O voo


O voo e os voos de O pássaro zero, de Djami Sezostre

 

O rumor de uma língua a
Mais estranha continua sim o seu rumor

 (O pássaro zero, p. 43)

 

 

Toda vez que leio um novo livro de Djami Sezostre, não apenas me imagino, como me aplico em dizer, em começar a dizer outras coisas diferentes de que a persistência do pensamento de Deleuze para pensar o pensamento poético, a produção poética de Djami Sezostre, acerca do que ele faz, sempre, como uma obsessão, conscientemente praticada, com o que me parece mais vital à sua produção poética – arrastar a língua para fora de seus sulcos costumeiros, vale, sem dúvida alguma dizer, procedendo da mesma forma com a linguagem poética canonizada – no sentido de criar com esses movimentos desterritorializados e desterriotorializantes uma nova linguagem poética. O rumor e os rumores de uma língua estranha que continua sendo o rumor da própria língua.

E eis, pois, que em O pássaro zero (Editora Urutau/2020) aí está a repetir essa obsessão consciente, essa dedicação, talvez pudesse dizer, consagração, de sua poética que se constitui em sua essência – a criação de uma nova linguagem poética no interior da própria linguagem poética. E me valho de uma imagem que pode ser apreendida desse modo especial de fazer poesia – a cada voo é um novo pássaro criado a inaugurar sempre novos voos, de um mesmo voar. A exigir que a historiografia literária ouça o rumor dessa linguagem que ecoa cada vez mais nítida e veemente em seu interior.

A linguagem poética levada ao delírio de ser, de criar, inexoravelmente, novos signos poéticos da multiplicidade, não apenas do voo, dos voos, mas do voar.

“Pássaro” (p. 16, 22); “Pázzaros (p. 30); “Pájjaros” (p. 30); “Páççaro” (p. 46); “Pássaras” (p. 54); “Pázsaro” (p. 75) e “Passaru” (p. 124). Ou seja, nota-se, claramente, que a multiplicidade de voos multiplica o próprio pássaro a voar, sobretudo, se pensamos numa espécie de arremate desses voos, no menino que não apenas olha, mas é o criador desse pássaro múltiplo a voar, como o pássaro é a metamorfose desse menino, em incessante estado de criação, desassossegado e a espalhar a linguagem e pela linguagem poética sua inquietação, que é a essência de sua criação – “O menino era mesmo a metamorfose do pássaro” (p. 117).

Uma repetição que, de tanto se repetir, cria um novo voo, uma nova forma de voar – a especificidade da linguagem poética de Djami Sezostre, arrojada enquanto criação poética dentro da linguagem poética brasileira, da linguagem poética de língua portuguesa. Uma poética que mantém, ao longo de todos os trabalhos realizados, esse arrojo linguístico, poético, cultural e histórico. Sem pejo das nódoas e sombras de uma canonicidade, de uma tradição poética e crítica canonizada, aliás, “Djami Sezostre é uma ficção na poesia contemporânea brasileira” (p. 113).

Essa é a força transformadora, incômoda de sua poesia, de toda sua criação poética, enquanto homem histórico e enquanto poeta consciente do que deseja, e do como, ainda que ficção, marca sua trajetória pela própria historiografia literária, embora, minimamente, ouvida.

Há uma singularidade em sua poesia que está para a própria singularidade do pássaro em múltiplos desdobramentos de seu voo, de seus voos, do voar e dos efeitos desse voar para a linguagem poética e para o cenário literário, histórico e cultural.

A metáfora, e também a metamorfose, do pássaro são de singular relevância ao projeto poético de O pássaro zero. Basta pensarmos, para além da própria multiplicidade do voo, nessa transformação do pássaro, espécie, a um só tempo, a um só voo, de dilaceração e urdidura, criação de novo pássaro, de novos pássaros a cada voo. Um exercício poético, extremamente, sofisticado, do ponto de vista linguístico-poético, que se faz pelo que Deleuze chama de “levar a língua ao delírio” (p. 7). Ao delírio de conceber novos voos, ou seja, novos signos, de abrir o corpo da linguagem poética, rasgar nele a plumagem antiga, o pulsar que quase dispensaria qualquer auferir durante os voos, sempre de plano definido. Inaugurar um novo fluxo que se altera pelos cortes inusitados da palavra a se derramar, por vezes assígnica, fora das concepções arraigadas a determinados significados e convenções. Aglutinar partes desses cortes em partes diversas dos encaixes costumeiros, forjar, criar novo signo poético. Esticar o verso até que ele, antes de se arrebentar na página limitada, não represente, mas seja o próprio deslimite do voar: “E cooooooomooooooo pooooooode ele voooooooar/ Se voooooooar apenas ooooooo ar voooooooa” (p. 20); “Opássaroestrela como vaga” (p. 37); “oparaísoéverdeoinfernoégreen” (p. 63); “Cai o bich/ Oalado no a/ Bismo en-/ Quantoeu” (p. 17).

