Pauliceia de mil dentes


Em 2012, Maria José Silveira está completando 10 anos como escritora. Seu primeiro romance, “A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas”, lançado em 2002, ganhou o prêmio APCA de Reve1ação.
Desde então, publicou 5 romances (“Pauliceia de Mil Dentes” é o sexto), e 18 livros infanto-juvenis, vários deles premiados. Tem livros publicados na Espanha e no Chile.


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EXCERTOS DE CAPÍTULOS do romance
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vai ser hoje cadela vai ser agora eu sei onde você está, sei perfeitamente, não fui eu que lhe arrumei esse emprego, não foi meu pai? era pra isso que você me queria maldita? tô vendo sua cara aproveitadora tô vendo seu cu tô enfiando meu dedo no seu cu meu canivete cadela tô vendo seu grito sua goela de mucosas sua língua roxa gritando, grita grita eu quero ver, quero ver como você é por dentro e vou te abrir como se abre uma coisa maldita uma coisa maligna um tumor na minha cabeça um cancro, uma bosta qualquer, coisa ruim, vou saber direitinho como te abrir e ver seu sangue saindo e me ensopando, tô chegando cachorra, e vou te abrir como abro uma fruta, uma fruta branca sua pele branca amor sua pele de algodão macio, espuma do mar de Maresias, disso você gostava, não é? da espuma na sua pele, sua pele submersa na água verdeazul cabelo molhado, gosto de algas, e você me dizendo que estava tão feliz que o mar era sua casa, que um dia ia gostar de morar numa cidade que tivesse mar, era impossível pensar em São Paulo com praia não dava pra pensar em praiaspoluídas nas Marginais e praiaspoluídas na Pompéia e praiaspoluída na VilaPrudente não dava, e você ria só de imaginar e eu ria com você e seus dentinhos brancos mordendo o carmesim dessa bocadegueixa e você repetindo nãodá nãodá SãoPaulo é um mar de morros topograficamente falando, entende? você gosta de falar assim, topograficamente um mar de morros, tudo tãobonito naquele dia, sim, dá pra ver que essa cidade é um mar de morros ladeiras descendo vales subindo espigões, é isso que estou fazendo agora sem você, subindo e descendo esse mar de morros topograficamente doidamente planejadamente te matando milvezes enquanto subo e desço as ondas de asfalto e cimento atrás de você, vaca estúpida, como pode ter deixado de gostar do que gostava, como podedizerque não gostamais não quer mais, nãodápraaceitar, entende? você dizer NÃO Arturito, não!, como pode cachorra fingida? e agora você vai ver a espuma negra, bolha suja de sangue ensopando seu cabelo de alga imunda, seu corpo se decompondo, virando escamas, e vamos morar nós dois no mar, espumas brancas batendo e rebatendo na areia da praia onde agora você vai ficar, lá no fundo bem fundo onde vou te enterrar, amor, vou te enterrar no mar
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“Emérita cidade de são Paulo,/Mãe branca, mãe indígena, mãe preta,/ Velai por nós!”

