poeta provocativo & porreta


……………Arnaldo Antunes: poeta provocativo & porreta

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Arnaldo Antunes (São Paulo, 1960) faz poesia de vanguarda. E tem sido discriminado por causa disto. Ama-se o roqueiro titânico. Ouve-se com bom gosto o músico tribalista. Acolhe-se uma ou outra canção do repertório solo. E odeia-se o poeta de livros impressos. Mesmo tendo publicado vários e significativos títulos de poesia, continua sendo vítima de um inconcebível mal-entendido de crítica e público. Com raras e honrosas exceções, evidentemente.

Autor de Ou e (1983), Psia (1986), Tudos (1991), As coisas (1992), Nome (1993), 2 ou + corpos no mesmo espaço (1997), Palavra desordem (2002), ET Eu Tu (2003), Frases de Tomé aos três anos (2006), N.D.A. (2010), acaba de lançar agora aqui ninguém precisa de si (São Paulo: Companhia das Letras, 2015).

No recente livro, constatamos que permanece a marca registrada deste inquieto artista multimídia: a palavra é a base material, fundamental e originária de todo seu processo criativo intersígnico. Mesmo valendo-se da imagem em fotos, fotomontagens, grafismos, colagens e diferentes fontes gráficas, a palavra continua sendo o núcleo de sua poética. Ele experimenta com ela em suas dimensões de som, sentido e imagem. Literalmente. Claro que sua poesia não nasce do nada. Nenhuma nasce. Ele dialoga, inteligente e vivamente, com a tradição da poesia. Brasileira e estrangeira. Vai dos antigos gregos aos pós-concretos, passando pela visualidade barroca portuguesa e brasileira.

Arnaldo nasceu no berço da Poesia Concreta. Com ela, e com Maiakóvski, assimilou bem a lição: toda vanguarda maravilha-se na fertilidade de um genial “inventalínguas”: o povo. Por isto mesmo a poética Arnaldina reverbera uma polifonia de vozes populares e eruditas. Ambas fervendo e frevando no mesmo caldeirão inventivo. Sem distinções de valores. Velha lição que a modernidade de Baudelaire e Mallarmé nos trouxe. E que hoje a Internet dissemina aos quatro cantos do mundo. Sem fronteiras para os variados sabores de diferentes saberes. O que era coisa para entendidos (veja-se a dedicatória do disco Araçá azul, de Caetano Veloso, de 1973) hoje pulveriza-se na dança das informações informatizadas. Tudo está aí, para todos.

O novo, nossa companhia diária, não mais deveria surpreender-nos tanto. Mas continua não assimilável. As facilidades ao mundo das informações não significa assimilação de novos conhecimentos. E menos ainda, mudança de comportamentos. Por isto a arte experimental continua tão necessária quanto rechaçada.

Arnaldo Antunes sabe disto. Mesmo assim corre o risco de fazer poesia impressa num mundo cada vez mais afoito e menos leitor de novidades. Um mundo que se torna a cada dia menos legível. E o leitor, um devoto da mesmice publicizada por mídias fóssil-cristalizadas.

Por isto mesmo, estamos propensos – e necessitados – dos desvendamentos, da nudez e da clareza da arte.

A palavra, grande signo do homem, reitero, é a matéria concreta da poesia arnaldiana.

Em Palavra desordem (2002), Arnaldo toma a prosa em várias modalidades. E sai-se muito bem ao trabalhá-la visualmente com grande limpeza gráfica. Ditados, máximas, citações, etc., são convertidos na linguagem concisa e sensivelmente ambígua da poesia. O livro é um imenso cartaz que se lê ludicamente, manuseando-o de vários modos. Em cada um, uma surpreendente informação.

Na experimentação com a prosa, visando  chegar à poesia (ou à prosa poética), o poeta, na série “prosinhas”, de seu mais recente livro, oferece-nos 16 microtextos de questionável qualidade. E que só atrapalham a unidade do volume. Tais “prosinhas”, acabam sendo uma tola investida na prosa mais simplória, ou adesão às bobagens da poesia neomarginal.

Vejamos: “O argumento do desalento é que ele mata há mais tempo. / Ora, é claro que o cigarro e o carro ficaram muito bravos!”. Com exclamação e tudo, parece ser página de diário de adolescente “que se acha”. Não dá nem pra creditar pretensa ironia a esta pasmaceira. É dispensável.

