Ontologia e nadificação em Hilda Hilst


O entrelaçamento: poesia e mística, ontologia e nadificação em Hilda Hilst

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[Texto lido no Teatro Sérgio Cardoso em 22 de maio de 2013  dentro dos Encontros Rútilo Nada na temporada do espetáculo homônimo livremente inspirado na obra de Hilda Hilst, dirigido por Daniel Fagundes com Donizeti Mazonas e Wellington Duartes]

 

esta minha fala  vai se dividir em duas partes na primeira falo de um modo um pouco elíptico sobre o entrelaçamento na obra de Hilda Hilst entre o pensamento filosófico mais afinado com a poesia  e com o discurso poético dos místicos e na segunda parte faço algumas perguntas surgidas a partir de duas décadas de leitura da obra de Hilda Hilst, as perguntas  segundo uma amiga minha poeta são uma forma superior de abertura para o diálogo e uma função nobre da crítica que permite que o Outro possa escutar a si mesmo e ao seu interlocutor e uma luz se faz sempre que um encontro é possível principalmente um encontro mediado por uma pergunta, se não somos uma pergunta como afirmava Clarice Lispector, como poderemos abrir o espaço para o ‘ Eu que pode ser Outro’ ?

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É óbvio que a poesia  e a prosa de Hilda Hilst permitem uma interpretação alegórica, simbólica e mística, mas quando se trata do símbolo a via de acesso é a interpenetração que  começa com  a visão interior daquilo que se lê, é correto dizer que vivemos em uma floresta de símbolos ofuscada pela idéia  da metrópole,  que se tornou há tempos uma simples alegoria funcional que certamente fracassa em sua tentativa de criar condições para que  o Ser floresça, discordo de certos pensadores que vêem na natureza o não-ser e nisto estou afinado com a obra de Hilda que como Lezama Lima via na natureza a sobrenatureza e no corpo uma extensão dessa sobrenatureza, portanto aqui o natural é o sobrenatural e quem procura uma aprofundamento no mundo das visões interiores que são um acesso consciente para o conhecimento que reside nos símbolos, certamente abandonará as cidades grandes e irá procurar a vida  do campo, nisso Hilda Hilst concorda com Heidegger, um pensador muito afinado com as fontes  antigas das tentativas de aproximar o pensamento do viver imediato e não da idéia do viver ou seja afinado com uma ontologia, como diz Wilhelm Weischedel para Heidegger ‘o pensamento não deve meramente permanecer em si mesmo, mas tem de intervir na existência, particular e pública, transformando-a (…..) Para esclarecer o entendimento do ser, Heidegger, em análises minuciosas, fala do homem como o lugar do entendimento do ser. Não se baseia em um conceito abstrato do homem, mas no homem concreto, empírico e em seu auto-entendimento e auto-experiência. Também não considera o homem de um ponto de vista fora dele mesmo,por exemplo de Deus ou de um espírito absoluto, mas tal como ele aparece, em sua própria perspectiva, para si mesmo. Sob esse ponto de vista, Heidegger mostra que o homem não está aí como uma pedra ou uma árvore, mas tal como ele vive nas e das possibilidades no sentido das quais ele se projeta (….) fala de seu ‘ ser no mundo’ e de seu ‘ ser com outros’ em uma concepção em que o homem possui em relação a todos os outros entes a prerrogativa de que o mundo, sem a sua intervenção permaneceria fechado,abre-se por meio dele, sendo visto, sentido e reconhecido”.