… estilhaços de vidro na rua, filamentos prateados no asfalto, a cidade já escureceu mas Filó continua se aproximando dos carros no farol, escolhendo pelas caras que vê através dos vidros quem ela vai abordar, passou a tarde toda ali e já está cansada mas a mãe ainda não, a mãe não se cansa tanto, e elas têm quer completar a cota, melhor completar a cota hoje, assim pode ser que não precisem vir amanhã, e então o dia seria mais preguicento. Se bem que ela até acha que gosta mais quando vem pra cidade passar o dia ali na esquina entre os carros, mas hoje seu sangue está chegando e ela sente dores fortes na barriga, e então é que prefere ficar no quarto, deitada na cama com a barriga pra baixo, apertada contra o travesseiro, nesses dias a mãe deixa, e chega e faz cafuné nela e traz comida pra ela na cama, ela adora sua mãezinha, e obedece tudo que a mãe diz, a vida fica muito melhor assim, quando ela obedece. A mãe e ela vieram sozinhas pra São Paulo e vivem sozinhas, e assim foi o tempo todo, e é a mãe que a protege e lhe diz o que fazer e ela faz, e aí tudo fica melhor porque a mãe fica carinhosa e fala, Minha danadinha, meu saci pererê, ela é pretinha e magra e gosta muito de roupa vermelha, e as duas comem o que tiver pra comer e dormem em paz. A mãe diz que tudo fica melhor quando ela obedece, e fica mesmo, como no dia que ela conheceu homem. A mãe falou que era pra ela gostar, que ficaria melhor se ela gostasse, e ela gostou. Falou baixinho pra ela mesma que era melhor mesmo gostar daquilo, o velho roncando sem dormir em cima dela, que talvez ele fosse um urso, um urso peludo, e estivesse brincando de fazer cosquinha e dar beijinho babado e aquilo, e doeu um pouco e o sangue saiu, mas não foi mais do que dói toda vez que o sangue sai, ou quando ela tá com muita fome ou vontade de tomar o sorvete de chocolate que tem na padaria, e que a mãe sempre dá depois. Isso foi uma coisa que a mãe ensinou pra ela faz tempo, que quando ela tivesse que fazer alguma coisa que mesmo se não quisesse, mesmo se achasse ruim, muito ruim, ia ter que fazer de qualquer jeito, então era melhor gostar de uma vez porque assim ficava um pouco que seja melhor. É por isso que ela faz tudo que a mãe diz pra ela fazer e acha um jeito de fazer achando bom. E o que ela gostou mais do velho, o que ela achou graça foi da parte de enfiar a camisinha no pinto dele, que a mãe já explicou que ela não pode fazer nada sem enfiar a camisinha no pau de qualquer homem, pra não ficar doente, e é a mãe que fala com eles que sem camisinha não tem nenhuma das duas, nem ela nem a filha, e tem uns que ficam bravos e falam que quem devia ter medo de doença aqui era eu e não vocês, e então a mãe responde, Exatamente. E então, nos dias que tem homem pra mãe ou pra ela, as duas comem melhor depois e muitas vezes também morrem de rir porque a mãe fala, Cê tava certa, Filó, o velho parece mesmo um urso peludo, um urso com óculos, e aí Filó fala, Um urso com pinto!, e a mãe diz, Aquele outro daquele dia era um verdadeiro jegue!, e elas ficam rindo até dar dor na barriga, e Filó pergunta: Mãe, urso de verdade tem pinto?, e a mãe e a tia, a tia que é a dona do quartinho onde elas moram, caem outra vez na risada. Ela só não gosta quando a mãe bebe cachaça porque aí a mãe ronca e fica fedida e muitas vezes vomita e é Filó quem tem que limpar. Quando a tia bebe também é a mesma coisa, é ela também que tem que limpar, por isso ela acha que essa é uma coisa que nunca vai gostar de fazer: beber cachaça. Conhece dois meninos que bebem, mas a mãe já disse que não é pra ela chegar nem perto, nem pra experimentar porque ela sabe que é ruim, ela não tá vendo? e que o dia que ela beber alguma coisa, a mãe vai quebrar o corpo dela de pancada. A mãe fica mais brava ainda quando vem alguém querendo vender crack ou cola ou oxi. Diz que o pai dela morreu por causa disso e que o dia que ela mexer com essas coisas, deixa de ser sua filha. Que a vidinha delas é do jeito que é, com as coisas boas que às vezes aparecem, e a mãe bebendo cachaça quando a cabeça fica muito pesada, e a filha comendo doces, mas limpas as duas, e trepando só com camisinha enfiada no pau do homem, e que enquanto ficar assim tá bom. E hoje, sorte grande, ela já ia saindo com a cota completa quando a velha do carro passou. É a velha que a mãe diz que é a avó ricaça que ela arrumou porque toda vez que ela passa dá um nota grande pra Filó, às vezes até nota de 50, só que o mais vezes nota de 20, o que já é muito bom. Pena é que não é todo dia que ela passa no carrão e o motorista abre os vidros escuros das duas janelas e fica olhando de cara brava pra ela mas a velha já está com a nota na mão e fala, Toma aqui, minha filha, vai tomar um banho e jantar. E o motorista fala, Pronto, dona Memê, já vou fechar o vidro, é perigoso, pode ter bandido no farol. Mas não tem, ali na esquina que elas ficam não tem bandido nenhum, ela nunca viu, e a mãe diz que é porque passa pouca gente ali, e os bandidos não estão interessados, e é melhor assim porque também ninguém briga com as duas, e elas ficam sossegadas. E agora com a nota de 20 que a vó ricaça deu, elas vão poder voltar pro quarto e ficar descansando amanhã. É por isso tudo que ela não quer de jeito nenhum ir embora dessa cidade, porque é muito mais movimentada que a cidade onde elas moravam antes, muito mais cheia de coisas e novidades.

