Os dinossauros de Leonardo Gandolfi


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Minhas férias (Lumme Editor, São Paulo, 2016), de Leonardo Gandolfi, é um “livro” inusitado: não se sabe se é realmente um livro ou a propaganda de um livro por vir; aliás, não se sabe se o texto, que vem no lugar da orelha, é o livro em si ou apenas o texto de orelha de um livro que não está ali.

Sem chegar a nenhuma conclusão plausível, resta iniciar a leitura do livro, se ele o é. Nessa imprecisão toda, não é de estranhar que o livro fale do futuro buscando o passado; afinal, são os dinossauros alguns dos personagens da história.

Ficamos sabendo que, no futuro, ainda se vai ao cinema e que o narrador foi assistir “numa sessão com intervalo ao novo Parque dos Dinossauros”. Será essa nova versão do “Parque dos Dinossauros” uma continuação do filme de Steven Spielberg, de 1993? E por que o interesse por esse filme especificamente? O narrador explica: “[…] por que esse filme? A coisa foi como foi ou pelo menos como tinha de ser”. Conforme-se o leitor. Mas, diria, talvez a ficção científica combine com o futuro.

Contudo, o filme não parece ser o grande protagonista da história; é apenas uma menção: a história mesmo se passa antes e no intervalo do tal filme. Ou seria messes dois momentos o próprio filme? Em determinada ponto, o narrador afirma que aquilo que para nós leitores parecia ser um momento anterior ao filme, ou seu intervalo, é, na realidade, o filme em si: “a certa altura do filme, uma menina, mãos dadas com sua mãe, lê na pequena tabuleta presa à jaula que aquele bicho bem na sua frente tinha vivido não sei onde há não sei quantos milhões de anos atrás”. Mais uma imprecisão.

Enfim, a história, seja ela a do filme ou não, começa “na fila, mais ou menos 500 visitantes; provavelmente um sábado o dia em que se passava a história”.O narrador parece confuso; como se viu, ele não tem dados precisos, não sabe ao certo nem mesmo o dia em que se passa a “sua” história.

É como se o narrador tentasse contar um sonho; e no sonho as coisas são de fato imprecisas. A linguagem que ele usa, todavia, é “diurna”, clara e precisa, como se já estivesse desperto.

A única certeza do leitor é que ele está lendo um conto, mas essa certeza não dura muito tempo, pois um pouco mais à frente o leitor fica sabendo pelo diálogo de “[…] um casal cochichando já perto da saída. Meu amor, precisamos conversar, disse ele. Eu sei, mas não vai ser neste poema, respondeu ela”. Então o conto é poema?

Embora os gêneros literários há muito andem “deturpados”, seria talvez um alívio para o leitor ter a certeza de que leu um conto. Mas por que não poderia ser um poema?

Gandolfi leva o conceito de poesia ao extremo e, como diria Kenneth Goldsmith, “por que deveríamos fazer poemas sem correr riscos?”. Segundo Goldsmith, a poesia “precisa correr perigo, ser o mais experimental possível. Sem nada a perder, ela desperta mais paixões e emoções do que as artes visuais despertavam há meio século. Estamos no meio de um conflito”.

A poesia de Gandolfi, entre prosa e dinossauros, parece não ter medo de correr perigo.

Como definir, então, esse breve e instigante livro de poesia? Diria que se trata de um “loplop”, palavra criada por Max Ernst e analisada por Murilo Mendes, que chegou à conclusão de que “loplop é um auxiliar poderoso na classificação de fenômenos poéticos, tanto fantasmagóricos e excepcionais, como banais e cotidianos”. Parece ter razão Murilo Mendes quando lembra que a todo momento muitas coisas surgem “conduzindo a carga de loplop, o elemento poético e movimentador, sob suas variadas e inumeráveis espécies!”. Esse é o caso do livro de Gandolfi.

A propósito, muitas coisas podem ser/ou possuir “loplops”, mas poucos escritores são capazes de identificá-los ou de fazer uso deles, talvez só os façam os verdadeiros poetas.

 

 

 

 

 

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Dirce Waltrick do Amarante é professora do Curso de Artes Cênicas da UFSC, autora, entre outros, de James Joyce e seus tradutores (Iluminuras, 2015). E-mail: dwa@matrix.com.br

 




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