Poesia no Ensino Médio


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A poesia realmente tem um poder transformador. Transponho aqui algumas reflexões sobre uma recente experiência de regência em Literatura para me formar em Letras Português UFPE na Escola de Aplicação do Recife, primeira série do Ensino Médio, em Recife, PE.  Durante esse período, foram trabalhados, por meio de uma apostila de organização própria, junto com outros escolhidos a posterior de outros autores, como Ângelo Monteiro, poeta alagoano-pernambucano, membro da Academia Pernambucana de Letras e professor aposentado de Filosofia da UFPE.

Há muito venho conversando com colegas professores e ele me relatam a dificuldade de trabalhar poesia em sala de aula, especialmente no ensino médio, por conta da reiterada preocupação com o ENEM, que tira o foco de quaisquer outras perspectivas de ensino, entrincheirando os docentes num determinado estilo de ensino que visa mais a memorização e estratégias de interpretação literária viciados. Refiro-me, claro, ao ensino de Português – Literatura, Gramática e Redação, numa subdivisão fragmentária, não recomendada para os dias atuais.

Durante o período de observação do estágio, então, percebi que a professora de Literatura dessa escola, durante uma aula, trabalhou elaboração de poemas através de um verso de Manuel Bandeira, que vou reproduzir abaixo:

 

ESTRELA DA MANHÃ
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Eu queria a estrela da manhã
Onde está a estrela da manhã?
Meus amigos meus inimigos
Procurem a estrela da manhã

Ela desapareceu ia nua
Desapareceu com quem?
Procurem por toda à parte

Digam que sou um homem sem orgulho
Um homem que aceita tudo
Que me importa?
Eu quero a estrela da manhã

Três dias e três noite
Fui assassino e suicida
Ladrão, pulha, falsário

Virgem mal-sexuada
Atribuladora dos aflitos
Girafa de duas cabeças
Pecai por todos pecai com todos

Pecai com malandros
Pecai com sargentos
Pecai com fuzileiros navais
Pecai de todas as maneiras
Com os gregos e com os troianos
Com o padre e o sacristão
Com o leproso de Pouso Alto
Depois comigo

Te esperarei com mafuás novenas cavalhadas
[comerei terra e direi coisas de uma ternura tão simples
Que tu desfalecerás

Procurem por toda à parte
Pura ou degradada até a última baixeza
Eu quero a estrela da manhã.
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O trabalho desenvolvido por essa professora resultou em diferentes poemas, corrigidos e orientados por ela pessoalmente, conforme observei no estágio. Através do professor de Português, tive acesso a um desses poemas, que me impressionou bastante pelo amadurecimento literário e nenhum erro ortográfico:

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NOITE ESCURA
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Não vi mais estrela

Nem alta, nem fria!

Nenhuma centelha

A luz luzia.

Era uma noite escura! Era uma noite vazia!

A verdade era dura

E em meu peito doía!

Nunca já brilhou

Essa estrela, Maria!

Ela dizia que não

Que era doce e real

E eu, jogado

Num dilema infernal!
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(Karina)

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Vale lembrar que o tema paráfrase tinha sido trabalhado pelo professor de Português logo numa das aulas de observação (15 horas/aula) desse estágio. A coincidência de a professora de Literatura também trabalhar com isso, numa paráfrase ao poema de Bandeira Estrela da manhã, numa perspectiva de reinterpretação textual, foi muito feliz e nos ajudou na elaboração desse projeto de regência que hora concluo.

Surgiu a ideia então de trabalhar interpretação, oralidade e produção textual através de um poema de Lucila Nogueira de teor lírico-romântico para trabalhar na aula de gênero poético lírico. A primeira estrofe desses poemas foi parafraseado por outros quatro autores, todos pernambucanos: José Paulo Cavalcanti Filho, Waldemar Lopes, Nelson Saldanha e Edmir Domingues, em criações poéticas belíssimas. Trabalhei com eles, em aulas anteriores, sobre o tema Amor e Romantismo (sentimentos), o que eu despertou bastante interesse por se tratar de uma classe de adolescentes entre 15 e 18 anos em média. Assim, para encerrar o projeto, promovemos um sarau simples em sala de aula mesmo.