E também porque é assim, geladinha!
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Percival, Percília, Perci

Como é lindo, como é lindo, como é lindo!!

Redessignificação do sexo, verdadeira identidade feminina, dignidade da pessoa humana!

Chorei várias vezes lendo essa petição. Solucei. A Dra. Dalila teve que me levar para uma salinha do escritório e me dizer que eu me sentasse e me acalmasse. Foi quando conheci a japonesinha. Dra. Lila lhe pediu pra ficar comigo até eu ter condições de sair dali sem dar o vexame de sair soluçando. A mocinha me trouxe um copinho d´água e se sentou toda delicadinha na poltrona à minha frente. Magrinha, olhinhos puxados. Um lótus, não é assim que chama aquela flor do Japão? Disse, Vai dar tudo certo, você vai ver, Dona Percília. Pode demorar um pouco, mas a Dra. Lila tem certeza de que vai conseguir todos os seus direitos. E falou de um jeito muito sincero, Você já deve ter sofrido muito, e pegou na minha mão. Solucei mais. A essas alturas meu lenço já estava encharcado. Eu tenho mesmo essa queda pro drama, é minha natureza de artista, nada posso fazer senão aceitar. Faz parte da minha sina. E foi então que me deu assim uma compulsão de contar praquele lótus delicado o que não tive coragem de contar pra Dra. Lila. As partes mais negras da minha vida, as que me matam de vergonha. A doutora não tem nada a ver com esse lado duro das coisas, o lado tenebroso, o lado mau. Não faz parte do seu mundo, e ela tem razão em não querer pormenores. Sabe que esse lado existe, não é alienada, e faz o que pode contra ele, mas não quer se aproximar demais. Tá certa. Tem esse direito. Mas se não contei pra doutora nada das coisas mais tenebrosas de minha história, desabafei naquele dia de fragilidade com aquela flor de cerejeira sentada à minha frente, segurando minha mão. Contei o dia que os meninos da Escola Fundamental me obrigaram a fazer xixi perto deles, e riram daquela tripinha pra fora que era aquela coisa em mim, aquela excrescência. Nunca mais fui capaz de urinar na frente de ninguém. Não urinava na escola, e quantas vezes passava o dia inteiro sem urinar só de pavor de ir a um banheiro público. E contei aquele dia trágico dia da adolescência em que tentei fazer um corte bem ali embaixo para colocar aquela coisa pra dentro num desespero, num surto que me fez quase morrer! É curioso, mas a lembrança que tenho não é da dor física, como se eu não tivesse sentido esse tipo de dor ao fazer o corte em mim com a faca afiada de cortar carne da cozinha. Só a lembrança da outra, a dor da angústia tremenda, da loucura momentânea. Quando cheguei em casa fora de mim, depois da milésima humilhação, os meninos atrás, abaixando minha calça e me fazendo tirar a calcinha que eu tinha roubado do varal de uma casa longe da nossa e que ficava enorme pra mim – eu era o terror das calcinhas nos varais, agora até dá pra rir mas naquela época, não –, eu correndo dos meninos, e a exposição, os gritinhos, as risadas, as piadinhas infames. Passei dois dias no hospital e, não bastasse isso e a enorme dor psíquica, quando cheguei em casa, meu pai quase me matou com seu cinturão. Por pouco não voltei outra vez para o hospital, embora, pensando depois, tenha sido de certa forma um acontecimento com desdobramentos bons, pois foi o dia em que decidi que ia ter que buscar