Ora estas são para mim as bases fundadoras de uma mística que tem em seu centro o homem e não o sublime, mas antes que se manifeste o mundo antes o nadifica, nisso discordo de Heidegger, o nada não nadifica porque o nada é uma impossibilidade, o mundo começa por nadificar, e aqui estamos no primeiro entrelaçamento que é apontado pela obra de Hilda Hilst em ‘Com meus olhos de cão’  do qual  cito para ilustrar o que digo esse trecho da página 36 : ‘ Largar a casa,Amanda, filho, universidade. Ter nada.Perto de um muro encostar a carcaça e aí vêm alguém: ta com fome, moço? Digo que sim e vem o pedaço de pão ( sem manteiga) e o prato de comida. Ou não vêm? Ou vêm aquela frase: Parece moço ainda, não pode trabalhar? Estertoro, digo que não, idiota, não vou trabalhar nunca mais, Porque senti naquele instante aquilo e compreendi  naquele instante aquilo, ouviu? Chamam a polícia, será? Só porque me encosto no muro de alguém e estertoro? O da Cruz , por muito menos escorraçaram-no. Só para limpar o suor. Ganhar fôlego. Senti o não sentível, compreendi o não equacionável.” É nítido nesse trecho o que nadifica, como a pergunta abre uma porta para o diálogo com o Outro desconhecido seja ele o leitor ou o passante que são praticamente símiles, e como o mundo se manifesta a partir de uma visão que se  torna sensação que é contornada e não equacionada como coisa mas como luz  que ilumina o interior ao revelar os processos de nadificação do ser, a energia da recusa é a gênese de uma abertura para a pergunta também como critica que instaura logo  depois de seu enunciado uma possibilidade de agir na direção do mundo jamais pronunciado, jamais sentido, jamais equacionado  e podemos dizer que existe sim nesta obra e em outras como kadosh, uma mística da energia da recusa como   o elogio de uma primeira iluminação derrisória. Os moradores de rua na obra dela estão dentro dessa mística da energia da recusa que conhece o que é recusado e não apenas o nega, o nega e intervêm nele ao mesmo tempo, como figuras que não são vistas, jamais vistas, perguntas vivas jamais respondidas, estes seres que ao recusar a negação penetram naquilo que ela simboliza e sentem dentro de si a visão interior do que o homem é e não do que ele pode ser, cancelando o devir e dando uma chance do mundo se manifestar como uma sobrenatureza natural, Hilda tomou em sua obra o delicado e preciso cuidado de não mistificar , nem romantizar a derrisão, mas apontar a queda na consciência da nadificação promovida pela negação da morte, de Eros e do corpo como via de imanência e Amós Kéres protagonista de Com meus olhos de cão é não apenas  um duplo da Senhora D. de A Obscena Senhora D. é também um ente nadificado que vive como nós na iminência, nas perigosas bordas do ser, que  um escritor muito caro para Hilda, Guimarães Rosa  em seu conto ‘ terceira margem do rio’ se referindo não apenas a um rio identificado com a temporalidade, mas com os processos de ‘ colocar à margem’ a humanidade ( pela via do policiamento e opaciamento da infância), o mundo ( pela via do esquematismo que tenta equacionar a natureza em uma funcionalidade abstrata e podemos dizer também econômica porque o capitalismo nada mais é do que um simulacro dos modos da natureza que precisa destruir o original  para se tornar absoluto como uma transcendência negativa do natural) e Rosa aponta uma terceira via por onde o ser pode navegar ( subir e descer infinitamente fora do tempo cronológico) que é a via da ontologia poética, este rio é obviamente um símbolo  onde o personagem entra, a terceira margem do rio pode ser uma via poética de imanência por onde caminham e onde se dissolvem e silenciam praticamente todos os personagens dos romances e novelas de Hilda Hilst em suas crises místicas , eles entram em um corpo-a-corpo com o corpo do mundo que em um dado momento se confunde com o corpo do DEUS ou seja com a figura que é  erroneamente usada como pretexto para  nadificar, nivelar ou ocultar em sua impensável sombra inexistente todos os símbolos que vieram  de séculos e séculos de tentativa de entendimento do mundo, a mistificação do Absoluto é uma porta fechada para  a possibilidade de manifestação da transcendência.

