Olhos de barro


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ESPELHOS EM SILÊNCIO

Na rua de ontem não há amparo nem homens. O destino tem janelas abertas, mas estava distraído e não percebi a sua face. Ele se deteve por um instante, o tempo necessário para abandonar tudo, até o próprio nome. O passado não precisa de nomes. É um quase-deus a arrastar todas as idades. Não consigo tocá-lo. Um passo, outro passo. A infância, as lágrimas e as paredes têm olhos infinitos. A janela está diferente. Vozes. Uma estrela entra no quarto, destrói o espelho. Seu ar noturno descobre o mistério: era eu pequeno a odiar a noite e seu eterno desfile de cordeiros a conduzir-me pela casa. O silêncio abre seu peito. Não há espelhos quando as crianças se perdem.

 


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A CABEÇA DA SERPENTE
Saí de casa mais cedo. A lua começa a cantar e cai dentro de um copo. Vermelho. A cor me faz ficar parado. A rua não tem nome. Orientaram-me não ficar parado, mas o corpo não responde ― tem o ritmo de uma fotografia ― Devagar. Dizem: o passado é um colecionador de luzes. Ninguém me espera.

 

Vermelho. Sinto a noite afundar no silêncio do semáforo. Olho pelo vidro. Uma sombra vem em minha direção, tento decifrá-la O passado é Outro a caminhar ao meu lado, se instala nas paredes do meu corpo. A parede não tem janelas. Uma tempestade com flores entre os dentes. Não sei das pétalas nem da boca que as carrega. Deve ser minha infância, ou apenas o medo: o ninho de punhos fechados.

 

Espere.

 

Ainda vermelho. Deve ser algum defeito mecânico. ―Estou aqui. Devagar. Olhe para mim. Não durma. ― Não consigo decifrar sombras.

 

Um menino bate na janela. Quer me mostrar ou vender algo. Faz pequenos movimentos com as mãos. Sorri.

― Construí um deus, quer ver? Fiz em sete dias.

Está tudo vermelho. Agora já aparece um verde, um amarelo. Preciso de descanso.

― Quer um pedaço da minha sombra? É para manter a pele dele aquecida. Isso, um pouco de vermelho, um pouco de barro.

― Não tem mais?

― Esqueci de terminar os olhos.

 

Ninguém me espera.

 

 

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ANTES NÃO HAVIA ESTE FRIO

Finalmente, encontrei minha sombra. Um pouco de água. A casa está diferente. As luzes não sabem o motivo de estarem acordadas. Sinto o frio das casas vizinhas. São casas ou barcos à espera do próximo dilúvio? Nem calor nem frio. Esse líquido faz os pés doerem. A sombra faz um barulho. Água. Sou capaz de sentir sua respiração ― o Outro a atravessar a parede.

 

― Estou à sua espera.

― Cuidado, sou o voo subterrâneo. Procure não demonstrar medo. Os olhos são o corpo do Outro. Sinta o milagre. Somos pó.

― Estou à sua espera.

― Quatro dias, tudo se encaixa, sinta a diferença nas suas chagas.

― A água.

― Pendure-se em minhas asas! As águas não sabem o motivo de existir vítimas ou milagres.

― Vamos, temos que encontrar os Outros. Essa parede nunca esteve aqui.

 

 

***

 

 

A Editora Patuá lança o livro Olhos de Barro, de José Geraldo Neres, conta com apresentação de Maria Lúcia Dal Farra, comentários de Moacir Amâncio e Luiz Ruffato.

Olhos de Barro recebeu “Menção Especial” no 3º Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura, (ficção – 2010), é o terceiro livro do poeta, ficcionista e produtor cultural paulista José Geraldo Neres
Informações técnicas:
Título: OLHOS DE BARRO
AUTOR: José Geraldo Neres
ILUSTRAÇÕES: Leonardo Mathias
GÊNERO: Literatura brasileira/conto/poesia
ISBN: 978-85-64308-44-2
PÁGINAS: 112
FORMATO: 15 X 20 cm

Editora Patuá, São Paulo, 2012

Compra via internet: http://www.editorapatua.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=112&Itemid=2




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