A vantagem dessa segunda opção foi tê-los mais à vontade e trabalhar um pouco mais a impostação e ritmo de leitura, através de leituras seguidas dos poemas, enfatizando paradas para respiração. Procurei fazê-los entender que a Poesia é vida, pulsação, que devemos sentir cada palavra que pronunciamos. Poderia ter trabalhado também sílaba poética ou técnica vocal, mas não houve tempo e  estrutura para isso, infelizmente:

Na aula seguinte, 5 de julho, distribuí copias do livro IMILCE, em dupla ou trio, para leitura silenciosa e futura discussão numa roda de conversa. Dispus as cadeiras em círculo, porque isso tiraria um pouco a distância entre professores e alunos e os deixaria mais à vontade. Deu certo e eles se empolgaram muito com a discussão, perguntando sobre como a autora se inspirou para escrever os poemas, a história de Aníbal Barca e como se daria, de forma prática, a construção e um poema em 4 vozes, como é IMILCE, os elementos de teatralização e porque esse texto se configura uma tragédia e não uma comédia. Fizeram também comparações com as guerras atuais, os refugiados, como deve ser desolador o sentimento de abandono por parte da família (mulher e filhos) que permanecem como que órfãos de um chefe de família que tem de ir para a guerra. Levei-os a refletir que a poesia na verdade parte de fatos observados pelos poetas e que o segredo é transposição, através de palavras certas e ritmadas, para as estrofes, oq eu gera um sentimento de catarse através da introjeção de sentimentos e confissões do autor. Então, levei-os a entender também que IMILCE, além de um canto lírico, era também trágico por falar de um drama (família abandonada pelo provedor que vai à guerra), com elementos miméticos (imitação da natureza), de verossimilhança e narrativos que o tronavam um gênero híbrido entre a epopeia, o drama e a lírica.

Desse modo, afirmamos que Imilce (2003) tem caraterísticas narrativas (portanto, também exercendo a mímesis ou verossimilhança) por contar uma história em versos. Narrativa e lirismo juntos. Nesse poema, destaca-se a sina da mulher do general cartaginês Aníbal Barca, dando também voz à sua mãe e ao seu filho. Fala do sofrimento das guerras, dá voz aos esquecidos da História. Por sua vez, por contar esses mesmos sofrimentos em forma de versos, é também lírico por expressar emoções e sentimentos:

Dizem que enlouqueci/porque eu assisto/ dormindo a teu futuro/ e a teu passado:/ ao prazer e á beleza/ não permites/ governar tua vida/ de soldado?/ […] Dizem que enlouqueci/ eu sou Imilce/ a virgem de Oretania/ visionária/ eu seduzi Aníbal/ e nosso filho/ um dia há de crescer/ povo de Cástulo (NOGUEIRA, 2014, p. 56)

Tal assertiva é confirmada nos versos seguintes do livro, quando Imilce como que explica a razão de sua loucura ou fuga da realidade:

Caminho/ contra a lei da gravidade/ foi mais/ do que eu podia suportar/ meu cérebro é um girassol de facas/ foi mais/ do que eu podia suportar/ recuso-me/ a aceitar essa mágoa/ foi mais/ do que eu podia suportar/ tenho medo das palavras/ foi mais/ do que eu podia suportar […] Um dia me estendeu os seus cabelos/ queimou/ as minhas mãos dentro da chuva/ e tremia e renascia/ e encontrei/ a beleza na loucura (IDEM, p. 73-74)

A loucura é um tema-tabu na sociedade, mas já foi enfatizado em muito pela literatura. Vários personagens são considerados loucos ou por o serem de fato ou por apresentarem algum comportamento pouco convencional. Nesse sentido, o amor verdadeiro, proclamado por Imilce pelo general, não fugiria a esse modelo e se caracterizaria por rompantes de paixão, entrega, fuga do convencional. O amor que pode levar ao desequilíbrio mental e comportamental. Mais adiante, a voz de Imilce confessa:

O que dizer/ quando o amor se acaba?/ O que é a loucura senão um motim?/ Era o meu companheiro/bem-amado/ quanta coisa ele fez/ só para mim? […] O que é a loucura/ senão a lembrança/ de algo que se perdeu/ sem se pedir/ e o que é o amor/ senão um a loucura/ que tenta/ a eternidade construir? (IDEM, P. 67)

O caráter heroico apresenta-se no texto também na voz do general Aníbal. Com valentia e destemor, enfrenta os romanos, não temendo a morte, sem saber da inutilidade dessa guerra, pois que o Império Romano, antes de cair, dominaria todo Ocidente conhecido da época – Ásia menor e Extrema, África próxima e toda a Europa:

Lutei contra os romanos, doce Imilce/ acreditei no engodo/ da batalha/ quis evitar ao mundo/ o mal estranho/ que em sonhos/ percebia e não falava/ Lutei contra os romanos e por isso/ interrompi o amor/ na hora máxima/ perdoa se parti/ pede a meu filho/ perdão/ se acreditei nessa vitória (NOGUEIRA, 2014, p. 55).

