Poesia e viagens incessantes da linguagem


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A uruguaia Amanda Berenguer (1923-2010) é uma das mais expressivas vozes da poesia em seu país, destacando-se ao lado de outros importantes poetas, a exemplo de Julio Herrera y Reissig, Juana de Ibarbourou, Juan Cunha e Circe Maia. Sempre instigante no tratamento com a linguagem, escreveu uma Dialética da invenção e uma Autobiografia, textos onde questiona seu próprio afazer poético. Em uma entrevista, disse: “Meu verdadeiro ofício é criar a esperança”. Antes havia dito: “Minha evolução é uma busca, cada vez mais afincada, uma abertura para muitos lados, com tudo o que a abertura possui de dinâmico”. A seu respeito, escreveu Rafael Courtoisie, no prólogo de um de seus livros, La botella verde (1995) “Se ‘o vocábulo é a viagem’, esta mulher viaja para dentro e para cima, às vezes dando voltas em uma palavra como um mundo. Com Emily Dickinson resgata o encantamento e a magia; mas também conquista o espaço desde a insinuação do signo, em Composición de lugar. Em Identidad de ciertas frutas se aproxima do vegetal com uma vocação anterior a todo manifesto ecológico, completando um ciclo que se parece muito com uma ‘botânica das imagens’, pródiga em polpas e sabores de palavras.” Autora de livros como Elegía por la muerte de Paul Valery (1945), Contracanto (1961), Identidad de ciertas frutas (1983) e El Pescador de caña (1995), sua poesia completa se intitula Constelación del navío (2003). Entrevista realizada em 1996. Os trechos entre aspas reproduzem passagens do livro El monstruo incesante (Expedición de caza) (1990), e foram selecionadas pela poeta.

 

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FLORIANO MARTINS: Teu primeiro livro é Elegía por la muerte de Paul Valéry (1945). Em sua Antología de la poesía uruguaya contemporánea (1966), Domingo Luis Bordoli assinala que alguns escritores de tua geração cuidavam do estilo de Valéry “como se fosse a letra de uma lei”. Segundo o poeta de A jovem Parca, a finalidade indiscutível de uma obra de arte é “provocar atos internos”. O que tem buscado a poesia através de Amanda Berenguer?

AMANDA BERENGUER: De minha parte, indago: o que busca o aroma através da flor? “Provocar atos internos?” Recorrer ao sentimento da beleza ou da fealdade? Estimular o perecimento? Representar o amor? Seduzir o que se esconde dentro dela? Perfumar por perfumar, doce ou nauseabundo, sem propósito algum na cavidade da corola? Vejo que me invadem múltiplas opções, e que é difícil distingui-las uma da outra. A “forma” da corola, seu porte, os delicados pistilos, o estame central, germe da semente e do fruto, escrevem a própria flor que é seu próprio perfume: o poema. Esta flor pode ser vivificadora ou mortal, pode abrir a primavera ou um nicho funerário, pode mostrar a delícia ou a nostalgia ou o terror, pode induzir o pensamento, atrair a memória ou provocar a imaginação. A flor inteira, completa, forma e interioridade, é o poema, e pode-se deduzir que o perfume é sua maneira de dar vida ou poesia, o que é a mesma coisa. Tudo concorre para esta convocatória dos sentidos e do pensamento. O exterior e o interior sobrepostos. Minha poesia tem buscado e segue buscando ser essa flor no tempo, e sempre cambiante. “Mesmo sendo esta aventura aparentemente tão pessoal, em definitivo é para ser compartilhada entre todos. São os outros que corroboram a existência. Sem a abelha que a poliniza e a publica, a flor não saberia o que fazer com sua mensagem.” Agora um exemplo de interioridade externa: “Quando escrevo sinto que a ponta da caneta é uma continuação de meus dedos, que vai segregando uma substância parecida com a teia de aranha ou o fio de seda. Não sei se construo um casulo ou um alçapão; de qualquer maneira, a escritura é uma matéria brilhante e adesiva, protetora e audaz.”

