Poesia e o limiar do improvável


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“Tenho pensado a poesia como um lugar (ou não-lugar) de sentidos incessantes, palimpsestos do sensível na frincha da significação, um lugar em que a poesia resiste independentemente do ‘poético’, do ‘poema’ e do ‘poeta’. Poesia furtada da literatura, não figurada, mas que assume o seu sentido de poesia como um sentido sempre por fazer. Esse lugar é antes da própria poesia, sem sê-lo propriamente poesia, mas distendido em todas as artes. Um lugar de tartamudez e prenhe de silêncios, na fresta da língua: ali, aqui…”.

Foi assim que respondi à pergunta “O que é poesia para você?”, bancada por Edson Cruz para o seu peculiar e provocador O que é poesia? (RJ: Confraria do Vento/Caliban, 2009, p. 108-110), um livro que reúne 45 comentários sobre a indefinível poesia.

A menção do que havia dito é porque, neste segundo momento, cuja proposta é uma “fala” neste espaço da Casa das Rosas sobre a mesma indagação, assim, certamente uma oportunidade para prolongar essa improvável definição.

Nesse “ali” ou “aqui” do primeiro depoimento há a presença do agora, mas o agora sempre por vir, sempre se fazendo, sempre sendo, próprio e mais do que propriedade do inapreensível, o agora que é próprio do improvável, do que não tem provas pela linguagem.

Algo mais se insinua e quer nos dizer e nos seduzir na poesia antes dela ser linearidade ou totalidade, antes dela encerrar-se no sentido de autoria ou de obra. Algo que é da ordem do improvável e que a poesia se relaciona incessantemente. Algo que, segundo Blanchot é ausência de obra: “o exterior”. Uma “escrita exterior à linguagem que todo discurso, inclusive o da filosofia, recobre, recusa, ofusca, por uma necessidade verdadeiramente capital” (A conversa infinita – A palavra plural, p. 73). É “tanto a intimidade da instância, quanto a dispersão do Exterior, mais estritamente, é a intimidade com o Exterior, o exterior tornado a intrusão que asfixia e a inversão de um e de outro, aquilo que chamamos, ‘a vertigem do espaçamento’” (Ob. Cit. p. 91).

Este lugar inominável no qual não se pode nem dizer jocosamente um lugar de nadas, muito menos dizer um lugar, é, para Blanchot, “o neutro”: “presença sem presente, sem conteúdo determinável, sem termo atribuível” (Ob. Cit. p. 91).

Acessar isso é talvez tocar na “natureza” ética da poesia, natureza de reunir em seu espaço tensões que a fazem questionar mais frementemente o poder da linguagem. Ética porque a poesia é linguagem, mas igualmente fracassa como possibilidade de anulação deste poder da própria linguagem para justamente fazer-se em abertura generosa a essa “presença” e a esse “agora” como lugar daquilo que jamais será visto duas vezes. Eis a generosidade da poesia: sua inutilidade útil. A poesia tem a natureza do floco de neve, da nuvem e do coral. A poesia não se repete assim como não existe forma igual nessas formas da natureza. Nenhum floco, nenhum coral, nenhuma nuvem é igual. A poesia, portanto, está na ordem da economia do ser. Sua ética mede-se por sua aproximação da fala do coração e por seu distanciamento da eficácia do discurso. Assim, em medida vulgar, podemos testemunhar que a poesia se faz presença na voz murmurante de uma avó, de uma velha índia ao passo que se distancia do discurso normativo de um prefeito. Por isso que Deleuze afirma que a única maneira de defender a língua é atacando-a.