Esse foi o momento, então, em que trabalhei mais a poesia de lucila, entrei numa análise e interpretação mais profunda de sua obra, especialmente IMILCE, para partir para a segunda parte dessa aula, o sarau do livro inteiro com os alunos.

Foi feita primeiro uma leitura silenciosa, com minhas recomendações de eu relessem quantas vezes fosse necessário para que os versos entrassem em suas mentes e corações, tornassem uma voz com a sua voz. Isso demorou cerca de uma hora, com bastante tranquilidade da minha parte, pois se tratava de uma experiência mais profunda de leitura de poesia, ao qual eles não estavam acostumados. Nenhum dos professores, mesmo a de literatura, nunca tinha feito esse tipo de atividade com eles. Apesar das dificuldades e do estranhamento, por conta da agitação normal da idade, eles conseguiram entrar no clima e depois agradeceram esse momento, dizendo ter sido uma experiência única.

No segundo momento desse segundo encontro do dia 05 de julho, após o intervalo, voltamos e fiz uma provocação para eles: se seriam capazes de, como os autores que parafrasearam Lucila Nogueira no poema SE INDA HOUVER AMOR, a partir desse mesmo verso, desenvolveriam seus próprios poemas. Para tanto, relemos juntos em voz alta e procurei orientar a s demais perguntas de interpretação e dei 40 minutos que se estenderam por uma hora, para eles escreverem.

Na verdade, como falei, essas aulas foram bem atropeladas. Como tive uma ligação profunda com a autora, sendo mesmo monitor de suas oficinas literárias, tinha noção da técnica que ela usava, baseada em introspecção através de músicas, filmes, inúmeras leituras de poemas e sugestão, por meio de uma aula guiada, para que os oficineiros entrassem num momento de profunda subjetividade e escrevessem versos através de sugestões (palavras) direcionadas pela autora durante a oficina, como uma hipnose, Não foi possível realizar exatamente essa técnica aqui, mas adaptei. Isso foi um pequeno resumo, não tendo a intenção de esmiuçar aqui essa metodologia criada por Lucila nogueira, que seria muito mais profunda e referenciada do que expus aqui.

Também utilizei a antologia poética em apostila, cujo poema de minha autoria homenageando Lucila, partindo também desse primeiro verso, despertou bastante interesse e perguntas sobre diversas referências que fiz à obra da autora e à minha própria obra, citando versos de um poema que fiz quando da sua morte, publicado no meu facebook, em 2016,  que segue abaixo:
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E SE INDA HOUVER AMOR
A Lucila Nogueira
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E se inda houver amor
Eu me apresento
Nas ruas de Estocolmo ou nas pontes do Recife
À Beira do Douro encontrando vikings
Fantasiados de Ingmar Bergman.

E se inda houver amor
Encontrarei a Dama de Elche
Perdidas nas efígies da Espanha
Catalunha mãe dos iberos.

E se inda houver amor
Vão dizer que enlouqueci
Com Imilce a esperar
Aníbal Barca ou Hércules
Cumprindo sete tarefas.

E se inda houver amor
Que se acendam os refletores
Espantando de vez esse
Sentimento súbito.

E se inda houver amor
A Dama de Alicante dançará
Com Aníbal Barca
Danças romanas ancestrais.
E se inda houver amor
Fernando Pessoas tomará café
Com Sá Carneiro ouvindo
Paul MacCartney.

E se inda houver amor
Vou iluminando jazigos e porões
Com Almenara à mão
Serpentes e borboletas.

E se inda houver amor
O canto ancestral dentro de mim
Acalentará Ísis ou Astarte.
Maria mãe dos homens
Odin abençoando Cristo
Sob a cavalgada das valquírias.

E se inda houver amor
Manuel Bandeira e Lucila Nogueira
Recitarão versos no Pasárgada
De santos ou deuses esquecidos.

E se inda houver amor
Meus mamilos duros de leite
Alimentarão fomes lupinas
Na fundação do Recife.
Moça sob olhos de gárgula
Tocará ao piano Legião urbana
Beethoven ou Wagner
No Marco Zero.

E se inda houver amor
Se inda houver poesia
Se inda houver amor
Eu me apresento.
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Dessa forma, decidi usar o poema SE INDA HOUVER AMOR porque já havia trabalhado com eles em aulas anteriores e, como dispunha de pouco tempo, readaptando minhas aulas, além de cumprir turnos cansativos de 4 horas seguidas. Também porque notei que esse tema de amor e romantismo despertou interesse e ajudaria no engajamento deles nessa atividade.