Os antigos criaram símbolos que jamais negaram o corpo e jamais negaram o mundo como um lugar sobrenatural ou onde o natural é uma camada, um véu do sobrenatural,  a Alma nos textos de Hilda Hilst é uma recuperação desta visão dos antigos e  está entranhada no corpo e não é uma estranha abstrata distante anos-luz do momento em que vivemos, momento que precisa ser problematizado pela energia da recusa que é iniciada pela pergunta, a pergunta  é muito mais importante que a oração, que o mantra, que a prece, a pergunta sendo uma via de acesso ao silêncio movente  que se instaura no corpo ao lado de uma angústia e não dentro dela, nas bordas de um abismo e não dentro dele. Kadosh foi criado por Hilda Hilst como um duplo de Hamlet, os duplos como sabe quem lê a obra dela, são o modo como o ser se manifesta,  o ser é duplo mas não dicotômico, eis aí um paradoxo do ser… Kadosh e Hamlet são movidos por perguntas, são seres-pergunta, a princípio o livro  Kadosh se chamava Qadós e antes de morrer a autora por sua livre e expressa vontade pediu para mudar para Kadosh, “a palavra QADÓS vêm do Hebraico que no seu significado original quer dizer “tudo aquilo ou aquele que é separado por Elohins para um culto, serviço ou sacrifício”.  A palavra QADOSH, também vem do hebraico e  significa “santo”. Então quais os atributos que diferenciam estas palavras QADÓS e KADOSH?  Qadós é um adjetivo que está relacionado à tudo aquilo que o PRÓPRIO ELOHINS  separou ou seja , quer dizer que, fomos separados de tudo aquilo que não foi chamado à existência por ELOHINS e que por isso a  nossa verdadeira identidade é  A SANTIFICAÇÃO e Qadós significa que fomos criados para o sacrifício e extrema nadificação da morte por Elohins” como vemos,a nada simples substituição de uma palavra no titulo por outra, atesta e aponta os sinais do que para Hilda Hilst eram as bases de sua mística, a principio somos seres separados do mundo e aqui Elohins ou o Absoluto é identificado com ‘O mundo’ que nadifica,então em Qadós somos seres criados para sermos sacrificados e depois em um segundo momento em Kadosh que se identifica com o ‘ Mundo como revelação’  somos seres destinados a santificação  que é justamente a Casa no meio da floresta de símbolos, a casa que está em oposição à cidade e sua nadificação que não nos nadifica completamente porque  somos capazes da pergunta e do enigma chamado vida do corpo e a partir dela e da santificação laica que é ivida por alguns personagens da obra de Hilda Hilst, podemos eleger a palavra como algo  que toca  no sagrado de tudo o que é natural no corpo, a merda, o cú, a buceta, a pica que possuem dentro do mundo em Kadosh e não mais em Qadós, o mesmo status das Estrelas, Galáxias, Mares e  Oceanos, o mesmo do Sol, a consciência disso de um modo misterioso aponta um limite para a nadificação.  Dito isto e com o que realmente ilumina dentro do não dito e do sempre por nós silenciado, vamos para as perguntas, as segunda parte desse entrelaçamento:

Por que e como Tu não te moves de ti?  Onde fica em nós, dentro de nós  o lugar onde o obsceno e o sagrado são uma só coisa ? Como a lucidez se tornou a pele da nadificação , a nadificação e disso a obra de Hilda dá testemunho não consegue possuir o corpo inteiro, apenas forma uma estrutura, um envoltório em volta do corpo, uma pele artificial que ofusca as visões  do mundo em seu gênesis contínuo , em seu paraíso sempre começando e sempre sendo  ofuscado pela névoa , e no meio dela entrevemos apenas a árvore da terminologia mas para além da árvore da terminologia, o zumbido do eu se torna cada vez mais abstrato e o poema cada vez mais nítido , se o poeta voar um pouco mais alto se torna um místico, se o místico em sua compaixão descer um pouco , em nossa direção se tornará um poeta, nestes dois casos o zumbido do eu é substituído pela música da vida, hilda hilst em sua trajetória realiza este dois movimentos  ao mesmo tempo, e a vida aparece em sua potência hierogâmica, de matrimônio sagrado entre o corpo e a Alma imortal que como todos nós podemos intuir era como os antigos chamavam tudo e todas as coisas.

Para encerrar gostaria de ler um texto de Jean Luc Nancy traduzido pelo também filósofo Nilson Oliveira, esse texto que lerei agora seria como aquelas canções que tocam no fim do filme, permitam-me esta licença poética no meio de tantas liberdades que tomei aqui no ‘entrelaçamento’, prestem atenção em como o tema do texto de Nancy toca em uma certa ética muito cara para nossa querida Hilda Hilst. Vamos então para a canção chamada:


FILOSOFIA, LITERATURA: DEMANDA
JEAN-LUC NANCY

Cada uma pede a verdade. Cada uma pede também a verdade da outra, de duas maneiras: cada uma interroga a outra sobre a sua verdade, cada uma detém a verdade da outra.

A verdade: a coisa mesma, o ser ou o outro, o existente, o aparecer, o sentido. Cada uma pede tudo isso junto: pede que tudo isso seja apresentado como tal.

Mas cada uma entende diferentemente esse «como tal ». Filosofia quer que a coisa como coisa seja coisa que por si se indique, se designe e ao mesmo tempo retire seu ser-coisa aquém de toda significação. Também a coisa como tal é aqui coisa alguma: coisa da coisidade de todas as coisas, nada. Do mesmo modo o sentido como tal é o sentido que se faz conhecer enquanto sentido – por exemplo, não uma impressão luminosa, mas uma impressão tal que ela se clareie a si mesma como « impressão luminosa ». E, por esse ato, ela se obscurece. Não estamos mais ocupados em ver, mas em ver a visão. O sentido em geral será sentido verdadeiro lá onde ele poderá mostrar que ele é o sentido, e assim cessar de reenviar a outro, outros: o que, no entanto, é o seu ser mesmo de sentido. Também a verdade é aqui interrupção do sentido.