A poesia, portanto, é linguagem e a linguagem fracassa diante deste Exterior, desta exterioridade sempre se fazendo. A poesia “não está aí para dizer a impossibilidade: ela lhe responde somente, respondendo ela diz. Assim, em nós, é a partilha secreta de toda palavra essencial: nomeando o possível, respondendo ao impossível (…) de modo a apaziguar a questão que vem obscuramente desta região; menos ainda, a transmitir, como um oráculo, alguns conteúdos de verdade que o mundo da luz ainda desconhece. É a existência da poesia que, cada vez que ela é poesia, responde por si própria e, nesta resposta é atenção ao que se destina (desviando-se) na impossibilidade. Ela não o exprime, ela não o diz, ela não o submete à atração da linguagem. Mas ela responde. Toda palavra inicial começa por responder, resposta ao que não foi ainda ouvido, resposta ela mesma atenta, onde se afirma a espera impaciente do desconhecido e a esperança desejante da presença” (Blanchot. Ob. Cit., p. 93-94).

Podemos colocar como medida radical de poesia a ação e o gesto escriturais. Exemplo: O suicídio do artista plástico Mark Rothko. Gesto que para Severo Sarduy implicou uma extensão de sua pintura: “a exata medida do vermelho, que foi a obsessão de toda sua vida. O sangue derramado – e esse outro sangue em silêncio: o álcool – vinho para coroar, com seu vermelho, a busca que nenhum quadro podia preencher”. O último gesto de Mark Rothko, uma pulsão de simulação que para Severo Sarduy estaria relacionado à obsessão do artista plástico pela cor vermelha. O gesto escritural (e último ato em vida) teria sido guiado pela vontade de anular a distância entre o pintor e seus materiais, e responderia à tentação de transformar-se em estrita cor.

Outra medida para se perceber essa margem em que a poesia se relaciona antes mesmo de ser poesia é se pensarmos rapidamente na figura de um gato à nossa frente. E nos aproximemos dele com desconfiança e cientes de que ele é algo próximo de uma prova viva do improvável, ou a presença que alimenta o limite. Indaguemo-nos: O que é o gato se ele próprio não sabe que se chama gato?

Para encerrar, deixando mais clara a diferença entre fala do coração e discurso, gostaria de apresentar um texto de Arturo Carrera que traduzi recentemente. Chama-se “De coração” e foi lido pelo poeta argentino na inauguração da Estação Pringles (2007): associação civil e empresa cultural presidida por ele. Trata-se de uma fala/ensaio e foi dita para o evento “Jornadas Preparatórias Rumo ao 1º. Certame Regional de Declamadoras de Poesia”, realizado justamente na cidade de Coronel Pringles, interior da Argentina:

“Declamar: Declamar não é gritar. Não, em todo caso é falar com afeto e veemência. Recitar prosa ou verso com entonação e gestos convincentes.

Ainda temos muito que conseguir no terreno da declamação. Cada novo poema exige uma revisão dos recursos sensíveis e, por que não, técnicos disponíveis para abordá-los. Toda a poesia se pode declamar, porque a declamação, em todos os tempos tem sido útil para dar-lhe vida, relevo, brilho ou opacidade aos versos de inumeráveis poetas. Alguns consagrados, outros desconhecidos, a declamação tem revelado detalhes rítmicos, pontos em que a poesia se torna prosa e prosa onde a poesia transforma, por meio de acentos e detalhes específicos, as vozes de quem as disseram e dos que as escreveram: “dizem”, música afinal, como disse o poeta grilo: música porque sim, música vã…

Disse uma declamadora: “Pude encontrar as sonoridades mais estranhas… Bem, a declamação é o meio de que nos valemos, intérpretes de poesia, e a voz, nosso instrumento. Embora existam milhões de palavras escritas temos que expressá-las oralmente e às vezes colocá-las na orelha do ouvinte adormecido”.