Confesso que eu estava receios dos resultados, mas me surpreenderam. Apesar de saber que eles já tinham feito esse exercício com a professora de Literatura, como expliquei, o cansaço pelas atividades corridas de encerramento das aulas do projeto, junto ao cansaço das provas semestrais e de recuperação que alguns deles tinham se submetidos ao longo dos 21 dias anteriores me deixaram inseguro quanto aos resultados. Fiquei orgulhoso, porém, ao perceber os resultados, conforme breve análise que farei a seguir.

As temáticas dessas produções de poesia em sala de aula, como não poderiam deixar de ser, retratam o universo adolescente desses estudantes: a descoberta da sexualidade, dramas amorosos, os conflitos consigo mesmo e com os colegas e professores, a fragmentação familiar. Mas também ironia, irreverência e humor, como no seguinte poema (vamos usar nomes fictícios por questões éticas):
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Se inda houver amor
Não terá aula de Adim
A paz reinará nas escolas
E a escola viverá feliz.

Se inda houver amor
Lamartine voltará
As notas boas retornarão

Se inda houver amor
As notas de Matemática irão melhorar
Recuperação não existirá
E no final do ano estaremos livres.

(Filipe)
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Como os colegas podem perceber, Filipe desobedeceu voluntariamente ao direcionamento da aula, que foi sugestionado pelas discussões de lirismo, romantismo (sentimento) e amor, para uma realidade cômica de estudante do Ensino Médio, preocupado com provas e notas e demonstrando afeto por determinados professores. Usou para isso de um tom irônico e irreverente, que me surpreendeu positivamente.

Os demais alunos seguiram mais ou menos esse direcionamento (temática amor adolescente), com destaque para alguns inclusive já apontados pelo professor de Português como sendo prodigiosos e promissores, pois sempre escreviam poemas. Eis:
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Se inda houver amor
Eu me atiro
E me entrego ao desconhecido
Como um aventureiro em busca da fortuna
Ou os homens que, incansavelmente,
Buscam a felicidade.

Se inda houver amor eu prosseguirei
Atrás de você com todas as forças
Ansiando nosso reencontro e o momento
Em que me afogarei no teu encanto.

Ah, se inda houver amor
Eu prosseguirei
Buscando-a incansavelmente.

(Sergio)

 

Se inda houver amor
Eu não hei de chorar
Por mais que sentisse que devesse
Para os males apaziguar

Se inda houver amor
Teoricamente deveria me alegrar
Pois na filosofia de vida eu poderia me inspira
E cantar com o coração uma canção
Pra acreditar.

Se inda houver amor
Não precisarei sentir ou causar dor
Viver uma vida pacífica sem nenhum temor
E aproveitar todos os momentos de esplendor

Se inda houve amor sinto que posso
Não será necessário imaginar
Que é possível o inferno atravessar
Sem se machucar ou suar

Pois se realmente houver amor
Os guerreiros podem saber
Que o caminho que tiveram de percorrer
Junto às dores que tiveram e sofrer
Os tornam símbolos da paz
Que pode vencer cada vez mais

(Vinicius)
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Os colegas percebam que o poema de Sergio reflete a realidade vivida pelos adolescentes alunos dessa escola. Os veros de Sergio, porém, demonstram alguma trajetória de leitura e produção textual em poesia, já que sairia de um texto mais narrativo, descritivo, mesmo em versos para um olhar ainda imaturo sobre o amor, mas já usando palavras de uma riqueza vocabular maior (Se inda houver amor/ Eu me atiro/ E me entrego ao desconhecido). Já Vinicius desenvolve um tom mais narrativo. Seus versos poderiam ser escritos em linhas corridas e passaria como um conto e não um poema. Isso não é obrigatoriamente um problema, pois os gêneros, como visto em outra postagem, minhas, na Pós-modernidade/ Literatura contemporânea se mesclam, se imiscuem. Não é possível definir um conceito claro de cada um desses, mas percebemos nitidamente que há um teor de leitura considerável, de um trabalho com textos nesses alunos que inegavelmente contribuíram para essa produção textual, resultado escrito de meu projeto de regência em poesia. Isso já era esperado, mas se confirmou nessa análise limitada que pude fazer com esses textos poéticos.