FM: De Paul Valéry até o Surrealismo, as infindáveis viagens do inconsciente à consciência. No entanto, a originalidade do poeta não se encontra no “ditado do pensamento na ausência de todo controle exercido pela razão”, da mesma forma que no “trabalho mais consciente a partir de uma estrutura vazia”. Em tal sentido, é possível afirmar que os melhores momentos da poesia deste século somam os enunciados de Breton e Valéry?

AB: Creio que mais do que somar enunciados separados, o melhor da poesia é uma simbiose permanente entre o sonhado e o raciocinado: entre a escritura automática, trazida, sonhada, desde o subconsciente e a daquela controlada pela razão. “As palavras de Antonio Machado, ‘canta-se uma viva história contando sua melodia’ e as de Valéry, ‘Honte d’être comme la Pythie’, mais o ‘ostinato rigore’ de Leonardo da Vinci, sugeriram-me uma inquietante proposta.” Minha maior ambição como escritora é chegar a “pensar o sensível” e a “sentir o inteligente”, e poder transmiti-lo.

FM: Em suas leituras de Huidobro, disse o venezuelano Guillermo Sucre que ali “o fracasso é estético na medida em que é também existencial: não é possível apagar o acaso, nem a morte”. Disse também que “a poesia está ligada à busca do que não se poderá encontrar”, que a poesia é uma impossibilidade. O que pensas? Qual é o verdadeiro âmbito da poesia?

AB: Creio que o verdadeiro âmbito da poesia é o estar e o não estar simultaneamente. É ser escritura ou canto e seu fantasma. A linguagem, como “o mar, experimenta sua própria superfície, vive sua fundura em entranhável relação com a aventura do mundo exterior, porém não se pode nunca dizer do mar que é superficial, porque essa mesma forma – toda superfície – é a reveladora de outra dimensão. Então, o que sabemos da fundura? Percebemos apenas formas, rostos cambiantes da superfície. Sua profundidade nasce de uma dedução intuída. Na tomada de consciência do valor existencial das formas, em perfeita mudança e em presente contínuo, está minha descoberta do profundo. E as palavras com as quais fazemos nossa obra também são superfícies profundas, reveladoras: tecnicamente alcançáveis porém mágicas ao serem capturadas. As palavras são sutis utensílios, signos fluorescentes, com auréola, que vivem em família sedentária ou são nômades ou solitárias. Com elas elaboramos simulacros e tratamos também de obter vida: a do próprio texto?, a nossa pessoal?, a dos outros?, ou tudo junto?, não sei.” A “palavra viva”, junto com “O vocábulo é a viagem” são minhas consignas.

FM: Recordo um verso de teu livro Contracanto (1961): “Quero morrer de tua morte, / de tua viva quantidade / resplandecente”. É verdade que o tempo se dá sempre de modo circular, que não há linearidade possível neste sentido. Enlaço esse pensamento com outro de Sartre, acerca da essencialidade do desamparo no nascimento da liberdade. Agora nosso contato direto com as perdas, sobretudo com a morte, com a dor das perdas. Até que ponto a morte expande nossa visão do mundo?

AB: A morte é uma barreira, um muro do tempo. Acaso é uma ilusão ou uma metamorfose existencial? A morte nos acompanha desde que nascemos e faz nossos próprios gestos e nossos próprios atos. A esquecemos na juventude, a respeitamos na vida adulta e a sentimos de verdade na velhice. Essa morte, por oposição à vida, sublinha obscuramente todos os acontecimentos: vai por baixo como um peixe das profundidades, seguindo o navegante: deslumbramento acima e brilho escuro abaixo. O mundo então se completa, torna-se mais intenso, mais frágil, mais maravilhoso: a morte o estimula.

