Peter


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A mansão finalmente pronta era como a tenda gigantesca de um circo que alguém terminara de marretar num terreno baldio qualquer — um elemento artificialmente inserido sobre o qual se podia ter certeza da sua curta estadia, o que não impedia a comoção geral de quem sentia aquela colossal presença, jogando sombra e intimidação para quem estivesse olhando. E se quem estava olhando eram molequinhos montados em suas bicicletas Montreal, de calção de malha e dedos dos pés escalavrados por paralelepípedo e areia, a coisa parecia ainda mais ameaçadora. Totalmente improvável. Improvável como a tentativa de roubo daquele mastodonte branco, que ninguém por ali tardou a descobrir.

Nos intervalos entre colocar os pés nas pedras da Santa Teresinha ou permanecer com eles durante semanas só tocando no parque da sua própria casa, uma eternidade de coisa poderia acontecer. E tudo estava acontecendo. Por exemplo: o dia em que Mariano voltou à rua, depois do que parecera uma vida toda dentro de casa, crescendo mais rápido do que deveria e do que gostaria. E sofrendo um tanto mais do que conseguia imaginar.

Você podia olhar para suas próprias pernas e notar o esfuziante matagal brotando ali como se hormônios fossem uma loção que alguma espécie de assistente divino passara em você durante o sono. Como um complexo vitamínico para vegetação. Sua voz titubeava entre dó e si com a desenvoltura de um primeiranista de violino, mas ainda assim parecia que a rua estava esperando todo este tempo que vocês voltassem a reassumir seus lugares. O calor firmando-se ao redor de seus corpos — uma câmara invisível para lhes suportar, como o capim que não crescera entre os vãos dos paralelepípedos sobre os quais vocês estão agora, posicionando-se de forma a reiniciar um jogo que, a bem da verdade, nunca acabava. O quarteirão era uma grande instalação artística sobre aquela vida de mesmice; ali adiante uma rachadura no calçamento devia estar aguardando pela cusparada de sempre do Bita, ele que ajeita sua munhequeira atoalhada e sacode a cabeça devagar para Nilo, como se eles tivessem uma estratégia para acabar de vez com a dupla que Mariano, taco apoiado sobre o ombro, forma com Odair, enquanto Heleno se concentra em fazer flexões na calçada, esquentando as palmas das mãos contra o piso de basalto na calçada em frente à casa de Verônica. Onde andará Verônica?, Mariano pensa rapidamente, mirando o amigo tentando inflar os músculos. O outro elemento a conferir algum caráter de novidade àquela cena é Zé da Baé e seu talento em mal se fazer notar quando não está invadindo o ouvido de todos com seu matraquear enciclopédico-musical, encostado no muro da casa de Odair com os fones de espuma laranja muito grudados na cabeça, menos observando o jogo do que alternando os dedos rápidos entre ffwd e rwd no Sony prateado que ele segura apoiado nos joelhos. Ele e a sombra da mansão que agora se projeta sobre a a rua adicionando novidade à mesmice.

Zé da Baé está cantando sem perceber o quão audível é o som da sua voz, Mirror, mirror on the wall, tell me, mirror, what is wrong?[1]

O menino da língua presa que canta rap em inglês e faz estragos com a letra r.

Nilo, com a bola na mão, gira o braço como um personagem de desenho animado, mirando para arremessá-la com toda a força e derrubar a lata de óleo que Mariano se prepara para tentar defender com seu taco.

What I do ain’t make-believe

People say I sit and try

But whan it comes to being de la[2]

Eu vou mandar essa bola tão forte que ela vai te mandar pra dentro da tua casa e fazer você demorar mais três meses para aparecer, Mariano!

Se quando eu reaparecer essa tua cara estiver melhor do que agora, aí é vantagem, respondeu Mariano, impassível com o taco posicionado no vão que fizera perto de sua lata.

Ha ha ha! Tá se arriando nas tuas espinhas, Nilo!, provocou Bita. O guri voltou tocando o horror.