Tive, porém, uma surpresa grande ao ler esses versos que agora transcrevo de Maria Cândida. Essa estudante já havia sido apontada por ambos os professores como sendo um prodígio, ávida leitora e poeta, com diversas postagens em redes sociais (Instagram, facebook e blog). Já havia percebi do seu interesse por meio das aulas anteriores, quando participou ativamente inclusive lendo poemas:

 

E SE INDA HOUVER AMOR

E  se inda houver amor eu tenho
E me exponho a cada risco e dano
E se me atinges sem ressentimento
Perco-me em desenganos
Se inda houver amor
Seis da tarde ou noves-fora
Eu juro que tenho a a dor
Que ardendo em meu peito mora

E se inda houver mor
Telefone ou mande carta
Que moverei exércitos
Mais fortes que o de Esparta.

(Maria Cândida)

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Como podemos perceber, todo poema de Maria Cândida é um diálogo que o de Lucila; ela fala de “ressentimentos”, “desenganos” e “danos’ amorosos; um amor que parece uma fogueira(Eu juro que tenho a dor/ que ardendo em meu peito mora”), como os versos na voz de Imilce (o amor me seca os lábios: tudo ferve; meu corpo é um braseiro de perfumes, meus lábios o Etna e o Vesúvio; vem ver-me andar no fogo sobre as águas; eu desejava o mundo como um círio ardendo (NOGUEIRA, 2003), voz de Imilce.

Fora o talento natural da autora/aluna, remeto, como crítico literário, esse sucesso ao exercício de leitura profunda, inspirado na metodologia luciliana, como expliquei acima, que gerou uma atmosfera de introspecção que ajudou na concentração dos alunos. Os versos de Imilce são aqui reinterpretados na voz autoral de Maria Candida, numa demonstração irrefutável da influência que a leitura de poemas, de uma maneira direcionada e aprofundada, fugindo da historiografia literária e incompleta apontadas por Hélder Pinheiro como sendo uma das causas do insucesso da literatura na escola (PINHEIRO, 2008). No artigo Caminhos da Abordagem do Poema em Sala de aula (PINHEIRO, 2008), muito adequado para essa avaliação final do estágio regência, Pinheiro explica a importância de falar de  poesia na sala de aula; sobre como trabalhar com o gênero lírico em turmas do Ensino  Fundamental e do  Médio;  como também as dificuldades enfrentadas pelos professores em sala de aula, fazendo olhar além do livro didático,  enxergando essa educação literária através da Poesia como  um processo  quase burocrático  ou  é  possível tornar essa aula agradável.

Em determinado ponto desse artigo, mais ao final, esse autor ressalta a importância de se trabalhar a leitura prazerosa dos poemas em sala de aulas em amarras nem  forçando a memorização de datas e títulos de obras desnecessariamente. E aconselha que passemos a dar, como uma alimentação fundamental da alma (“ração diária”) a poesia em sala de aula, sejam quais forem os assuntos abordados, da oralidade ao texto escrito, da Literatura à Linguística:

O certo é que poderemos chegar ao final da vida sem termos descoberto um grande poeta. A escola deveria ser o lugar adequado para nos colocar em contato com bons poemas de grandes poetas. Mais do que isto, deveria, cotidianamente, nos ofertar um poema. Um poema a cada dia seria a “ração diária” de beleza de que todos necessitamos. Se ao menos a cada semana, durante os quatro anos da segunda fase do ensino fundamental tivéssemos tido contato com um poema, ao final do ciclo teríamos lido pelo menos cento e vinte poemas. Digo: lido, não necessariamente estudado. Lido, relido, levado para casa, copiado num caderno. Seria, já, uma boa coisa (PINHEIRO, 2008, p. 30)

Vale salientar que devemos levar em consideração, baseados nessas sugestões de Hélder Pinheiro, o bem-estar causado pela experiência tátil com o livro impresso. Nalguns momentos ao longo das diferentes aulas, levei livros de Lucila Nogueira, Ângelo Monteiro e Manuel Bandeira para eles abrirem, prestarem atenção na capa, até cheirarem se quisessem. Tal procedimento me foi inspirado no seguinte trecho do artigo supra de Pinheiro, além da distribuição de livros de minha biblioteca particular ao final da última aula da regência:

Sabemos, por outro lado, que um poema não é só voz, não é apenas som. Ele também articula imagens visuais, olfativas, táteis as mais diversas. Quantas vezes, depois de fazermos a leitura de um poema, vemos crianças, naturalmente, fazendo ilustrações. Esse viés pode e deve ser trabalhado. E aqui talvez seja a hora da atitude que alia reflexão e apreciação. Pensar numa imagem que nos surpreende no meio do poema, mesmo que não tenhamos condições de fazer uma interpretação adequada, precisa ser estimulado em sala de aula. Algumas imagens deveriam ser apalpadas, sugadas, digeridas ou apenas repetidas (PINHEIRO, 2018, p. 27).