outro tipo de vida ou então apressar minha morte. Meu pai sofreu demais comigo, hoje compreendo isso, compreendo até bem compreendido, mas naquele tempo eu não tinha como compreender nada, nem o meu sofrimento nem o dele. Se minha mãe não tivesse morrido tão cedo, talvez tivesse me apoiado, não sei, gosto de pensar assim, mas a lembrança dela é tão vaga, tão esfumaçada, tão distante. Se um dia eu voltar a conversar com meu pai, o que eu mais gostaria de perguntar a ele seria como a conheceu. Como se apaixonaram os dois, ou será que nunca se apaixonaram? Não sei. Ele pode ter se apaixonado e ela não. Ou ela sim e ele não. Acontecia cada coisa antigamente! Mas se tem uma coisa que me lembro de minha mãe é que ela ria muito e cantava. As músicas dela, as musiquinhas de ninar de quando eu fui bebê. Também me pintava muito de urucum vermelho. Se pintava e me pintava, nós dois com o rosto pintado de vermelho esperando o pai voltar da loja. Não me lembro do que ele dizia quando chegava, não sei se achava bom ou não. Dele, só sei das surras e xingamentos. Nem sei se ele é um cara bacana, honesto, como vou saber? Não sei mesmo. Eliseu gosta dele, mora com ele até hoje, o que acho também incompreensível, um marmanjão como meu irmão ainda na casa do pai, mas os dois se dão bem, então imagino que ele deve ter seu lado de homem bom. Não tenho certeza mas parece que eu o vi chorar na noite que voltamos pra casa depois do enterro da mãe. A coitadinha morreu tão nova de tuberculose, meu Deus, ninguém morre mais de tuberculose hoje em dia, mas ela morreu, e deixou Eliseu bebê. Meu bebê. Eu tão menina cuidando dele como se fosse meu filho-irmão. Tem certas coisas que só mesmo a vida, conforme ela vai passando, é que nos faz entender. Ensinei pra ele a me chamar de mamãe, escondido do pai, e ele me chamava, aquela gracinha, Mamãe, mamãe! Fui feliz aquele tempinho, fui mesmo.

Apesar de tudo que era obrigada a fazer.

Ainda quando estava em casa, bolei um sistema de apertar tanto meu pênis que nem dava pra perceber que ele existia. Como ele era minúsculo, não era difícil mesmo. Muito depois, quando vi o Edson Celulari numa peça de teatro, aquele homem lindo fazendo Calígula, imaginei que ele devia usar um sistema parecido com o meu. Tinha um momento na peça que o Celulari praticamente virava uma estátua sem pênis, puxando o dele pra trás com o mesmo efeito de quando eu puxava o meu, só que o dele devia ser muito maior, e eu ficava como extasiada com a maneira como ele conseguia! Nunca, jamais, vou me esquecer daquela imagem. Fazia tudo parecer possível! Sempre adorei teatro, show, o mundo de fantasia e sonho, e essa peça eu vi tantas vezes que perdi a conta. Gastava todo o dinheiro do meu salário nisso, meu primeiro emprego de verdade, saí de casa tão jovenzinha, quer dizer, fui expulsa mas eu ia sair mesmo de qualquer maneira, não dava pra ficar morando ali, com aquele pai italiano e bruto. E foi quando comecei a achar que tinha que haver um jeito de tirar aquele troço de mim. Mais ou menos a época que comecei a ouvir falar da cirurgia.
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A SAGRADA FAMÍLIA

Às vezes, Arturito vinha só para ficar sentado no terraço, olhando o jardim, Emília fazia um chá, uma torta de abricó, ele beliscava a torta um pouquinho e deixava o chá esfriar.