Talvez a rua inteira estivesse mesmo esperando que eles retornassem para tomar seus lugares. Só que o ar em volta deveria estar estranhando aquele novo rapper branco que surgira por ali cantando músicas em que se declamava preto e o marginal de pele cor de papelão que desaparecera de uma hora para a outra. Tudo parecia estranho demais naqueles dias: na tv, um sujeito barbudo chamado Lula dizia que era o âncora de uma tal Rede Povo — mas tudo era só uma encenação, porque na verdade esse sujeito queria ser presidente do Brasil. Porém, o que parecia realmente capaz de alterar inclusive o fluxo do vento que os rodeava era aquela mansão — finalmente pronta, finalmente ocupada? Habitada por seres de outro planeta que todo mundo vira e que ninguém nunca viu de verdade. É claro que os garotos da Santa Teresinha estavam sendo arrastados para cada vez mais perto daquele novo centro gravitacional do bairro. Nada ali podia exercer um efeito de atração maior do que aquele bizarro monumento branco no qual aquele monte de moleque preto estava destinado a esbarrar enquanto se mantivessem por ali.

People think they dis my person

By stating I’m darkly pack

I know this so I point at Q-Tip

And he states, ‘Black is Black’[3]

Impossível resistir à atração de olhar e de, então, querer chegar mais perto. Eles já estavam mais colados da mansão do que no território limítrofe que era a casa de Odair.

Feia vai ficar a tua cara com uma bola afundada nela, meu guri!, devolveu Nilo.

Fala menos e joga mais, Nilo.

Nilo mandou uma bola meio arqueada que escapou da sua mão com efeito muito diferente do que ele desejara. Porque o que ela fez foi zunir por cima da orelha de Mariano e mesmo de Odair, nem sonhando em roçar a lata de óleo Violeta, segura pelo menos dois metros e meio abaixo. Ela passou pelo número 2287 da casa de Mariano e continuou seu rumo, escapando também, é claro, da tentativa de Zé da Baé de bancar um goleiro uruguaio e esticar-se muito além do que sua habilidade e os fios do seu walkman o permitiriam.

Aquela bola mal enviada como sequência de piadas provocativas de um inseguro Nilo lembravam a Mariano um pouco aqueles episódios de Sessão Aventura em que bastava você vislumbrar alguns poucos minutos para sacar a história toda. E uma bola que era enviada na vida real e, na vida real, poderia ser vista voando por cima de sua cabeça como se estivesse em câmera lenta, realmente parecia transformar você em um dos improváveis personagens em uma daquelas presumíveis séries aventurescas. A coisa toda ficava ainda mais inverossímil quanto mais você visse os personagens esticando-se de maneira infeliz, sem que ninguém conseguisse atingir a bola, como se ela tivesse destino certo. O destino certo precisava, no entanto, confundir-se com o único objeto de discussão — mesmo que silenciosa — que eles vinham tendo a tanto tempo, e especulando a tanto tempo? Quando a bola terminou de percorrer seu arco, portanto, diminuindo de velocidade de maneira perfeita a ser interceptada de maneira perfeita por alguém e este alguém foi aquele garoto que pareceu surgir do nada, mas todos viram que surgiu das sombras da mansão, é provável que todos os outros moleques tenham ficado surpreendidos — mas a Mariano pareceu somente o fim de uma coisa já sabida e para a qual não daria tanta importância assim. Porque ainda não sabia que deveria dar.

O rosto dele parecia desenhado por uma criança com um giz de cera cor-de-rosa. E esse ser improvável sacou a mão de dentro do bolso canguru de um moletom que parecia quente demais para aquela época do ano e esticou-a, em concha como uma luva de beisebol que ninguém nunca vira por ali, aninhando a bola como se toda a sua existência tivesse sido planejada para aquele momento.

Ô, manda a bola aí, meu!, gritou Bita.