Outro exemplo bastante infeliz, que atira na ironia e no trocadilho, mas não acerta nenhum dos dois tiros: “Antigamente as guerras acabavam. / O fim das guerras era comemorado com grande entusiasmo.  / Agora elas apenas continuam”.

Vejamos esta observação que parece extraída de página do Facebook de adolescente: “ – Tem coisas que não se começa: / briga, vício, promessa”.

Ainda bem que “prosinhas” ocupam apenas 5 páginas. E que fique bem claro: o livro, fora isto, possui grandes qualidades. Não há malabarismos nem invencionices ligadas a modismos ou manuais. O poeta sabe pôr-se bem com a palavra em todo o restante do volume.

Num dos poemas visuais, anuncia: “todo mundo / mais simples / todo mundo / mais livre”. Eis uma das constantes: o simples, mas experienciado de um outro modo. Recuperado por uma linguagem que surpreende. Aqui, por exemplo, há um bom aproveitamento da disposição gráfica invertida na página dupla.

Outro bom exemplo está no visualmente limpo e despojado “cielo/ciclo”, em que com apenas duas palavras, mais a disposição gráfico-visual, o poema nos permite tecer a história cíclica da humanidade ao redor do céu. Uma história que remete aos primórdios da religião com seu ciclo cósmico, passa pelo céu de Galileu e chega ao céu acima de Augusto de Campos. Só pra falar de uma leitura minimamente possível.

Claramente, Arnaldo Antunes revisita a linguagem de Augusto de Campos, Edgard Braga, José Lino Grünewald, Pedro Xisto e Décio Pignatari. O resultado? Vastos e desbragados campos de prazer para o leitor.

Sim, estamos diante de uma poesia polifônica. É bom ter ouvidos apurados para perceber sua voz e silêncio. Estamos diante de uma poesia visual. É bom ter olhos livres para assimilar seus espaços e texturas. Estamos diante de uma poesia de ideias. É bom ter mente aberta para recebê-la integralmente.

O professor e músico José Miguel Wisnik, nas orelhas, pontua: “No centro deste livro de poesia, que começa no nada e termina no silêncio, estão as coisas, mesmo as mais evanescentes”. De fato o livro abre-se com o poema “nada”, que transcrevo:
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nada
com um vidro na frente
já é alguma coisa
nada
com um vento batendo
já é alguma coisa
nada
com o tempo passando
já é alguma coisa
mas
não é nada.

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E termina com o fotopoema “silêncio”, em que a palavra silêncio, afixada à porta, desaparece à medida que vai sendo exposto seu negativo. Apenas parcialmente Wisnik acerta. O livro não começa no nada: começa no “mas / não é nada”, versos rigorosamente de asserção e negação ao mesmo tempo. Preciosidade da língua portuguesa: duas negativas na mesma construção opõem-se e assertivam-se. Esta ambiguidade o poeta explora neste poema final, grafado, no cartaz, sem o circunflexo. A falta do acento confere à porta o caráter de coisa-sujeito de primeira pessoa. Tal como acontece no título do volume: o “si” pode ser lido enquanto pronome de primeira, segunda  e/ou terceira pessoas. Ou, também, uma referência à sétima nota musical.

Enfim, a poesia de agora ninguém precisa de si é um “design” em espiral. Abre e fecha com o tudo-nada. Ou nada-tudo. Espiral que se realimenta dos poemas do miolo do livro. E traz à luz o melhor da poesia experimental feita no país hoje. Inquieto, o poeta continua cutucando a palavra para desnudar novos aspectos de seu corpo sempre sedutor. Que bom que você escreve livros provocadores de nossa inteligência, sensibilidade e percepção. Agora e sempre, a poesia brasileira precisa de Arnaldo Antunes.

 

 

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[Publicado pelo Correio das Artes, suplemento literário do jornal A União, de João Pessoa, em outubro/2015, ano 66, nº 8, p. 25-27, na coluna Festas Semióticas.]

 

 

 

 

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Amador Ribeiro Neto nasceu em Caconde-SP, 1953, e está radicado em João Pessoa-PB. Mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP e doutor em Semiótica pela PUC/SP. Autor de Lirismo com siso – notas sobre poesia brasileira contemporânea (crítica; 2015), Ahô-ô-ô-oxe (poesia; 2015), Barrocidade (2003). Escreve às sextas-feiras emwww.augustapoesia.wordpress.com. E-mail: amador.ribeiro@uol.com.br




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