O sonho



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Nas tardes de domingo, o Dr. Andrea Svevo visitava-me para conversarmos sobre física óptica – um dos assuntos preferidos do Dr. Svevo e o qual muito me interessava.

O Dr. Andrea Svevo, quando chegava, se dirigia à poltrona que fica à direita da estante de livros, a qual eu, sempre deixava reservado para ele, porque nela, segundo dizia, sentia-se confortável; eu me sentava numa cadeira com os olhos semicerrados e voltados para o teto; era raro eu e Svevo nos encararmos durante o debate, cada um acreditava que este momento merecia sagração à sua própria mente.

Houve um domingo, porém, que o Dr. Svevo não veio na hora habitual, estranhei, pois jamais se atrasou para nosso encontro, costumávamos nos encontrar às 14 horas. Às 18 ele chegou; batia na porta com força e gritava meu nome com ímpeto. Abri a porta e Svevo entrou brutamente, retirando os sapatos às pressas, procurando com o olhar sua poltrona, dizendo repetidamente que tinha algo a me contar. Respondi dizendo a ele para que sentássemos. Sentamo-nos e Andrea Svevo começou a dizer:

– Dr. João Zveiter, o senhor como bem sabe, não sou um homem que se impressione por qualquer ideia, ainda que minhas cogitações em torno do misticismo lhe pareçam surrealistas, imagino que não pense a respeito de mim como um insano. Acredito, de boa fé, que apenas respeita minhas opiniões. Estou certo?

– Sim – concordei.

– O Sr. deve se lembrar de quando comparei o espelho ao sonho e disse-lhe da possibilidade mágica do sonho se comportar como espelho. Certa vez, você mesmo disse, repetindo as palavras de um poeta, que o espelho e o sonho são um mesmo e único ser nos olhos do homem. Baseado no que me disse, retruquei lhe dizendo o quanto acredito que o sonho possa nos revelar o futuro, e você concordara comigo. Mas lembro-me de você ter dito que também é possível que o sonho nos revele o futuro daquele mesmo sonho, ou nos mostre um outro sonho que ainda há de aparecer. Em suas palavras, era possível um sonho antever outro sonho dentro de si mesmo. – Svevo dizia fitando-me os olhos com a convicção de um luterano. – Pois bem, meu amigo, hoje tive a sensação de tais ideias. Hoje sei o que a certa hora da noite hei de ver quando meus olhos estiverem cerrados. O que vou lhe contar, deverá ser dito de uma forma que não possa esquecer, direi a você o que ainda não me aconteceu, e sei como será sem antes ter sonhado. Certamente, Dr. Zveiter, você irá me perguntar como posso saber o que não me aconteceu, se nem sequer mergulhei no vasto sonho para que este me revele o futuro. Sinceramente, não sei como explicar, somente lhe garanto, com fé, que sei o que há de me acontecer no sonho.

– E como o Sr. pode me garantir de ter antevisto o sonho sem antes sequer ter sonhado? Quer que eu aceite que sabe apenas porque você tem certeza do que diz, pela fé? Está por acaso debochando de mim?

– Não! – exclamou Svevo como uma criança questionada pelo pai tentando o convencer de que não mente. – Eu sei, é isto.

– Ora, hei de aceitar o que me diz, como hei de ouvir o que há de me contar, mas não porque existe lógica no que afirma, pois na verdade, sabemos ambos que não há nenhuma razão no que está dizendo. Poderia interná-lo num hospício, para que recupere, lá, sua sanidade. Mas acredito que ainda que eu fizesse isso, você continuaria a defender sua ideia. Não tenho outra escolha senão ouvi-lo. Diga-me então com suas palavras previamente escolhidas o que tem a contar. Diga-me o que viu.

– Não o que vi, Dr. João Zveiter, mas o que hei de ver.

– Diga logo. – retruquei.

Andrea Svevo, mudou a expressão do rosto, e, sem se voltar para mim, disse:

– Esta noite sonharei um sonho inevitável. Sonharei que diante de mim, nesta sala, estará um outro eu. Ele estará sentado onde estou. Saberei que ele é eu porque o sonho me dirá e não porque reconhecerei seu rosto (no sonho o rosto é uma sombra). Ele estará diante de mim em silêncio aguardando que eu fale, e eu mostrarei a ele minha angústia e meu desejo. Direi a ele que a alma que carrego comigo é maléfica e que dela quero me livrar. Ele então, complacente a meu sofrimento, estenderá sua mão. Assim que o toco, sinto uma parte de minha alma ir para com ele, e, mal ela se vai já me sinto diferente. Ali, naquele instante, percebo que a outra parte de minha alma agora a ele pertence. Ali, entendo que ele é o limbo e que ela ficará com ele para sempre. Ao despertar já não sou eu quem desperta, mas um outro, porque embora saiba que ainda sou, sou um eu com menos de mim. Não posso lamentar. Aceito que é real; eu estarei com o outro eu, e ele levará uma parte de mim consigo, ele é meu limbo, e o que é eu, ao estar com ele, não mais retornará.