Outras vezes, mudava o ar da casa. Chegava rindo, me abraçando, caindo na piscina pelado: “Vem comigo, entra aqui, minha divina! Vó e neto pelados na piscina é genial, vem! Prometo não olhar, se você fizer questão, mas vem, vem, dona Memê dos Santos Said Aziz, coroa enxuta! Você vai ficar linda nadando pelada nessa água azul.”

E ela ria que nem criança da alegria dele. Se não fosse tão recatada e tivesse a ousadia de nadar pelada, pelada não que é vulgar, jamais ficaria pelada, mas nua, nadaria nua. Sua pele branca na água azul. Nua. Mas tem empregados demais nessa casa. Está na hora de mandar metade embora. A vantagem de morar sozinha é não precisar de uma legião de funcionários em casa, e aí sim poder nadar nua, ideia maravilhosa desse seu neto. Pelo menos à noite, na sua piscina, será que Oswaldo concordaria? Ela vai dizer que é um desejo seu, um desejo novo, e ele com certeza dirá que sim. Oswaldo faz tudo por ela.

Emengarda não é jovem, porém está mais viva do que muita gente.

O problema será a nudez que agora ela tem lá embaixo. A clareira deixada pelo desmatamento justo naquele lugar onde a mata natural era cerrada e preta. A medicina não avançou tanto quanto deveria e ela nunca ouviu falar da possibilidade de implantes dos pelos pubianos, uma lástima. Talvez naquelas clínicas da Suíça?

Ah decrepitude.

Nossos homens estão ficando velhos! Nossos homens estão no caminho da morte.

Vira e mexe, essa frase lhe volta à cabeça desde que Oswaldo teve a infeliz ideia de levá-la para ver a peça de teatro que o Nei dirigia, faz tempo isso, e ele insistiu tanto que ela foi. Só para se arrepender. É clássica demais para essas novidades cenográficas contemporâneas, e ainda era teatro amador, ela odeia teatro amador, deveria ser proibido o teatro amador, os amadores não deveriam existir, os diletantes, ela odeia diletantes em qualquer campo, em qualquer área, os diletantes só têm direito de existir se limitados a seus hobbies. Para isso existem os hobbies. Mas será que o Nei é amador? Uma peça tão exagerada como aquela, tão barroca, deve ter custado uma fortuna. E para uma apresentação só! Não deveria ter ido, mas foi, e a frase catastrófica se abateu sobre sua alma. Repetida não sei quantas vezes pela garota que ia e vinha pelo palco ora como um lamento, uma queixa, ora como um berro de dor, ora como um grito de revolta. Uma repetição insana que entrou na sua vetusta porém delicada cabeça, e não sai mais.

Avisou ao Oswaldo para jamais lhe convidar para outra peça de teatro desse estilo. Mesmo sendo do Nei.
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JONERVAL e a Igreja da Permissão Divina

A mocinha morena, de brinco prateado, argola pendurada na orelha muito da bem feita, ficou me ouvindo pregar. No final, veio me fazer a proposta.

Sincronia divina – ela disse. – Eu ter lido a reportagem e minha irmã te conhecer na praça.

Achei a mocinha meio que sabendo coisa demais, segura demais, mas com suas formulações sem titubeios ela me convenceu – não acho que foi difícil – e topei o negócio. O que teria a perder? Achei mesmo que era Deus quem mandava aquela iluminada de grande beleza pra confirmar meu caminho.