FM: Ernst Jünger defende que “o artista é antes de tudo responsável perante sua obra e não perante esta ou aquela orientação política”, concluindo que, “para ele, é uma necessidade ser egoísta.” É esta também a tua opinião? Está de acordo com ele, quando afirma que “em primeiro lugar está o homem, e seu ambiente vem depois”?

AB: É muito difícil para mim separar o ser humano de seu habitat; mais ainda, diria que é impossível, e que não há um antes nem um depois: há intercâmbios simultâneos.O homem é essencialmente um ser social no presente: dialético, circunstancial, cambiante, metamorfósico.“Assim há processos, ou melhor, esquemas de processos que, no entanto, se repetem: a história da humanidade dentro da história universal, a história do homem dentro da história da humanidade, a história de um indivíduo dentro da história do homem e, de certa maneira, chegamos a esses pequenos e íntimos ciclos temporais dentro da história de um só homem.” Esses ciclos temporais estão respaldados por todo o universo. Sentimos que mudamos, que vivemos. Tudo se transforma. Qualquer um desses processos interiores seria, além do mais, parecido com o de certas flores, por exemplo, o da flor do girassol. É primeiro um centro fechado, curvado para dentro, côncavo, ensimesmado, que pouco a pouco vai, lentamente, recebendo e oferecendo-se à luz, ao ar, com tesão e assombro, abrindo-se, estendendo-se, exteriorizando-se, mudando de forma, povoando-se para fora até dar com uma estrutura exposta, convexa e desnuda em radial relação com o mundo exterior. Passaria assim naturalmente do côncavo, primitivo e pessoal, para o convexo, aberto, evoluído e social. Para aquele cuja forma de exteriorizar-se, de aparecer e de comprometer-se fundamentalmente (nisto lhe vai o real e o imaginário, a fome e a saciedade, esta vida suspensa e essa outra que vamos perdendo, um legado de amor e o próximo explorado em um cego anonimato), é também fazer uma arma, uma ferramenta, um objeto literário gerador de constante vitalidade, essas maneiras cambiantes e entremescladas de ser a si mesmo – determinadas por tantos estímulos interiores ou exteriores, ou mesmo interdependentes – condicionam o poema. Vive-se permanentemente acossado por circunstâncias, fatos, situações presentes. Os estímulos andam pelo ar, ora políticos, científicos, estéticos, econômicos, mas todos, mesmo os mais pessoais, se transformam em matéria social.” Egoístas ou não, “estamos com as mãos na massa, condenados à perpetuidade sobre a corda frouxa, ou fazendo malabarismos, ou escutando o estalo do chicote do domador, ou dispostos a exprimir o destino em um salto mortal com capa, como uma onda”. E alguns corremos a aventura – com ar não justamente egoísta -, a bordo da linguagem.

FM:Uma vez mais desgarrada de um conhecimento das forças mágicas de sua própria origem, a poesia latino-americana torna a perder sua expressão singular, uma vez mais acossada por uns facilismos formais. Penso na obsessão pelo obscuro que lateja na letra do neobarroco, ao mesmo tempo em que nas vertigens esvaziadas de sentido de uma palavra centrada somente em si mesma, como era o caso do concretismo brasileiro. Supondo que concordes com esta minha visão, qual seria a razão da pobreza atual de nossa imaginação e de nossa capacidade de renovação formal?

AB: Não temos que confundir obscuridão com profundidade. O neobarroco é obscuro, e nem sempre tem outra dimensão, uma palavra sozinha estendida sobre a página (penso em Mallarmé) às vezes é um abismo. Alguns concretistas brasileiros movem-se nos dois terrenos com valores antitéticos; penso em Haroldo de Campos. Creio que neste momento estamos avassalados por um elemento muito poderoso: a imagem visual. Os cartéis da propaganda e da publicidade, a maioria dos programas de televisão, o cinema comercial, configuram geralmente o mundo passivo da aparência. Este elemento exerce uma potente influência negativa sobre as formas mais ativas e secretas da imaginação criadora. A imaginação comum estendeu-se ao sol e pôs-se a dormir, e ficou letargiada, quando não desapareceu. Assim ocorre em todo o jogo de luzes dos cartéis da propaganda, que nos afogam com sua presença, e quando, raras vezes, beiram uma formulação poética, esta se nos impõe como um impacto repetitivo, anulante.