– O Sr. usa de uma linguagem poética para descrever o indescritível. Acredita que o uso desta linguagem convencerá a mim de que o que dizes é verdade? Não obstante creia que a poesia seja a língua do infinito, não a considero suficiente para tornar lógico o que é irracional; é possível tornar aceitável o fantástico aos olhos de um sábio, porém, não significa que valha como verdade. E o que o convence de que a visão do futuro sonho seja real a ponto de perturbá-lo?

– Zveiter, já conversamos a respeito do sonho ser um espelho, se tal conceito for verdadeiro, nada impede de que a alma se fixe no sonho como a imagem no espelho; e, se este espelho for o inconsciente, é claro que a alma se fixará nele sem retornar.

– Ainda assim, não disse o que o perturba.

– Tenho razões para crer que após o sonho cometerei atos terríveis que me levarão a um fim igualmente terrível. A ausência de minha alma, certamente, me tornará em alguém incapaz de distinguir o bem do mal. Eu me vi matando Madelaine e você Zveiter. Eu matarei para santificar o mundo de um mal invisível, e ainda que esta razão seja insana, e também indesculpável, é a única razão que me há de vir sem que eu a questione. Creio imensamente que ao fazer, o farei sem arrependimento. Apesar, de agora, considerar um ato terrível o que farei; após o sonho me parecerá natural. Eu serei este outro que desperta. Portanto, esqueça o que você vê neste momento, apenas pense em quem hei de ser. Pense em mim, agora, como sendo aquele que surge depois do despertar.  Estou tomado por esta certeza, e isto, me conturba profundamente.

Andrea Svevo estava transformado. Eu o olhava, mas sabia que já não era ele quem estava diante de mim, como se o sonho desde o seu futuro já influenciasse o presente, como se aquele outro eu, já existisse, ali, diante de mim. A hipótese de que o sonho que sequer havia se realizado, já o tivesse tornado em outro, me seduziu a ponto de crer estar certo que Svevo não era mais o amigo que conheci. Todavia, seria ele realmente capaz de assassinar sua esposa e amigo? Seria possível que ele abandonasse parte de sua alma num ser extracorpóreo, cuja existência era improvável, e, sobretudo, existindo no interior dele mesmo tornando-o inverificável cientificamente, e ‘inda sim, real somente para ele? Fantasia ou realidade, me perguntava porque Svevo acreditava tanto neste sonho. Convenci-me de que Svevo não mais existia. Apiedei-me dele e a piedade levou-me a fazer o que era necessário.

Antes de Svevo dizer “A…”, com a agilidade de um jovem, saltei da cadeira encravando em sua garganta a caneta que estava em minha mão. Ele morreu, mas tive a sensação de que sou eu que havia morrido, ou talvez, uma parte de mim. Naquele momento, Svevo era meu outro eu, e eu o havia assassinado.  A cada gota de sangue que escorria de sua garganta crescia em mim a certeza de que tudo era um sonho, e agora, ao despertar, quem levantaria era um outro, enquanto eu passaria a eternidade no limbo. Como disse Svevo, aquele sonho… Era inevitável.

 

 

 

 

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Anderson Fonseca (RJ) é escritor, autor do livro de contos Notas de Pensamentos Incomuns (Ed. Multifoco, 2011). Escreve no blog ZWeiNBx (www.zweibx.wordpress.com). E-mail: luizdovalefon@hotmail.com




Comentários (4 comentários)

  1. Ana Lucia Vasconcelos, Anderson: gostei muito da maneira como desenvolve o tema , o insólito da coisa toda-o sonho que ainda não acontecera gerando um evento trágico bem real.Seria real mesmo? ou tudo afinal não foi um sonho?
    20 abril, 2012 as 2:09
  2. Marcio Rufino, Conto extraordinário. Parabéns.
    20 abril, 2012 as 21:44
  3. Georgio Rios, Um conto perfeitamente elaborado, fólego e consição!
    25 abril, 2012 as 2:41
  4. Ronaldo Ferrito, Anderson continua encontrando seu doppelganger por aí, em bicho ou em gente… Mas estabelece um diferença sobre esse fenômeno mítico, já muito explorado. Revela que a ipseidade já é um doppel, uma dobra, e se desdobra no real – o que não se reduz à concepção comum do doppel como duplo, um outro sem imbricação existencial, apenas concorrência destrutiva…
    30 abril, 2012 as 4:32

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