O pássaro zero traz, para concluir, três aspectos que me parecem fundamentais à leitura, vamos dizer à aventura de voar os voos e de voar com os voos desse pássaro.

Primeiro, a capa que, de ambos os lados, apresenta uma imensidão, não azul dos céus, mas do vermelho, certamente, das dilacerações que o pássaro, seus voos e a própria linguagem poética sofrem e escrevem ao longo da trajetória de voos que não são dados, mas que exigem que sejam inaugurados a cada momento e com certeza de uma multiplicidade que não deixa de ferir para além da plumagem esteticamente bela, agradável, gratuitamente, agradável aos olhos e aos sentidos; as asas estão abertas numa envergadura que impõe o pássaro, o voo nesse firmamento vermelho. O enfrentamento dessas linguagens é inevitável, é a força poética do voo e dos voos desse pássaro.

Segundo, a abertura do livro, em seu primeiro episódio, exórdio do voo, oferece um plano que, a princípio soaria falso – “Era uma vez o pássaro zero. Ele nasceu no mundaréu, lá no fim do mundo” (p. 15). Pode ser que até se pense numa história fantástica linear. Fantástica, certamente, a multiplicidade é surpreendente. Porém, não linear. A linearidade é inconcebível ao voo, aos voos deste O pássaro zero. Já no primeiro poema, propriamente, dito do livro “o pássaro zero” (p. 16) a ideia de linearidade de uma história do pássaro zero começa a sofrer suas primeiras distorções, dramatizadas no próprio corpo da palavra, do poema, corroborando o pensamento de que não há falso plano na frase de abertura do voo do pássaro que o livro se propõe a compor, diferente de narrar, contar apenas. Ao final do livro, penso que essa primeira frase deva ser retomada, no sentido de compor um entendimento da criação poética a que ele se propõe.

Terceiro, o livro se apresenta dividido em três partes: “O pássaro zero” (p.15-73), que termina com o poema “o infinito” (p. 72) em que consta apena esse título, diante da imensidão livre e aberta ao voo, aos voos por vir, é a parte da consistência do voo; “Solo de colibri” (p. 75-109) e “Loas” (p. 110-127), considerando o sentido primeiro de “prólogo das antigas composições dramáticas, destinado a captar a simpatia do auditório, discurso laudatório, apologia”, conscientemente, corroborando o plano poético de Djami Sezostre, está desterritorializado para o encerramento do livro; em vez de prólogo, e em que uma apologia, ou certa apologia do poeta se faria, cria-se e se põe em cena uma gênesis (exercício poético que sempre me caro à produção literária de Djami Sezostre) que inscreve a criação do homem histórico na própria historicidade literária do pássaro zero, realizando-se, assim o que o verso (p. 122) diz: “O poeta rasgou o peito em cena para mostrar o coração”, concluído no verso (p. 124) de encerramento: “O pássaro zero, Djami Sezostre, não é passaru”. Um deslocamento não apenas geográfico em se tratando de uma parte que seria o prólogo, mas no sentido da apologia que se faz do poeta, que é o pássaro zero, mas se difere do “passaru”.

Desta forma, o “Era uma vez um pássaro zero”, de abertura do livro, encerra nesse prólogo, nessas loas desteritorializadas, dramatizando-se, mais uma vez a força poética desse plano de voo do pássaro zero.

“Solo de colibri”. Claro que não tem uma compreensão plena, de única leitura de um livro de poesia. Essa é a parte que permanece incomodando minha leitura. Algumas ideias me ocorrem como: a inscrição do colibri, também, um pássaro ao voo, aos voos do pássaro zero, certa metamorfose do próprio pássaro zero em seu cântico, distribuído em trinta e três solos. Por que o colibri canta a sós, canta sozinho? Qual o elo que estabelece entre as outras duas partes do livro? O que se celebra nesse cântico solo do colibri, para além da própria linguagem poética? Que território esse cântico se constitui entre duas desterritorializações em contínuos movimentos, em reiterados voos? Que segurança traz para a linguagem poética cantada? Em que fonte, manancial, ele se constitui para a linguagem poética? O que ele encerra do pássaro e dos voos em seu território, no chão dos sulcos de sua territorialidade?

 

 

 

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Tradução Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997.
SEZOSTRE, Djami. O pássaro zero. Bragança Paulista (SP): Editora Uruatu, 2020.

 

 

 

 

 

 

Nilo da Silva Lima, natural de Ponte Nova, mora em São João del-Rei, formado em Letras pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), com Mestrado em Teoria Literária na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisador de literatura, autor de ensaios publicados em revistas e jornais especializados. Colaborador da revista virtual InComunidade (Portugal). Autor do blog: literaturalima.wordpress.com

 




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