Como colocado no início dessa regência, o trabalho com gêneros é desafiador, causa desconforto e insegurança no discente de Letras. Apesar de, nesse projeto, termos nos decidido a trabalhar a Literatura num contexto mais dinâmico e interativo, fugindo ao modelo de historicismo literário, percebemos que formar leitores é uma tarefa difícil. Nos bancos escolares, muito pouco é oferecido e, quando o é, se faz em fases erradas ou de forma a desestimular a leitura, por obrigação e não por gosto. Muitas pessoas, então, passam pela vida sem nunca terem tido contato com o mundo da literatura, sem se identificarem com essa ou aquela personagem. Tentamos agir diferentemente na Escola de Aplicação do Recife (Primeiro Ano do Ensino médio), partindo de uma lógica de estimulação à leitura e motivação de produção literária.

Essa experiência nessa sala de ensino Médio me remeteu aos inúmeros projetos que venho realizando desde 2007, em diversas subáreas da Literatura (pesquisa, edição de livros e organização de eventos literários), sempre através de incentivo governamental (FUNCULTURA), visando estimular a leitura e formar escritores jovens. Em parceria com Raimundo Carrero, meu coordenador pedagógico, realizamos oficinas literárias, ministradas por estudantes de Letras sob orientação desse experiente escritor e formador literário, onde se preconizou sobretudo a leitura de poemas e contos, quiçá de produção literária autoral, entre estudantes de escolas públicas da Região Metropolitana do Recife (LÍTERIS Formação de jovens Escritores). Dessas oficinas, com o apoio da Editora Livro Rápido, publicamos um antologia homônima destacando os melhores poemas dessas intervenções. Houve algumas surpresas, revelações como os seguintes poemas que transcreverei adiante (nomes de autores fictícios):

 

TRISTE DE SAUDADE

Quem passa debaixo da minha janela
Ultimamente não ouve nada.
SÓ SILÊNCIO.

Eu quero o guardo com luto
Fechado em meu peito
Amarrado com tristeza,
Lamento e Solidão.

Aqui dentro ele dorme
Como um cão vigia
Meu grande medo é seu sobressalto
Ai de mim se me toma de assalto!

Quem por mim passa,
Não nota o meu lento e cuidadoso movimento,
Só mesmo o barulho do vento

Ultimamente não quero
Lembrar que eu existo.

(Fernanda)

 

SÓ O AMOR

Dizem que a dor e o amor
Fazem o poeta.
Mas acho que é só o amor:
Como ele escrevi meus primeiros versos
Que até hoje ainda sei de cor.

Eu vejo estrelas no céu
Estrelas do teu olhar;
Eu ouço o canto dos anjos.
Quando te escuto falar,
Nasce uma flor no caminho
Quando te vejo passar.

E era verdade:
Eu via estrelas no céu
Estrelas no teu olhar;
Eu via canto dos anjos
Quando ela estava a passar.
Depois, sem ele, escrevi meu primeiro
Poema de desilusão,
Desses poemas que nascem
Nas noites de solidão.

Apagou-se a estrela do céu
A estrela do seu olhar;
O doce canto dos amigos
Já não posso escutar.
Até a flor do caminho
Já começou a murchar;
Uma vida sem caminho
É um barco longe do mar.
Dizem que a dor e o amor fazem o poeta,
Mas acho que é só o amor:
Quando ele chega, é um poema lindo,
Quando ele passa, a gente escreve: dor!

(Clara)

 

LÓRI

Chegou e viu o prato,
Era só prato, mais nada.
Redondo, preto.
Chegou e viu o prato.
Antes flor e prato,
Agora,
Prato
Pra tirar o prato praticamente praticou a dor
Do avante ainda amava Lóri.

Lóri era a flor, agora sem prato,
Despedaçada do chão.
A
….Três
…………Andares
E debaixo de um céu preto preto (feito o prato)
Ela era o que se via com dificuldade

É que
Lóri era flor, agora sem prato,
Despedaçada no chão.

A terra pesada não a salvou
De tal trágico destino de morrer como a gente
(Havia morrido Lóri?)

Quando vento ventou, terra disse: fic!
Prato disse: vai!
Mas Lóri se apaixonou pelo vento
Abriu sua flor antes fechada
Esticou seu caule antes morto
Fez-se em mil pedaços cor-de-própria pele

E deu-se ao vento
Disse que a levasse
“Não meu em, morrerás em menos de quatro”,
“Morreria até em três por ti”

Mais vale três contigo a me transpassar
Num misto de suave e dolor
Do que por mil anos me guardar
Em todos os botões de flor.

