Poesia, padrões e o Blues


 

Usar definições de dicionários em composições acadêmicas é um truque que já cansou, empregado tanto pelo mais eficiente ensaísta quanto pelo mais dedicado estudante. É uma estratégia testada que imbui escritores com um senso de domínio da forma, mas que aliena os interlocutores que esperam ouvir vozes distintas. A frustração persiste nesse jogo léxico, e a ausência de autores definidos ao produzir essas palavras nos fere assim como qualquer dogma.

Edson Cruz, em sua novela Fibonacci Blues, não usa definições de dicionário. Além do alívio que nos causa ao deixar essas definições sem rosto de lado, a novela explora as entranhas emotivas das palavras, contextualiza as pessoas nos signos, e nos seduz ao erro de procurar a verdade.

Ao evocar o falecido filósofo americano Richard Rorty em seu arrependimento por não ter “…passado mais tempo de sua vida com aqueles versos de Swinburn”, Cruz nos provoca a não ler o livro como uma novela, mas a experimentá-la como um poema. Da mesma forma que Rorty abraça a literatura ao invés da filosofia para investigar ideias, os capítulos de Fibonacci Blues se expressam como poesia em prosa. Para usufruirmos melhor da narrativa, talvez seja mais prudente seguir os conselhos de William Empson e procurar pelas mais variadas ambiguidades ao invés de analisá-la como um enredo romântico. Em Fibonacci Blues encontramos um bom exemplo do “Strong Poet” de Bloom que Rorty estendeu em sua obra.

Aliás, Cruz nos premia ao procurarmos por ambiguidades com instruções de como ler seu livro. Os capítulos sequenciados com a sequência Fibonacci nos convidam a procurar os tais padrões dourados. Os diversos nomes e citações nos apresentam contextos possíveis para a leitura do autor e dos espaços que nos são comuns. As anedotas e o enredo se entrelaçam em um aviso da impossibilidade de distinguir nossa existência escrita, apesar de tentarmos defini-la.

Podemos ou não considerar Adilson, que aparece já nos primeiros capítulos, como o protagonista, mas estaríamos caindo na armadilha da novela. Uma armadilha que nos induz ao erro de não apreender Fibonacci Blues em sua beleza metafórica explosiva. Mas Adilson poderia existir confortavelmente como um eu lírico que persiste como “estória”. Em um dos possíveis sonhos de Adilson encontramos mais uma instrução de leitura ao nos depararmos com o conceito de (ma) que expressa ideias da pintura clássica japonesa. Em geral “ma” quer dizer um vazio potencial para uma leitura menos presa em definições, mas presente em experiências nas brechas.

Da mesma forma que abraçar as ambiguidades e o vazio como nossa relação íntima com a novela, aceitar o convite de perseguir os padrões propostos no livro nos conduz novamente ao erro ao nos fazer retomar às instituições e práticas do romance canônico que tentamos abandonar. Essa ambiguidade entre vazio e padrão é reforçada pela história dos deuses esquecidos associados à memória. “Mas se um desses deuses nos faz lembrar por contingência, o outro nos possibilita esquecer por indulgência”.

Fibonacci Blues é infestado de migalhas indulgentes e minadas que nos levam a falhar em nossa busca pela verdade. Faz isso ao ilustrar a vida dura de Carolina Maria de Jesus em um não encontro com Adilson nas ruas de São Paulo, que nos lembra o tiro de canhão dado em Jorge Luís Borges ao salientar o racismo do autor geralmente ofuscado por seu brilhantismo. Mas também nos contempla com detalhes contingentes que nos direcionam ao vazio ambíguo, como na aceitação de sentidos dados a esses padrões que são apenas nossos.

A verdade, quanta ironia, é que quanto mais deduzimos os fios expostos da trama da novela, mais nos perdemos em nossa arqueologia de uma poesia fóssil. Isso na melhor das hipóteses. Porque se a verdade é nossa religião, então o livro pode parecer curto demais, raso demais, referencial demais.

Não é à toa que aos nos defrontar com um poema no meio do livro (“Voltar a ler o que parecia…”) nos deparamos com uma decisão apenas aparente se observamos as instruções cuidadosamente. Se encararmos como um descanso no meio da leitura da novela poderemos passar batido na procura da próxima estação da narrativa. Mas se o entendemos como um poema dentro de outro poema (coletivo de poemas: o vazio?) ficamos paralisados diante de uma autofloresta de sentidos.

Cruz escreveu Fibonacci Blues no meio de uma pandemia, daquelas que não acontecem há mais de um século. Criar paralelos de nossa existência isolada com as dicotomias da novela/poesia talvez seja mais uma das armadilhas que nos coloca em uma espiral dolorosa. Porém, aproveitar o potencial vazio desses poemas em prosa nos ajuda a criar um valor distinto de nossas próprias vidas. Estamos tragicamente fadados a viver nossos vocabulários finais, para retornar mais uma vez a Rorty, mas podemos criar cada vez mais oportunidades de florescer nossas próprias línguas, experimentar as expressões dos outros. E Fibonacci Blues nos desperta justamente a coragem de navegar nessas ambiguidades próprias da existência.

 

 

 

PS.: Onde encontrar o livro: Kotter Editorial

 

 

 

 

 

Jean Marcus é escritor e professor e pode ser encontrado em @jeanmarcus . Também é uma metade do podcast Heterônimos de diálogos ensaísticos com pseudônimo Lucrécio Pipoqueiro. E-mail: jeanmarcuss@gmail.com




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