O garoto continuou impassível com a bola na mão. Tempo suficiente para lerem Bariloche Snowshoeing Tour bordado no seu moletom, se soubessem ler alguma outra coisa em inglês que não fosse surf, dance ou skate.

Ô, meu, você é surdo?

A liderança tinha o dom de se aninhar em Odair mais do que em ninguém. Mas um líder precisa de um imediato que possa dar validade ao seu mandato. Mariano já vira a posição ser ocupada por Bita, porém ele mais se assemelhava ao responsável pela diversão da corte, para falar a verdade. O lugar era de Heleno, de fato. Só que ultimamente ele parecia encantar-se somente com sua capacidade de sustentar o próprio corpo com os punhos fechados pressionando os pedregulhos no chão. Desconcentrou-se de sua atividade física só o suficiente para — também ele — mirar aquele garoto que parecia escapulido da sessão moda jovem de um folheto promocional do Hypo Imcosul. Mariano vislumbrou a oportunidade e agarrou-se a ela.

Ô, chega aí, Mariano falou para o garoto. Você mora aí na mansão, né?

O garoto parecia hesitar em decidir se aquilo de fato era uma mansão ou se somente as noções de escala dimensional eram uma questão relativa entre eles. Mas ele sabia que morava naquele lugar para onde Mariano estava apontado.

Sim, moro.

Beleza. Manda a bola aí, por favor.

O garoto, mais uma vez, parecia ter saído ileso do catatonismo. Lançou a bola, que foi agarrada suavemente por Mariano.

Qual o seu nome?

Peter, o garoto respondeu, aproximando-se uma três passadas com seu Adidas Marathon.

Ha ha ha!, berrou Nilo, virando-se na direção do garoto, que voltara a socar as mãos dentro dos bolsos. Como é que é?

Pí-ter? O nome do cara é Píter?, perguntou Heleno, esticado no chão.

É Peter, corrigiu.

Ah, é Pé-ter! Peter Pan? Ha ha ha! Que merda! Ele tem o nome daquele moleque que usa collant verde!, concluiu Bita.

Resiliência é um sintoma para a forma como as coisas estão. Não necessariamente para a forma como as coisas deveriam ser. O garoto era resiliente. Continuou olhando impassível para aquele bando inédito de garotos que riam, em intensidades que variavam perigosamente entre ameaçadora e amigável. Não sabia, mas do outro lado o estavam radiografando. Intercalando risadas com olhadas demoradas naqueles tênis nunca vistos por ali. Naqueles cabelos castanhos desabando sobre os olhos como um daqueles heróis de séries televisivas de surf. Naquela bermuda de tom fluorescente. Eles eram campeões em estenderem seus olhares por minutos eternos, desnudando as meninas que passavam ostentando seus peitinhos recém formados ali pela Santa Teresinha. Como não conseguiriam, fácil, colocar um olhar pesado e sorrateiro naquelas roupas estampadas com expressões as quais não estão acostumados e com texturas e modelos que só lembravam — e quem lembrava? — de terem visto num daqueles anúncios de marcas de surfs que costumavam interromper qualquer hq, entre uma história e outra?

A verdade? O jogo de taco parecia não fazer mais sentido algum desde a aparição daquele ser que finalmente concordara em abandonar a nave pela qual todos ansiavam pela chegada. E agora que estava ali?

Cara, roubaram muita coisa lá na tua casa?

Peter já havia se aproximado o suficiente para que o jogo de taco fosse suspenso sem que o licença pra um tivesse que ter sido invocado. Simplesmente todos se aproximaram dele com o misto de medo e curiosidade que faz alguém se aproximar de um animal que o dono diz ser manso. Olhou para Bita questionando-o em silêncio.

Bita, acho que ele nem sabe do que você tá falando, disse Heleno, levantando-se de sua sequência de exercícios.

Meu, entraram na tua casa aí pra roubar umas paradas, não ficou sabendo? Teve vigia baleado e tudo.

