Para sempre


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Não sei se a história de Toinho vem de mitologias e lendas ou se consta de algum compêndio de narrativas curtas. Venha de onde vier, conste daqui ou dali, pouco me importa. Toinho é o apelido de Antônio Pereira da Silva. Nasceu num povoado do sertão. Um dos muitos filhos de um casal de lavradores. Nos primeiros anos, parecia semelhante aos irmãos e vizinhos. Arrastava-se pelo chão do casebre, confundia-se com galinhas, porcos e cabras, a catar cascas e restos de frutas, folhas de mato ralo, bolotas de barro. Quando conseguiu se erguer, andava nu pelas redondezas da casa. De vez em quando, adoecia, como os outros meninos. Por qualquer motivo, o pai lhe dava gritos; a mãe, tapas nas costas. E tudo se dava como normal, para ele, os pais, os irmãos, os vizinhos. Menos no dia em que se queixou de dores nas mãos, nos braços, nas pernas, no pescoço, na cabeça. O pai lhe deu um empurrão. Fosse atrás da cabra preta sumida desde a manhã. A mãe lhe puxou a orelha, que já doía. Deixasse de dengue e se comportasse como macho. No dia seguinte, se lamentou de estar com os dedos duros. Não dobravam como antes. Apanhou mais e choramingou. Mais uma noite, e apareceu com os lábios endurecidos, o nariz achatado, a testa recolhida para trás. A mãe se preocupou e perguntou ao marido se não valia a pena ir à cidade, falar com o doutor. Qual nada, mulher. Esse diabo não quer é trabalhar, esse preguiçoso. Vou dar uma surra nele e quero ouvir falar de beiço duro. O garoto piorou e amanheceu com coceiras por todo o corpo. Uma vizinha falou em castigo de Deus. O pai de Toinho se enfureceu. Por que Deus Nosso Senhor havera de o castigar? Disseram-se frases horríveis, pelos fundos das choças: Toinho, filho do Diabo; fruto do pecado do pai; filho da filha mais velha dele; e de tudo sabia a mãe. Após uns dias, o pequeno se pôs a cantar feito frango. As galinhas se espantavam, corriam, se arrepiavam e cocoricavam. O galo velho, vermelho e cheio de penas bonitas, se irritava, subia para as costas da primeira franguinha que encontrava, descia dela, coberto de cólera e asco, e partia no rumo do intruso, que o enfrentava e o fazia correr. As vizinhas riam do pai e da mãe do menino diferente dos outros. Esse diabinho ainda vai terminar voando. Brincar nenhum petiz se atrevia com aquele sujeitinho esquisito, que não queria mais saber de roupa ou de falar. Vai pra lá, seu bicho do mato, mistura de cachorro com urubu. Pois de fato já lhe nasciam penas pretas por todo o corpo. E parecia latir, quando tentava se comunicar com os outros animais e os seres falantes. Um grito rouco, assustador, irritante. O galo, triste e decepcionado, olhava de soslaio para ele. As galinhas o temiam, como se as ameaçassem mãos de cozinheira voraz. E corriam para o telhado e os galhos secos das pequenas árvores ou se escondiam atrás de morros e cachorros dormidos. Passado mais uns meses, no lugar dos dedos de Toinho havia garras. Ao redor dos braços, nasceram-lhe penas e assim pelo resto do corpo. Além disso, surgira na cabeça, que se achatara, no lugar dos lábios e do nariz, um bico enorme, duro, ameaçador. Assustados e medrosos, pai e mãe rezavam sem parar, benziam-se a todo instante, e quase mais nada diziam. Tremiam-lhe os beiços, voltados para o Céu. Tenha misericórdia de nós, Senhor. Os irmãos do bichinho se amofinavam pelos cantos das paredes, também calados. As vizinhas riam, falavam do passado do velho pai, pediam a proteção de Deus e se armavam de paus de ponta afiada.

Uma noite, porém, se deu o desfecho esperado por todos. O pobre Toinho se pôs a bater as asas, levantou uma poeira danada no terreiro da casinha, as palhas voaram, os animais se agitaram e correram para o mato, uma ventania – talvez um redemoinho – arrastou, para o alto da serra, tudo o que parecia leve e os seres vivos. Só então, a ave negra se pôs a voar, tranquilamente, em torno das cabanas, circunvagou os morros, até desaparecer no horizonte.

Para sempre.

 

 

 

 

 

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Nilto Maciel nasceu em Baturité, Ceará, em 1945. Formou-se em Direito pela UFC. Criou, em 76, com outros escritores, a revista O Saco. Mudou-se para Brasília em 77 e regressou a Fortaleza em 2002. Editou a revista Literatura de 1991 a 2008. Obteve primeiro lugar em alguns concursos literários nacionais e estaduais. Participa de diversas coletâneas de contos. Cultiva a prosa de ficção curta e longa e, com menor intensidade, o verso. Dedica-se também a comentar livros. Exercita-se no blog “literatura sem fronteiras”, desde 2005. E-mail:niltomaciel@uol.com.br

 




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