Os sete pecados capitais


Guimarães Rosa escreve sobre a soberba

 

Esse curioso livro foi publicado no mesmo ano do Golpe de 1964 pela Editora Civilização Brasileira, com apresentação do seu editor marxista Ênio Silveira que, intitulando-a “Elogio ao pecado”, tergiversou bom tempo sobre religião para finalmente dizer que, não sendo original a ideia, já amplamente explorada por editores e cineastas, certamente europeus, dada a verniz cultivada à época, se tratava de um “divertissement” com objetivo comercial para o bem-estar das algibeiras… Ele não chega a dizer se o benefício alcançava a algibeira dos escritores, mas com certeza esperava alcançar a da Editora Civilização Brasileira, que foi uma das mais importantes naquela e na década seguinte tanto em vendas quanto por seu catálogo de resistência crítica à ditadura.

O senso de humor desse marxista encontra eco no primeiro e mais importante conto da coletânea, escrito por Guimarães Rosa, que, com o título “Os chapéus dos transeuntes”, ilustra a soberba na figura de um moribundo e sua numerosa família à sua volta, com muitos retornando à sua casa no interior do país para enterrá-lo. Ecoando o Grande sertão: veredas, Rosa brinca com seu “nonada” inicial começando com uma variação: “De antemão: – Não.” Outra das suas se dá quando, ao descrever o personagem, diz dele que, “de tão egocêntrico, ele se colecionava.” Esse senso de humor continua nos nomes dos personagens e em chistes como “…o capitalista em ócios Bayard Metternich Aristóteles, meu pai; e o tio Pelópidas Epaminondas, da indústria; tio Nestornestório, juiz; tio Noé Arquimedes Eneias, Nearqueneias ou Nó, no encurtado trivial, deputado”. E vai pelas mulheres e seus maridos com numerosas ressonâncias irônicas: “Além das tias: Amélia Isabel Carlota, solteirona insensata; Clotilde de Vaux Penthesileia, viúva do Almirante Contrapaz; Cornélia Vitória Hermengarda, com seu esposo, João Gastão, sem profissão; e Teresa Leopoldina Cristina, fugida e casada com Cícero M. Mamões, dito o ‘Regabofe’”.

No decorrer da narrativa o moribundo morre, renasce e novamente morre descrito pelo narrador seu neto que se descreve como “nós outros, os Dandrades Pereiras Serapiães, anchos em feliz fortuna e prosápia, como as uvas que num cacho se repimpam”. Eis que após a repimpagem roseana entra-se pelo pedregulho chato dos outros contos, concluindo-se que o livro se salva mesmo pela presença do primeiro texto, de Guimarães Rosa, com sua soberba escrita que se destaca diante da preguiça de Lygia Fagundes Telles, da inveja de José Condé, da avareza de Otto Lara Rezende, da luxúria burguesa de Cony, da gula seca de Figueiredo e da ira tosca de Mário Donato. Com Rosa, destaca-se a capa de Eugênio Hirsch, peculiar.

 

 

Os sete pecados capitais.
Guimarães Rosa; Otto Lara Rezende; Carlos Heitor Cony; Mário Donato; Guilherme Figueiredo; José Condé e Lygia Fagundes Telles. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964.

 

 

 

 

 

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Ademir Demarchi nasceu em Maringá e reside em Santos há 15 anos, onde trabalha como redator. Formado em Letras/Francês, com Mestrado pela Universidade Federal de Santa Catarina (1991) e Doutorado em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (1997), foi editor da revista Babel, de poesia, crítica e tradução, com seis números publicados de 2000 a 2004. É autor de Passagens – Antologia de Poetas Contemporâneos do Paraná (Imprensa Oficial do PR, 2002); Volúpias (poemas, Florianópolis: Editora Semprelo, 1990); Espelhos incessantes (“livro de artista” com poemas do autor e gravuras de Denise Helena Corá, edição dos autores, Santos: 1993; exposto no Museu da Gravura em Curitiba no mesmo ano); Janelas para lugar nenhum(poemas, com linoleogravuras de Edgar Cliquet, edição dos autores, Santos: 1993; lançamento feito em Curitiba, no Museu da Gravura, no mesmo ano). Além desses trabalhos, o autor tem também poemas, artigos e ensaios publicados nos livrosPassagens – Antologia de Poetas Contemporâneos do Paraná18 Poetas Catarinenses – A mais nova geração deles (ed. e org. Fábio Brüggemann, FCC Edições/Editora Semprelo, 1991);Os mortos na sala de jantar (Realejo Livros, 2007) e Passeios na Floresta (Editora Éblis, Porto Alegre, 2008). Publica também em periódicos como Literatura e Sociedade (São Paulo, USP);Medusa (Curitiba); Coyote (São Paulo), Oroboro (Curitiba),  Jornal do Brasil/IdéiasRascunho(Curitiba); Jornal da Biblioteca Pública do ParanáBabel (Santos); Sebastião (São Paulo); Los Rollos del Mar Muerto (Buenos Aires, Argentina) e sites,  entre eles,  as revistas eletrônicas GerminaAgulhaEl Artefacto LiterarioTantoCritério. E-mail: revistababel@uol.com.br

 




Comentários (1 comentário)

  1. Evandro von Sydow, Pode ser que o conto de Rosa seja, com efeito, o destaque do volume. Daí a afirmar que os demais são “pedregulho chato” é, no mínimo exagero. Questão de gosto apenas? Creio que não, o buraco é mais embaixo.
    10 setembro, 2018 as 22:00

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