Lóri rimava pobre
Porque isso é o que faz quando se está apaixonado:
Rima-se pobre.

Desde aquele dia não mais quis saber de lugar certo
O vento, pra não matar
Porque descobriu que matar amando
É mais que viver a vida inteira
Mas morrer de amor era melhor ainda

Lóri era flor, agora sem prato
Despedaçada no chão.

(Lorena)

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Considero esses poemas apresentados como uma tapa de luva de pelica, como diria minha avó Didi Caldas, entre os mais pessimistas, que não acreditam no potencial dos jovens. Reparem que, embora circulem no tema mais comum entre os jovens (as relações amorosas), esses alunos conseguem desenvolver um uma criação poética bastante elaborada. Se não, analisemos: Dizem que a dor e o amor/ Fazem o poeta./ Mas acho que é só o amor:/ Como ele escrevi meus primeiros versos/ Que até hoje ainda sei de cor (Clara); Quem passa debaixo da minha janela/ Ultimamente / Amarrado com tristeza,/ Lamento e Solidão./ Aqui dentro ele dorme/ Como um cão vigia/ Meu grande medo é seu sobressalto/ Ai de mim se me toma de assalto!” (Fernanda).

Se Fernanda se desmancha em confessionalismos – o que não se constitui, evidentemente de uma crítica, mas de uma constatação da minha parte,, com figuras de linguagem como a comparação (“Aqui dentro ele dorme/ Como um cão vigia”), remetendo também aos eu lamento e solidão, Clara aprofunda o tema amor relacionando-o à criação poética, relacionando a dor de escrever à dor da paixão, da desilusão, do “coração partido’, experiência que todos nós, algum dia, provavelmente tivemos ou teremos. Lorena certamente tem uma obra mais elaborada, demonstrando ser uma leitora profícua e certamente já poeta, pois trabalha versos inspirados na Poesia Práxis ou concertista (abaixo, transcreverei respeitando a métrica da autora na citação):

Lóri era a flor, agora sem prato,
Despedaçada do chão.
A
….Três
………..Andares
E debaixo de um céu preto preto (feito o prato)
Ela era o que se via com dificuldade.

Além de personificar elementos textuais como o vento, criando um rico imaginário na cabeça do leitor. Faz malabarismos com a ortografia e pontuação, desrespeitando regras de pontuação, num morfossintaxe poética irreverente; trabalha com o parto e a flor numa interessante comparação, utilizando-se com propriedade de figuras de linguagem, não deixando a desejar a qualquer outro escritor mais experiente ou adulto. Na verdade, se Cabral tira da pedra da Psicologia, Lorena faz com que Lóri tire da flor e do prato um subjetivismo poético de casar inveja. Lembrando que trabalhamos isso na aula sobre substantivos e adjetivos na Escola de Aplicação do Recife,  o que foi uma feliz coincidência.

Mais do que passíveis de crítica literária – confessor que, em mais de 20 anos como crítico literário, já me deparei com versos bem menos trabalhados e inteligentes que desses estudantes, esses poemas comprovam sem dúvida, que um investimento principalmente de tempo com jovens não é desperdício ou falta de foco; não está desviando do currículo ou “enchendo linguiça”, jogando fora aulas que poderiam ser eficientemente utilizadas em regras gramaticais ou leituras direcionadas de texto, como critica o perfil atual das aulas de língua materna Lívia Suassuna., em seus inúmeros trabalhos sobre tipos avaliação e classificação de aprendizagem. A solução vem nos sentido contrário desse, investindo-se em leitura e produção autoral, principalmente textos literários. O resultado, além de alunos proficientes na língua, como demonstrado, também está na produção autoral. Indiretamente, estimula-se os jovens a escreverem e motiva-se a carreira de possíveis escritores. Isso aconteceu também nessas aulas de regência na Escola de aplicação do Recife. Certamente, alguns alunos, como apontados pelos docentes de Literatura e Português, objetos dessa regência, já demonstravam tal vocação, mas com certeza foram ainda mais incentivados a adentrar ou aprofunda-se no mundo literária.