Ela propôs uma sociedade em três partes. Eu conduziria as orações e pregaria, ela administraria o negócio e teria as ideias para o culto, e a irmã cuidaria do dinheiro, se entrasse dinheiro, e teria que entrar e ser bem cuidado, caso contrário não teríamos como continuar. Ela queria que a igreja crescesse, que chegasse ao maior número de pessoas em todos os outros estados, no Brasil inteiro. Fazia questão desse ponto. A mensagem da nossa igreja tem que chegar ao Brasil inteiro, disse. E já falou “nossa”. “Nossa igreja”. Moreninha ambiciosa e muito cheia de seus cálculos. Mas achei justo. Tudo o que Deus permite que aconteça é justo. Só acho custoso isso de entrar dinheiro, ou de minha pregação chegar a tanta gente assim como ela quer, mas se Deus quiser, entra e chega.

E a danada faz tudo magnificamente bem, e depois do período de implantação meio complicado, para que tudo ficasse do jeito que ela queria, nossa igreja está deveras florescendo. A sala alugada por ela no bairro onde mora – a mocinha Rubi diz que não é de pegar muita condução, muito menos táxi, que o único táxi que gostaria de pegar já não roda mais por essas ruas, e disse isso de um tal jeito que me deu vontade de ser o dono desse táxi que ela tomaria. Muito esperta, ela – e nossa sala foi ficando cada vez mais cheia na hora da pregação. A danada tem tino.

Às vezes ela me diz que me empolgo muito e não devo falar coisas difíceis, só coisas fáceis de entender. Mas eu lhe explico que a voz de Deus é enfeitada. O povo gosta. É bom falar difícil, ainda que com moderação. Para que os fiéis saibam que quem fala através de mim é Deus, e que Deus é Deus, e Deus fala complexo.

Deus fala côncavo também, se quiser.

Então é quando eu digo que fui escalado em minha existência, e que a única finalidade foi me fazer compreender que o Deus dos Mundos me escolheu para falar em seu nome, para traduzir suas intenções e finalidades e raciocínios divinais. Que dentro de muito em pouco tempo, pela contagem santa, estaremos todos estabelecidos em nosso futuro reluzente. Todo esse sacolejo do futuro que virá, e as réplicas então serão constantes, e as tréplicas serão os filhos. Pois você nunca sabe de onde vem a morte e o futuro reside justamente em não saber, mas ser, com todos seus simulacros. E Deus é tudo isso, e muitíssimo muito mais.

Agora, o que ela gosta é da parte que falo que quando cheguei aqui eu fui ladrão. Vi suruba de inúmeras execuções. E foi então quando pensei minha cosmogonia assim, que não deveríamos condenar nenhum ato porque tudo que acontece foi permitido por Deus porque se Deus não permitisse, nenhum ato aconteceria. Eu pensava assim e, do meu modo de ver, pensava que estava certo. E Deus comprovou, me iluminando. Pois era um tempo que eu bebia todo dia, bebia até cair, não tinha casa, dormia onde caísse, no pé da sarjeta e não no pé da serra. E será então que eu gosto de lembrar desse tempo? Não. Mas fico frio. Os vulcões, os terremotos, os maremotos, o Apocalipse, os frenesis, se acontecerem, acontecerão. Isso vem do nosso raciocínio racional que o mercado é que conhece, o mercado do seu id, de seu ser interior, sua célula primal, seu território orgânico. Tudo já está escrito no grande livro de capa dura e lombada ereta de Deus. Nós somos apenas a letrinha minúscula que ele coloca onde quiser colocar. É ele quem manda, minha gente! É ele quem permite!