Literatura entende « como tal » enquanto comparação, figura, imagem, volta de apresentação. Por exemplo: vejamos um homem como «Leopold Bloom ». Ele é igual a esse homem, é composto por seus traços. E, antes de tudo, por seu nome. Depois por sua história, pois não há nome sem história. Então Leopold Bloom mostra o homem como tal, quer dizer, como Leopold Bloom, quer dizer, como o homem que tem um nome e uma história, a sua história. Nessa conta, a operação não pode parar: a verdade do homem está em Bloom, cuja verdade está no homem cuja verdade está no nome e na história de Bloom. Aqui a verdade é a impossibilidade de interromper o sentido.

No entanto, é o inverso que vemos da maneira mais chocante: Filosofia não termina de prosseguir, continuar, retomar, tirar as consequências; não pode jamais parar (mesmo e, sobretudo, quando é « o fim da filosofia »). Literatura, ao contrário, interrompe: corta o relato [récit] em alguma parte, sempre arbitrariamente, seja no início ou no fim.

Filosofia pede incessantemente que a verdade se cumpra. Literatura pede que a verdade prossiga. Mas cada uma pede a outra, pois o cumprimento da primeira seria o relato [récit] integral da segunda e o prosseguimento infinito da segunda seria o cumprimento da primeira.

Se isso tem lugar, não há mais pedido. Então não se fala de literatura e de filosofia: fala-se de sabedoria e de mito. É um outro mundo, um mundo ao inverso do mundo do pedido de verdade.

Sabedoria cumpre dizendo – por exemplo, dizendo « faça isto, não faça isso ». E para isso ela afirma e ordena, não pede nada. Nem mesmo ser reconhecida como sábia, pois ela também diz « não creia que a Sabedoria seja sábia: cabe a você sê-lo ».

Mito dá o relato [récit] inteiro, desde o início até a mim (por exemplo, Mr. Bloom). Ao mesmo tempo não há nada a acrescentar, nem no antes nem no depois, e o relato [récit] é interminável pois ele não cessa de se recitar [réciter]. Nada a pedir aí também.

Filosofia e Literatura são Sabedoria e Mitos entrados em pedido. Portanto, tendo-se eles mesmos se perdido um e o outro ou então perdido um ao outro. Uma perda – ou então um desdobramento.

Sabedoria desdobra até o fim a sua verdade segundo a qual não há de modo algum nem sabedoria nem via. Ela inaugura a via que não leva a lugar nenhum, mas que sempre se pede novamente como via: « método ».

Mito desdobra até o fim o interminável de seu relato [récit] e sua verdade segundo a qual, bem longe de se terminar na interminável recitação, ele se intermina na terminação de cada relato [récit]. Uma vez contada, a história de Ulisses se abre novamente pelo seu fim. Haverá novas errâncias.

Errância e método, método de errância, errância metódica, via que não é traçada, mas que é o traço ele mesmo de um passo em movimento de avançar, em movimento de passar, apenas em movimento de despertar para si mesmo a possibilidade de uma direção, de um destino, de um desejo.

Apenas fazendo conhecer seu desejo, que ele mesmo se inventa a cada passo, sendo, no entanto, apenas o desejo do passo ele mesmo.

Pedido de passagem: eu gostaria de ir por aí, em direção àquilo que está do outro lado daquele onde me encontro. Gostaria de sair daqui e que lá longe se tornasse aqui para mim, de onde eu ainda partiria. Gostaria de passar o rio, a montanha, o mar. Gostaria de passar a mim mesmo. Gostaria de me passar sem mim.

Peço isso polidamente, sem violência, mas não se enganem com isso: « eu gostaria » significa « eu quero », é a vontade mesma. É vontade de vontade: pedido de eternidade, eterno retorno do mesmo passo cujo rastro fugaz é a atestação disto: que há lá alguém que passa.

Pedimos apenas isso. Esqueçamos « filosofia, literatura, mito, sabedoria », esqueçamos saberes e crenças. Há apenas esse pedido: eu quero passar. Não quero ser, nem conhecer, mas passar e me sentir passar. Ou você – é igual.

Passar – o limite, forçosamente. Passar o limite do interrompido e do ininterrupto. Nem acabamento, nem inacabamento. Nem conclusão, nem suspensão. Mas a passagem que se pede.