FM: Não tenho indagado acerca de tua poesia, uma vez que concordo contigo em que “nada pode falar com mais precisão de uma obra que ela própria”. Há, contudo, uma notável abrangência de tua obra do ponto de vista formal. O que se passa então com o conteúdo? Acaso é puramente formal teu desejo de expressão?

AB: Meu desejo não é formal: é uma necessidade vital, mas ocorre que os escritores não temos mais do que palavras para expressar-nos, e as palavras têm superfície e fundo, são signos significantes dos quais só se pode avaliar sua profundidade através da aparência. “Na tomada de consciência do valor existencial das formas, além da perpétua mudança está o conhecimento do profundo.”

FM: Outro ponto que me desperta curiosidade: há uma passagem maravilhosa em tua Autobiografia, quando falas de tuas preferências, tuas relações com a poesia de outros poetas, no plano da amizade. São palavras tuas que “não me sinto amiga do norte-americano Ezra Pound, ainda que me impressione e me impulsione à investigação de seus Cantos sem limites, oscilando entre o conhecimento humano e a acumulação de uma processadora de palavras”. Decerto que há um exagero em torno da importância de Pound, porém sua presença encarnou a totalidade, o mesmo que Dante ou Lezama Lima. Não há acaso uma dívida secreta de tua poesia em relação a Pound?

AB: Não creio ter dívidas com ele, pela simples razão de que apenas recentemente li Pound, quando já havia escrito mais de 2/3 de minha obra. Senti então uma especial relação literária, formal, de procedimento, porém a escritura de Pound deslumbra-me, ou melhor, cega-me, é tão poderosa!, tanto que não me deixa ver claro.

FM: Recordo Eugène Ionesco: “Uma civilização de palavras é uma civilização atormentada”. Temos vivido uma época obcecada pela produção do genuíno em escala vertiginosa, a palavra convertida em slogan sensasionalista. A mediocridade ascende à categoria de “esplendor artificial”, como assinalou George Steiner. Como escapar do silêncio das sereias? Como é possível fazer com que as palavras voltem a ser expressão do humano em nós?

AB: Vivemos uma civilização anestesiada ou excitada até o crime pela “imagem visual” (a grande protagonista de nosso tempo), e pela imagem sonora (o ruidoso, o ritmo desenfreado, a música de massas, as multidões de jovens atraídos e caídos em estado de frenesi ajudados pela droga). E todos os demais, calados, solitários, diante do televisor transformado em tubo de refúgio ou escapatória. Por outro lado, não creio, como diz Ionesco, que seja “uma civilização de palavras”. Atualmente, a linguagem torna-se cada vez mais pobre, mais sintética ou analítica (mesmo que as linguagens científicas sejam bem-vindas à casa do dicionário). Abundam as apócopes e as siglas compressoras, parece que a língua, à medida que se torna planetária, se retrai e está em perigo de implosão (em especial o inglês, tão avassalador com toda sua artilharia de computação e de comunicações eletrônicas). Não, não é uma civilização de palavras, mas é, isto sim, uma civilização “atormentada”.

 

 

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[Publicado no Diário de Cuiabá]

 

 

 

 

 

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Floriano Martins (Ceará, 1957) é poeta, editor, ensaísta e tradutor. Dirige a Agulha Revista de Cultura (www.revista.agulha.nom.br) e colabora semanalmente com o DC Ilustrado com uma série de entrevistas que futuramente reunirá em livro intitulado Invenção da América. Contato: arcflorianomartins@gmail.com.




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