O romance anagrama


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A literatura experimental exige uma faísca apenas de imaginação – e uma paciência infinita. Certas experiências literárias radicais do nosso tempo se parecem com autopunições, com castigos que ninguém teria coragem de impor a outras pessoas mas que, um belo dia, um cara resolve impor a si mesmo. Vejam só o caso de Kabe Wilson, artista multimídia britânico. Quatro anos atrás ele estava pensando na arte do anagrama (misturar as letras de uma palavra para obter uma palavra diferente). Wilson pensou: “E se alguém usasse essa técnica com as palavras de um livro? E se alguém pegasse todas as palavras de um livro, inclusive as repetições, e as misturasse para dar origem a outro livro?”.

O resultado está aí: é o romance experimental Of One Woman Or So, cujo texto tem as 37.971 palavras do livro-ensaio de Virginia Woolf  A Room of One’s Own (1929), arrumadas noutra ordem e produzindo um livro diferente. Para combinar, o título do livro é um anagrama do título original, as mesmas letras combinadas para formar novas palavras. (Ver aqui).
Wilson usou computadores, processadores de texto, tesoura, cola, papel, para se certificar de que não estaria usando a mais, ou a menos, palavras comuns como “the” ou “be”.  Ele usou palavras do original para aludir a autores nossos contemporâneos, como Edward Said, e para inserir no novo livro menções a Harry Potter ou ao time de futebol Manchester United. “O mais difícil de tudo,” diz ele, “é que eu não sabia se ia ser possível ou não, e só poderia descobrir quando chegasse no fim. O meu medo era de compor o livro inteiro e ficar no final com 300 utilizações de uma mesma palavra, sem nenhum lugar para encaixá-las”.
Isso é literatura? Para mim é, apesar de ser uma versão mais complicada da criação literária, que já tem dificuldades de sobra. Mas Kabe Wilson diz: “Eu me vejo mais como um artista plástico do que como um escritor. Era importante ter, no final do processo, alguma coisa que eu pudesse colocar numa exposição”. O livro está exposto em 145 pranchas tamanho grande, com todas as palavras recortadas e coladas em suas novas posições.

Nesta coluna, escrevi dias atrás sobre “Livros interferidos”. Os textos literários (e os livros impressos que lhes dão suporte) estão se tornando uma nova matéria-prima, um novo material bruto. Visto geralmente como o fim de um processo literário, o livro impresso é agora o ponto de partida para um novo processo de criação. Reflexo de uma época de abundância de informação, tecnologias de manipulação do texto a custo zero, atitude de ambígua veneração para com as obras canônicas.

 

 

 

 

 

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Braulio Tavares é escritor e compositor. Estudou cinema na Escola Superior de Cinema da Universidade Católica de Minas Gerais, é Pesquisador de literatura fantástica, compilou a primeira bibliografia do gênero na literatura brasileira, o Fantastic, Fantasy and Science Fiction Literature Catalog (Fundação Biblioteca Nacional, Rio, 1992). Publicou A máquina voadora, em 1994 e A espinha dorsal da memória, em 1996, entre outros. Escreve artigos diários no Jornal da Paraíba: http://jornaldaparaiba.globo.com/ Blog: http://mundofantasmo.blogspot.com/ E-mail:btavares13@terra.com.br




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