada”, explicitamente motivada pela versificação de Dante, na “Divina comédia”.

              O Canto I seria uma profissão de fé: a aplicação em literatura do maximalismo, termo introduzido por Flo Menezes em 1983, que, segundo ele, “consiste na elaboração de múltiplas referencialidades”. Não se trata de fazer citações pontuais, isso até pode acontecer, mas de correlacionar processos de engenharia poética na formação de novos elos semióticos. Além da metalinguagem e em função de ser epopeia pessoal, também recorro a meus temas preferidos: drogas, BDSM e podolatria, simbologia religiosa. Uma vez desperto, Polifemo, recuperando sua visão por meio da linguagem, recupera o desejo por Galatéia, no Canto I ainda apenas sugerida pela Poupa – personagem chave da “Linguagem dos pássaros”, de Farid ud-Din Attar –.

              Apesar dos encaminhamentos, quando pronto, esse Canto I tinha sua autonomia, ele poderia vir a ser um canto único. Feito, por enquanto, canto único, está é a segunda vez em que eu o publico; dessa segunda vez, fiz algumas modificações, escolhi outras palavras, mudei alguns versos. Para valorizar o texto e trazer mais de minha vida pessoal para dentro dele, convidei a Lilli Ferreira para ilustrar o poema e somar comigo mais uma parceria.

              Para ilustrar o poema, eis as primeiras estrofes, até o primeiro ponto final:

rever flora, lá fora um atabaque
bate, fumaça voa elegante
mente sob o cume calvo, alarde

por que? porque sobeja, sobe, antes
fosse apenas forma, fome, a
parte, mas é mais que isso, avante…

como recolher esse maço farpa?
perceber a disseminação dos
silvos, uivoos, cios, várias garças

que já alçam? as pernas feitas poses
as penas para o travesseiro, passos,
prontas para serem musas tão doces?

a descrição de uma boceta – ossos
do ofício do poeta – ninfa, seus
cílios parecem caramujos-flores

do mastro escorre o limo, flux, musgo,
o ótimo, percorre a lágea lágrima
o leite, a Via Láctea, o escuro

lábio símile da lábia, da pálpebra,
olho oracular, a semióptica
farol e alvo, preparado para.

              Por fim, a última observação: no lançamento da primeira edição de “Polifemo”, alguns conhecidos queixaram-se da disposição dos versos, pois não conseguiam entender se o texto seria um único poema, se cada estrofe seria um poema, ou se havia um poema por página. Ora… isso é constrangedor: para eles, porque é embaraçoso quando deixa entender o quanto estariam despreparados para ler poesia; para mim, porque “constranger” também significa tolher a liberdade, não a deles, de não se darem ao trabalho de entender quase nada, mas a minha.

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Também escrevo para o portal de esquerda Carta Maior, confira minha coluna “Leituras de um brasileiro”
http://www.cartamaior.com.br/


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Antonio Vicente Seraphim Pietroforte nasceu em 1964, na cidade de São Paulo. Formou-se em Português e Lingüística na FFLCH-USP; fez o mestrado, o doutorado e a livre-docência em Semiótica, na mesma Faculdade, onde leciona desde 2002. Na área acadêmica, é autor de: Semiótica visual – os percursos do olharAnálise do texto visual – a construção da imagem;Tópicos de semiótica – modelos teóricos e aplicaçõesAnálise textual da história em quadrinhos – uma abordagem semiótica da obra de Luiz Gê. Na área literária, é autor de: – romances:Amsterdã SMIrmão Noite, irmã Lua; – contos: Papéis convulsos – poesias: O retrato do artista enquanto fogePalavra quase muroConcretos e delirantesOs tempos da diligência; – antologias: M(ai)S – antologia SadoMasoquista da Literatura Brasileira, organizada com o escritor Glauco Mattoso; Fomes de formas (poesias), composta com os poetas Paulo Scott, Marcelo Montenegro, Delmo Montenegro, Marcelo Sahea, Thiago Ponde de Morais, Luís Venegas, Caco Pontes, mais sete poetas contemporâneos; A musa chapada (poesias), composta com o poeta Ademir Assunção e o artista plástico Carlos Carah. E-mail: avpietroforte@hotmail.com




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