As declamadoras são as mulheres como as pequenas parcas de nossa infância, as meninas, as velhas, as mulheres do poeta Rósewicz: as mulheres buda, as mulheres más, as que propagam, as que perduram, as que falam à sopa, às plantas, aos figos, às bestas, ao fogo: as que gritam o que sentem, as que transformam tudo em luxo, em renda, em espuma, em tempura das sensações…

Acho que há um retorno da oralidade mais velha, mais ignota, mas mais útil, na poesia do “coração”. Recitar era uma entonação intermediária entre a declamação e o canto. Mas a declamação é a mais dramática das entonações para assegurar as partes de um poema e fazê-las mais visíveis à imaginação e mais audíveis aos sentidos.

A declamação alcançou um momento culminante durante o período da poesia modernista em toda América Latina e em Espanha. Teve uma diva central que a impulsionou e a pôs em voga e até criou escolas de declamação em todo o continente latino-americano: Berta Singerman – amiga dos poetas mais importantes de sua época: Lorca, Neruda, Mistral, Storni, Ibarbourou, etc.

De qualquer maneira, a proposta do projeto de Estación Pringles em que a diretora Vivi Tellas colocou em cena uma Caravana de Declamadoras que disseram seus poemas nas ruas de Pringles, pôs em evidência na memória para a aprendizagem da poesia (sobretudo na infância) e também voltou a enfatizar a importância que tiveram as mulheres na difusão da poesia de uma época. Daí esta seleção somente de declamadoras (meninas de todas as idades).

Digamo-lo com outros ensaístas e poetas geniais como Derrida, Eliot, Bonnefoy: rapidamente, em dois ou três palavras, para não esquecer-se. A declamação inclui um teatrinho dentro do poema: para não esquecer-se. A economia da memória de poesia guarda as moedas em um cofrinho velhíssimo. Por coração: os franceses e os ingleses dizem par coeur, by heart, e nós de memória. Dizem que em árabe se diz: um único trajeto com várias vias. Nessa metáfora – não será demais remarcá-la – já tem uma estação e mil vias. A memória, o coração na poesia, nos poemas. Derrida nos disse: o poético seria aquilo que desejas aprender, mas do outro, graças ao outro, por meio do ditado – digo eu – da memória, aqui e ali, ali (na infância) e aqui agora (na outra infância). O que quer dizer reter de memória uma forma absolutamente única? Um afeto que não se desprende? No desejo desta “não separação absoluta” respirar a origem do poético. Trata-se disso. Aprender de memória outra vez. Uma vez mais. Para encontrar no poema as palavras que havíamos querido lembrar se escrevêssemos poesia. E também: as que havíamos querido esquecer um instante para receber em outro, muito mais distante, talvez a espetada do coração eriçado da vida.”

Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos

São Paulo, 24 de junho de 2012.

 

 

 

 

 

 

 

 

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Ricardo Corona atua nos seguintes campos: poesia contemporânea brasileira e hispano-americana, estudos de relação entre as áreas artísticas (performance, poesia sonora, artes visuais), tradução, linguagem e cultura. É autor dos livros ¿Ahn? (Madri, Poetas de Cabra, 2012), Ahn? (SC, Editora da Casa, 2012), Curare (SP, Iluminuras, 2011 – Prêmio Petrobras), Amphibia (Portugal, Cosmorama, 2009), Corpo sutil (SP, Iluminuras, 2005), Tortografia, com Eliana Borges (SP, Iluminuras, 2003) e Cinemaginário (SP, Iluminuras, 1999). Na área de poesia sonora, gravou o CD Ladrão de fogo (2001, Medusa) e o livro-disco Sonorizador (Iluminuras, 2007). Organizou a antologia bilíngue (português-inglês) de poesia Outras praias / Other Shores (Iluminuras, 1997). Com Mario Cámara, Daniel Link, Reinaldo Laddaga, Romina Freschi, Nora Domínguez, Raúl Antelo, entre outros estudiosos da literatura hispano-americana, participa do livro La poesía de Arturo Carrera – Antología de la obra y la crítica, organizado por Nancy Fernández e Juan Duchesne Winter (Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana/Universidade de Pittsburgh, 2010). E-mail: ricardomcorona@gmail.com




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