Onda dentro de ondas


por Editoria da Musa

O enigma das ondas é o sétimo livro de poemas de Rodrigo Garcia Lopes, um dos mais instigantes e inquietos poetas brasileiros que vem, desde os anos 80, construindo uma sólida carreira literária, com vários títulos publicados por esta casa editorial.

Rodrigo Garcia Lopes traduziu Epigramas, de Marcial, O navegante (anônimo anglo-saxão), Rimbaud, Whitman, Apollinaire, tendo apresentado as obras de Laura Riding e Sylvia Plath ao leitor brasileiro. Também lançou um livro de entrevistas com personalidades da arte e da cultura norte-americanas, um romance policial, dois álbuns de canções e coeditou por doze anos a revista Coyote, publicando poetas e prosadores brasileiros e do exterior.

O enigma das ondas revela um poeta em plena maturidade, que reacende a força e a relevância da poesia, mostrando que ela pode explorar em profundidade, e em registros múltiplos, a realidade contemporânea e a existência. Em 91 peças, o volume traz poemas líricos, políticos, críticos, satíricos e reflexivos.

Seus poemas enfrentam o mundo esteticamente e exibem uma urgência vital em nossos tempos turbulentos, como em “Selvageria”: “No fim o desembargador era o chefão de uma milícia assassina / E o incêndio na favela celebrado com fuzis e buzinas. / Mais cadáveres encontrados na lama da barragem / E o coronel torturador ganha mais uma homenagem […]”. Ou momentos líricos como “Na praia, junho”: […] os olhos bordejando as ilhas distantes / antes mastigaram o nevoeiro / nossos corpos satisfeitos e ainda quentes / lendo as pistas que os detetives noturnos não seguiram / os pés imprimindo em sua passagem / a sensação de uma vida acontecendo / limpa como a areia após a onda”.

Poesia como investigação, aventura da palavra, forma de conhecimento do mundo.

Pela abrangência de questões, pelo esmero estético, O enigma das ondas é um momento alto da poesia brasileira recente.

Samuel Leon

***

Breve história da solidão

No escuro de uma caverna,
nas paredes de Pompeia,

na superfície de um papiro,
na solidão de uma tela,

num grafite imprevisto
ou na imensidão sidérea,

esses escritos, frágeis rabiscos,
querem dizer apenas isto:

existo.


Adivinha

tão imenso
que se ficar calado
ainda o escuto

tão frágil
que se disser seu nome
irá quebrá-lo


Oniros          

Em algum lugar ao norte de Medúsia,                     
onde não há música, exilada inocência                     
na sólida paisagem que a visão                        
hipnotiza sob a ponte: a farsa                                   
de nosso futuro. Com olhos lacrimejantes,         
trovões trincam o céu de nossos afetos,
tremem a catedral de sentidos. Um corte.
Fomos contratados para um trabalho
Insondável: instalar estas cercas elétricas.      
Agora conversamos entre dispositivos
em algum resort de Bornéu ou da Normandia
com a senha Albert a tiracolo.
O estranho veterano se detém
diante da vitrine
de uma praia de diamantes.
Há uma nave no céu.
Ecos de explosões na Galeria Steinway,
Aroma de algas vermelhas e tóxicas,
câmeras de monitoramento, sabotagem.
Marionetes macabras sorriem enquanto afundam
na areia movediça dos dias.
Há um franchising de sonho aberto 24 horas
e uma chance apenas de tocar e tatear
a Terra para sempre prometida,
antes que a paisagem se estilhace
e vire um hotel feito tão só de ruínas
e habitado só por anjos.


***

Que língua fala Rodrigo Garcia Lopes? Aposto que nem ele mesmo sabe, do contrário não seria poeta. Mas seu enigma nos toca. Mais que isso, especialmente em tempos de pandemonium e pandemia, seu enigma em forma de onda nos leva a realizar o melhor aéreo reverso da sensibilidade. Com essa proeza, trocamos o confinamento pelo mundo lá fora, que nos espera em tormenta, como pressentido pelos personagens de Hopper, ou em epifania epigramática, como na língua de Marcial. Palavras, poemas e capítulos são ondas dentro de ondas. Mas o livro como um todo não é um mar: é ainda outra onda, densa e leve como as melhores ondas costumam ser. Janelas das palavras abertas, atingimos o lábio dessa onda e voamos para descobrir que a poesia em que vivemos está tomada de realidade. Uma onda é um monumento momentâneo. Mas O enigma das ondas durará.

Vitor Ramil

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RODRIGO GARCIA LOPES (Londrina, PR, 1965) é poeta, romancista, tradutor, compositor, ensaísta e jornalista. Publicou os livros de poesia Solarium (1994), Visibilia (1996), Polivox (2002), Nômada (2004), Estúdio realidade (2013), Experiências extraordinárias  (2015) e O enigma das ondas (2020). Foto by Elisabete Ghisleni.

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