Essa é a parte que ela gosta: saber que é Deus que permite.
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Dalila e a roda do mundo

Dalila teve a sorte de achar uma vaga, e estaciona o carro na porta da Livraria da Vila. Entra e dá uma olhada geral. Imaginava estar atrasada mas, não; eles ainda não haviam chegado. Aproveita para dar uma olhada nas estantes. Está interessada em livros sobre São Paulo. Depois da morte de Tsuki, começou a sentir uma necessidade crucial de entender a cidade onde vive.

Um livro de fotos. “São Paulo Século XXI”, de Fausto Chermont, e um romance que viu na estante, com o título que a intrigou, “Eles eram muitos cavalos”. Luiz Ruffato, autor mineiro. Leu na orelha: “retrata um dia nas vidas de São Paulo.” Abre na epígrafe e já gosta: “Eles eram muitos cavalos/ mas ninguém mais sabe os seus nomes,/ sua pelagem, sua origem…”, versos de Cecília Meireles. Isso é uma das coisas que a encanta na literatura: juntar coisas cuja relação seria impensável antes. Os cavalos de Cecília, os habitantes de uma grande cidade.

Com os dois livros na mão, vai até o fundo, senta-se a uma das mesinhas e pede um café.

Em uma das mesas à frente, está sentado um cara que, em um lampejo bizarro, ela acha que pode ser David. Não, não é. Mais gordo e bem mais velho. David tinha só dois anos a mais do que ela, não estaria assim. Há quantos anos não o vê, vinte? Seu primeiro namorado em São Paulo, recém-chegada. Violinista. Quer dizer, estudante, mas deve ter seguido a carreira. E deve estar bem. Alma de músico ele tinha. Queria ser spalla, sentar-se à esquerda do maestro. Na grande sala com um, para ela, inesperado candelabro de onde a luz pendia direta do teto sobre eles, sofás volumosos de estofado escuro e abotoado, ele, com gestos lânguidos, estudados, tirava seu precioso violino do estojo aveludado e tocava para ela. Nu. Era a maneira que o fazia sentir a música com mais pureza, dizia, a música entrando sem interferências por todos os seus sentidos, sua pele, e achava que a impressionava muito com isso. Com seus pizzicatos e seus col legnos. E seu corpo branco amarelado, coberto de sardas e outras pintas nos ombros, cachinhos ralos no peito. Totalmente nu. Mas de óculos de lentes grossas, fundo de garrafa. Míope até a alma. E o pinto no começo a meio pau, quase sempre endurecendo no meio de seja lá o que for que estivesse tocando, até o momento para ele apoteótico, em que o violino ia para o lado e ela para o centro. O que podia se revelar meio problemático porque a vontade dela era mais de rir do que de trepar.

Dalila ainda ri quando se lembra. De como David era impostado, de como se achava genial, teorizando sobre tudo, pernóstico, chato. Seu apartamento ficava na Bela Cintra, enorme apartamento da família onde morava sozinho e onde ela ficou por algum tempo. Nem pode dizer que morou, porque não durou muito aquela história. Tinha uma grande varanda, de onde vira pela primeira vez, nos sábados de manhã, famílias de judeus ortodoxos, mãe, pai, filhos, homens de chapéu coco ou de quipás e ternos pretos, mulheres de vestidos fora de moda, uma elegância antiga, formalizada, e crianças vestidas como miniaturas de adultos. Passavam como se saídas de um álbum antigo, de um país longínquo, e a deixavam fascinada com as surpresas da cidade que ainda lhe era uma quase completa desconhecida. Naquele momento, não imaginava que moraria ali, faria sua vida ali, teria seus filhos ali.
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Erasmo do coração bravio

Erasmo chega ao sarau da Cooperifa. O bar do Batidão está lotado. A pracinha em frente cheia. De longe, já escutam um poema sendo declamado por uma voz feminina. Firme a voz. Cheia. Voz de poeta. Voz da Dona Gloria, velha porreta, cabelos prateados puxados num coque, recitando eloquente uma poesia quase épica de sua autoria. As pessoas se emocionam com ela e seus versos sobre a época da escravidão. Para muitos, uma época ainda não completamente vencida; uma época cujas dores ainda persistem na sociedade que se faz de cega.