 

Um poema do meu novo livro Retornaremos das cinzas para sonhar com o silêncio ( Ed. Patuá)

 

 

Cosmogramas- Autobiografia Impessoal

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( Primeiro Movimento)

 

Seus olhos

serão sempre

o paraíso aberto

respirando sonhos

seu rosto desaparece

e depois volta

entra no dia

como esse silêncio

escrevendo seu nome:

seus olhos despertando

para a visão dos oráculos

cada vez mais interiores

lutando contra a aflição

dos espaços em branco

se dissolvendo

na matéria escura

(O transe da terra)

Aqui a maior

concentração de ruído

é em volta

da biblioteca,

a cidade e o silêncio

não tem vez,

como em uma peça do Clube Noir

a escuridão é o corpo do silêncio

fora dela, mortos em sonho,

a vida é um intervalo

que não sabemos aproveitar,

pensamos dentro de uma conexão constante

que se torna com o tempo abstrata.
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( Segundo Movimento)

 

Acordar exigirá

uma codificação

do estranhamento,

a linguagem entrará

devagar em nosso campo,

Ela não é como a luz

embora igualmente

efêmera e constante,

como esse surto cósmico das manhãs

ela sequestra o ser

pedindo como resgate

o ausente sentido

para um silêncio

tão antigo.

Sendo assim

nunca termina

‘o acordar’

Porque a própria vida

não contém

suficiente espaço para

você

despertar.
.

( Terceiro Movimento)

 

O poema pré-existente

em camadas de tempo

o tempo

consumindo apenas a crisálida

deixando intacta a camada das sensações exteriores

onde você jamais foi atingido

continuam as ondas

do Sol de milhões de corpos

formando uma única vida

da Alma

onde o próprio Sol é o óvulo

enviando sinais

chamas de uma força metafísica

maior do que o tempo
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( Quarto Movimento)

 

Muitos poemas poderiam ser extraídos da Mínima

Moralia

ou do silencioso amanhecer

‘Vá tomar no seu cu’

diz a memória para o Ser

é só mais um louco gritando no ponto de ônibus

seu Maesltrom

Não, este poema não contorna uma nitidez estratégica

até tocar o dia do seu nascimento

tão obscuro límpido quanto o dia da sua morte

‘Esquecimento é libertação’

diz a História

usando uma máscara de ausência

segurando a cabeça do leão

‘Me converto em impossível nada’

enquanto ouvimos Extra data

do Sonic Youth no celular

é o som do espírito saindo, arranhando o crânio,

as sinapses etéreas fugindo para a copa das árvores,

‘Mas eu deixo um rastro harmônico, seus merdas’

canta o próprio esquecimento

de dentro da explosão solar,

muitos poemas poderiam ser retirados

de dentro desse silêncio

que se materializa como luz

dentro do ruído que somos,

mas não há tempo…
.

( Finale)

 

Os aspectos cosmológicos e cosmogônicos estão na

primeira camada chamada de Infância com seus

olhos de cão, de boi ou de cavalo e os aspectos lúdicos na segunda camada. Crianças grandes penetram

nesse jardim, crianças pequenas jamais saíram dele.

Aqui sim, temos uma metafísica da poesia ampliada

até o tempo-eternidade, como uma materialização

das melhores composições de Satie dentro do tempo

sintético de Webern no espaço de uma rua ou de um

dia. Na adolescência ou estado de perambulação interior temos a exploração onírica do acaso, algo que

nos aproxima de uma síntese entre o fogo natural e o

sobrenatural, em outra temporalidade que exige um

silêncio de observação, que só teremos na velhice e

que deveríamos exercitar depois, durante o resto de

nossas mortes cronológicas ou solturas internas que

só os que se afastam muito do barulho do mundo

serão capazes de anular sendo ‘Ninguém’, principalmente do afastamento do mundo coberto de códigos

de linguagem sempre se alterando sem significar jamais algo verdadeiro como um segredo. Estes leitores

raros do véu não perdem o contato com o sentido

mais simples e acessível desse sentimento sem nome

que jamais teve qualquer relação com a paixão, com

o dinheiro ou com a palavra e serão capazes de tocar na árvore da transformação destes códigos que

fantasmagorizam o mundo em um abraço absoluto

e através desse abraço na árvore do conhecimento

do real, chegar a uma amálgama de silêncios onde

desenho e símbolo evocam a única alma que existe e

é tudo e todas as coisas.

 

 

 

 

 

 

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Marcelo Ariel nasceu em Santos, 1968. Poeta, performer e dramaturgo. Autor dos livros Tratado dos anjos afogados (Letraselvagem 2008), Conversas com Emily Dickinson e outros poemas (Multifoco, 2010), O Céu no fundo do mart (Dulcinéia Catadora, 2009), A segunda morte de Herberto Helder (21 GRAMAS, 2011), entre outros. E-mail: marcelo.ariel91@gmail.com

 




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