A formação de cidadãos através da leitura tem um longo caminho a percorrer em nosso país; a amostragem desse projeto, desenvolvido em 20 horas/aula, dá indícios de que o Estado falhou, a família falou, a escola falhou, no quesito educação literária e inserção cultural desses jovens. Não pretendemos – e nem poderíamos, com o curto tempo de desenvolvimento desse projeto de regência, nos colocar como salvadores da pátria, assumindo, mesmo que temporariamente, o papel de alguns docentes da rede de Educação, que, por inúmeros motivos, deixa em segundo plano a Educação Literária, com leituras profundas e trabalhos constantes de redação e revisão de textos literários, especialmente poemas. Mas também não poderíamos nos omitir em relação ao nosso papel de estagiários de regência, estimulando a leitura entre os jovens, formando leitores cidadãos e conscientes, profícuos interpretadores da realidade através de produção poética autoral. O que tentamos e concluímos como sendo alcançado, ao menos parcialmente, foi despertar esses estudantes para a poesia e também indiretamente fazer refletir a postura dos professores desse estágio, provando que é possível um trabalho diferente; que é possível torna-los conscientes do mundo e da arte, através do mergulho nos textos literários e desenvolvimento de produção autoral, que são processos contínuos e interdependentes.

Fica uma lição emocionada e marcante par mim como futuro docente de Língua Materna usar de Literatura, e poemas, sobretudo, em minhas aulas, procurando fazer diferente, indo de encontro à corrente de acomodação e apatia que se abateu sobre os profissionais de educação ao longo de décadas de falta de investimento público em formação de leitores e estímulo à leitura. Não será fácil cumprir essa missão nem na escola pública – onde falta muitas vezes estrutura, mas se tem um pouco mais de liberdade docente, nem na privada, geralmente com um ensino fragmentário, voltado tão somente para o vestibular/ ENEM, dominados por uma ideologia de marcado e competição, com pressão de pais e diretores sobre os professores, no sentido de cumprir um currículo fechado e com poucas brechas para inovações. Mas fica sem dúvida para mim esse grande desafio profissional.

Portanto, os resultados tímidos, mas desafiadores desse projeto (sarau e poemas dos alunos), exposto nesse blog/relatório,  com várias limitações por absoluta falta de tempo (e não de disposição do estagiário-regente nem do apoio dos professores, direção e coordenação da escola), devem ser encarados como iniciação dos adolescentes ao mundo da leitura literária mais aprofundada, não-fragmentária nem historicista; através da leitura e produção poética, vislumbraram-se nas feições desses jovens novos horizontes, fazendo-os enxergar o mundo com novos olhares.

Afinal de contas, para que serviria a Literatura, se não para despertar esperança e formar cidadãos, a partir da constatação de indignação com a realidade, tão próprias da adolescência e constituição da pessoa humana?
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REFERÊNCIAS

 

CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. Os Parceiros do Rio Bonito. Rio de Janeiro; José Olimpio, 1964.

________. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 7ª. Ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1985.

_______. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 6ª Ed., Belo Horizonte: Itatiaia, 1981. (v. 1)

CERVINSKIS, André. Líteris antologia de jovens escritores. Recife: Livro Rápido, 2011.

MELO NETO, João Cabral de. Poesia Completa e Prosa. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.

NOGUEIRA, Lucila. Imilce. Recife: pacífica, 2003.

____. A Dama de Alicante. Rio de janeiro: Oficina do Livro, 1990.

PINHEIRO, Helder. Artigo. Caminhos da Abordagem do Poema em Sala de aula. Revista Graphos. João Pessoa, v. 10, n. 1, 2008

SUASSUNA, Lívia. Elementos para prática da Avaliação em Língua Portuguesa. Artigo. Disponível

em: file:///D:/EST%C3%81GIO%20IV/Elementos%20para%20a%20pr%C3%A1tica%20da%20avalia%C3%A7%C3%A3o%20em%20l%C3%ADngua%20portuguesa.pdf. Acesso em: 30/06/18.

SUASSUNA, Lívia et allii. O projeto didático: forma de articulação entre leitura, literatura, produção de texto e análise linguística. Artigo. In: BUNZEN, Clécio & MENDONÇA, Márcia. Português no ensino médio e formação do professor. São Paulo: Parábola, 2006.

____. Avaliar é preciso. Saber como, também. Entrevista. Disponível em: www.escrevendoofuturo.org.br/conteudo/biblioteca/entrevista. Acesso em: 21 de abril de 2018.

 

 

 

 

 

 

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André Cervinskis é jornalista, ensaísta, mestre em Linguística pela UFPB. Produtor cultural, com vários projetos aprovados pelo FUNCULTURA-PE na área de Literatura. Com várias premiações nacionais e internacionais, tem 13 livros publicados em autoria própria e coautoria. Colabora com o site Interpoética e o jornal U-carboreto, ambos de Pernambuco, e o periódico Correio das Artes na Paraíba. Mora em Olinda-PE e teve avós lituanos. E-mail: acervinskis@gmail.com




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