Irina, na porta, espera por ele, e junto dela Ametista. A vizinha está diferente, agora que inventou a tal igreja com a irmã, está mais segura, menos grudenta. Sua paixão por ele parece que se arrefeceu. Deixou de ficar no escuro da varandinha da casa esperando-o chegar, e falando com cheiro de pinga, “Boa noite, Erasmo! Está frio aí?” A noite tiritando e ela, “Está frio aí?”, a maluca. “Se quiser, passo um cafezinho pra você”, a que não compreende que ele estava noutra. No tempo da Tsuki, no tempo que ele era feliz, até que às vezes conseguia ser mais simpático com a triste figura que ficava esperando por ele naquele frio. E porque a felicidade faz a pessoa melhor, ele tentava dar alguma atenção a ela, trocar duas palavras. Quando acontecia, era em sutis variações do mesmo tema:

Vá dormir, Ame, já tá tarde.

Tô sem sono.

Quando a gente deita, o sono vem. Vai.

Tô bem aqui.

Tá frio. Você vai se resfriar.

Faz mal não.

Enquanto você não entrar, não saio daqui. (Que besteira ele acabou de falar, putaquepariu!). Vai, Ame, entra.

Ah! cê tá preocupado comigo, Erasmo?!

(Merda!) – Me preocupo com quem fica num gelo desse, criatura! Inclusive comigo mesmo, já vou entrar. Você tá crescidinha, sabe da sua vida. Boa noite.

Agora a mãe contou que parece que ela está namorando alguém da igreja. Um violinista, veja só, um violinista! Louvado seja Deus, aleluia!

Aos poucos, os três vão passando pelo grupo acumulado na entrada, e Irina e Ametista conseguem um lugar pra sentar debaixo do tronco da árvore que sobe, atravessando o telhado da varanda. Tsuki achava bacana aquela grande árvore preservada, cercada pelo ladrilho do piso e pelo teto que lhe cedia espaço por onde erguer seus galhos. Inconscientemente simbólica do que se passa aqui, ela dizia. Enraizada no chão, erguendo-se para o alto e mais além. Tinha razão quando falava assim. Esse movimento da periferia que transformou o bar do Zé Batidão em centro cultural, puxado pelo Sergio Vaz e seu pessoal, foi apropriado não só pela comunidade que reúne ali, toda quarta-feira, mais de umas 300 pessoas. Hoje, a Cooperifa é apenas um dos mais de 50 saraus que acontecem pelas comunidades se apossando da literatura.

Erasmo pega uma cerveja para Irina e Ame, enche os copos das duas, depois o seu, e vai se juntar aos amigos de pé no fundo.

 

 

 

 

 

 

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Maria José Silveira nasceu em Jaraguá (GO), mora em São Paulo, mas já passou por Nova Iorque, Paris e Lima. É formada em Comunicação (Universidade de Brasília), em Antropologia (Universidad Nacional Mayor de San Marcos – Lima, Peru) e mestre em Ciências Políticas (pela Universidade de São Paulo). Em 1980, fundou a Editora Marco Zero, da qual foi diretora até 1998. Maria José ainda trabalhou como editora na Cosac&Naify.  Estreou como escritora em 2002 e já obteve vários prêmios. Começou  inventando histórias com os personagens da Emília, Narizinho e Pedrinho para a “Revista do Sítio do Picapau Amarelo”. Mas foi com seu romance de estreia, A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas, que recebeu o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Artes como escritora revelação, ganhando o mercado e o reconhecimento de seus pares. Além de escritora, ela é tradutora e mantém uma coluna no site Cronópios. E-mail: mariajosesilveira@terra.com.br

 

 




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