Para quem sofre de antiamericanismo


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Para quem sofre de antiamericanismo, a literatura não é o campo ideal para se plantar manifestos. Se tem uma coisa que os americanos literatos valorizam é a democracia da expressão globalizada. Sua curiosidade voraz sobre a literatura estrangeira, seu interesse genuíno, sem academicismos (Have you seen the last translation of Szymborska? It rocks!) associado a uma quase inesgotável fonte de recursos (apesar de reclamarem sempre— como o resto do mundo—, que a literatura sofre de falta de recursos…) gera um mercado paralelo de revistas, selos editoriais, prêmios, bolsas para tradução e de apoio a autores estrangeiros que permite até mesmo que uma revista escrita e editada em inglês tenha como publisher um indiano naturalizado americano e uma brasileira como editora-chefe. Só para citar um exemplo entre os inúmeros com que nos esbarramos nas ruas de Wasteland. Um exemplo de que posso dar testemunho pessoal, pois sou eu mesma a brasileira em questão, e a revista, a Rattapallax, com que tenho colaborado como editora há oito anos ininterruptos, mesmo morando a maior parte desse tempo no Brasil.

Pense na situação reversa: uma revista de poesia brasileira escrita em português, editada por um americano. Ãrrã. E que tal agora: esse americano entra com um pedido de bolsa para o governo brasileiro para garantir a sobrevivência da sua revista (!)  Acho que só conseguiria a grana se arranjasse um laranja brasileiro, com nome bem português, tipo Miguel Arcanjo, ou pedisse para sua mulher— modelo lindíssima que encontrou em Copacabana—quebrar mais essa. E, para engabelar o leitor, abrasileirasse o seu nome nos créditos, inventando um heterônimo, pelo menos.  Nosso nacionalismo-de-resquício-modernista é tão bem preservado da poeira do tempo que preferimos não sujar as nossas mãos mesmo sabendo que naquele baú que encontramos no sótão da casa dos nossos bisavós alguém talvez tenha guardado um valioso volume da primeira edição de Leaves of Grass.

Pois assino, com meu sotaque brasileiro, a edição da Rattapallax, uma revista americana para quem quer que se interesse, que neste ano assumiu uma postura pós-Império e se tornou uma revista online, trazendo, além de textos, arte, fotografia e vídeo editados de forma a dialogar com o conteúdo: POETRY. Então agora fica mais fácil de a gente se entender, se traduzir, levar adiante esse papo sobre políticas culturais, quem domina quem.  Meu amigo romeno me escreveu ontem, e daqui a alguns dias talvez você encontre na Rattapallax poemas de algum poeta romeno incrível, que te faça pensar em alguma coisa de outro mundo. O encontro está marcado na casa do amigo americano. E a conversa se fará em língua inglesa, obviamente, pois poucos de nós tem tempo e energia para aprender a se comunicar em romeno. Há de se pensar que há algo de generoso na postura do anfitrião, que nos alimentará e nos dará de beber. E em que moeda retribuiremos pela hospitalidade? Em poesia. Agora mesmo, enquanto digito meu texto em português no meu Mac, opto pela língua: “Português do Brasil”, e tudo certo, você vai conseguir me ler sem aquelas linhas vermelhas sublinhando as palavras, que pensam que tudo é um grande engano. Estamos em nosso território poético: a língua, qualquer que seja, e suas inúmeras possibilidades de tradução.

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Flávia Rocha nasceu em São Paulo em 1974. Jornalista, trabalhou nas redações das revistas Bravo!, República e Carta Capital, e  Casa Vogue, entre outras publicações. É autora dos livros de poemas A Casa Azul ao Meio-dia (Travessa dos Editores, 2005) e Quartos Habitáveis (Confraria do Vento, 2011). Tem mestrado em Criação Literária pela Columbia University e é uma das editoras da revista literária americana Rattapallax. Editou antologias de poesia brasileira para as revistas Rattapallax (EUA), Poetry Wales (País de Gales) e Papertiger (Austrália). Fundou, com Steven Richter, a Academia Internacional de Cinema, onde desenvolveu o curso de Criação Literária coordenado pela escritora Veronica Stigger.




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