Meu, na real…

O cara não deve saber de nada, disse Odair interrompendo Peter. Os pais do cara devem ter resolvido a parada toda. Pra que é que o moleque precisava saber?

Sei lá, meu. Direito à informação, defendeu-se Bita. Todo mundo tem direito à informação.

Os ricos escolhem a informação que precisam ter, Bita, falou Nilo.

Teu pai é rico?, perguntou Mariano.

Mano, que pergunta de jerico é essa? O céu é azul?, caçoou Nilo.

Cara, quando o Nilo consegue folgar em alguém ele deve anotar no diário dele, disse Heleno.

Meu!, olha a pergunta do cara!

Peter parecia impassível em meio a tanta gente falando sobre ele como se ele não estivesse ali.

Acho que sim, ele falou

Nilo deu um tapa na testa.

Você é rico?, Mariano continuou.

Acho que sou.

Toda vez que Peter falava, olhava para uma coisa qualquer que não fosse Mariano. Talvez ele estivesse mentindo. Talvez Mariano estivesse sendo provocador demais. Talvez estivessem tendo um diálogo a respeito de algo diferente do que diziam.

Cara, interrompeu Bita, com pouca paciência, por que é que vocês vieram morar aqui? Com grana pra construir uma mansão dessas!

Meu, é… negócios do meu pai. Ele comprou umas coisas aqui no bairro, ou quer comprar… Eu não sei bem a história toda.

Bita, negócio de rico é complicado demais pra uns mortais como a gente entender, disse Odair. Certamente o cara tem o plano dele.

Um plano de merda, vamo combinar, respondeu Bita. Desculpa aí, Píter, Peter, mas, putz, com dinheiro pra construir uma baia dessas e vem morar aqui na Vila Andrade? Cola lá em Ipanema, no mínimo!

Cara, teve uma vez que um tio meu que teve a ideia de montar um negócio aqui e…

Não começa com tuas histórias, Nilo. O dia é do cara! A novidade é o Peter aí!, interrompeu Heleno.

Tá, e tudo bem por ti? Mudar pra cá?, perguntou Odair.

Eu… sei lá. A gente não morava muito longe daqui. A casa é bem bacana… Por mim, tudo bem, resignou-se Peter.

O garoto era, definitivamente, um resiliente. Havia um novo bando de garotos para os quais olhar. Garotos que, certamente, riam de maneira muito diversa dos sons que estava acostumado a escutar. Risadas em um trânsito muito sutil entre o ameaçador e o amigável, mas nada parecia suficientemente assustador para aquele novo habitante da Vila Andrade. Se ele demonstrava ter condições suficientes de suportar aquela mudança, por que aqueles outros garotos, com ainda menos opções, não teriam? Zé da Baé, fones de ouvido em volta do pescoço, dedicando àquele momento a mesma atenção que dedicara ao De La Soul, parecia concordar.

 


[1] “Espelho, espelho na parede, diga-me, espelho, o que está errado?”. “Me, Myself & I”, De La Soul. (N. A.)
[2] “O que eu não consigo acreditar/Pessoas dizem, eu sento e tento/Mas quando se trata de ser um De La”. “Me, Myself & I”, De La Soul. (N. A.)
[3] “Pessoas pensam que afetam a minha pessoa/Dizendo que sou de origem negra/Eu sei disso e apenas pontuo ao Q-Tip/E ele disse,  ‘Preto é preto’”. “Me, Myself & I”, De La Soul. (N. A.)

 

 

 

 

 

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Alessandro Garcia nasceu em Porto Alegre. Seu livro de estreia, A sordidez das pequenas coisas, foi finalista do Prêmio Jabuti e segundo colocado no Prêmio Fundação Biblioteca Nacional, além de ter conto traduzido para o espanhol, publicado na Revista Machado de Assis, da FBN. Está presente em diversas coletâneas e foi um dos editores da revista de contos Flaubert. Mais em www.alessandrogarcia.com




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