O que está sob esta mira?


Para Marcelo Ribeiro, meu querido Dr. Bacamarte

ler se lê nos dedos/ não nos olhos/
que os olhos são mais dados a
segredos
(Paulo Leminski)


Em 2004, o diretor Marcos Prado realizou o premiado documentário Estamira, sobre Estamira Gomes de Sousa. A personagem-título era catadora de lixo, trabalhando por mais de 20 anos no aterro sanitário em Gramacho, localizado no município de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Ela sofria de distúrbios mentais, falecendo de infecção generalizada em 2011. Sobre a experiência de filmá-la, Prado diz o seguinte: “Foi fascinante. Ela era quase que uma profetisa dos dias atuais, uma pessoa muito legítima. Jamais montamos suas frases na edição. Todos os discursos incluídos no filme são contínuos. Ela acreditava ter a missão de trazer os princípios éticos básicos para as pessoas que viviam fora do lixo onde ela viveu por 22 anos. Para ela, o verdadeiro lixo são os valores falidos em que vive a sociedade”. Essa contextualização é o ponto de partida para refletirmos sobre o filme.

O cinema é associado, em geral, ao sentido da visão. Não à toa, por exemplo, perguntamos: “Você já viu Estamira?”. Na verdade, a linguagem cinematográfica é híbrida: relaciona a linguagem visual, a linguagem verbal oral, a escrita e a linguagem musical. Em outros termos, conjuga imagens, palavras e sons. Por isso, é uma combinação de códigos que convocam, além dos olhos, os ouvidos. Não seria absurdo, então, perguntarmos: “Você já ouviu Estamira?”.

Considerando que se trata de um texto sincrético, ou seja, que é resultado do cruzamento de distintos registros, tanto uma quanto outra maneira de perguntar a alguém se assistiu a determinado filme é parcial, incompleta. Talvez o verbo “assistir”, nesse contexto, dê conta de articular o “ver” e o “ouvir” que se combinam na recepção do gênero: o cinema penetra-nos pelos olhos e pelos ouvidos (não necessariamente nessa ordem).  Quem sabe, talvez, venha bem a calhar o neologismo do poeta Décio Pignatari, o verbo “ouviver”: ouvir, ver, viver. Reformulando a pergunta com uma pitada poética, diríamos, então: “Você ouviveu Estamira?” Assistir ao filme, nesses termos, não é só vê-lo ou ouvi-lo: mais do que isso, é vivê-lo.

Essa discussão serviria para abrir qualquer filme. Mas é especial no caso de Estamira. Na verdade, é sugerida pelo próprio título, que nos leva a uma relação interdisciplinar com a Gramática: decompondo-o, temos o pronome demonstrativo “esta” e o substantivo deverbal “mira” (formado por derivação regressiva a partir do verbo “mirar”). O pronome “esta” é dêitico, ou seja, remete a um dado do contexto, sem o qual não faz sentido, porque pode fazer qualquer sentido: “esta” mira pode ser qualquer mira. Contextualizado, o “mirar” é específico: “esta mira”, no filme, é o mirar de Estamira. O demonstrativo “esta” provoca um efeito de aproximação entre o espectador e o que mira Estamira (em contrapartida, os pronomes “essa” e “aquela”, em graus diferentes, produziriam efeito de distanciamento): na linguagem cinematográfica, diríamos que o olho mecânico produz um efeito zoom.

O filme propõe, assim, um contato mais próximo entre o público e a personagem, aproximando distintas realidades: por exemplo, a do garoto de classe alta que vai ao cinema e a da retratada no lixão. O garoto, que nunca viu um lixão, que nunca ouviu uma “louca”, tem-nos sob sua mira no filme, em efeito zoom. Como diz o pintor Van Gogh, numa das Cartas a Théo (seu irmão), quando estava internado na Clínica Psiquiátrica de Saint-Rémy:

Queria dizer-lhe que acho que fiz bem em vir aqui, primeiro vendo a “realidade” da vida dos loucos ou doidos diversos neste zoológico, perco o vago temor, o medo da coisa. E pouco a pouco posso chegar a considerar a loucura como sendo uma doença como outra qualquer.

Desse modo, o filme ajuda-nos a desfazer preconceitos, a enxergar outras “realidades” (pessoais, sociais), a mirar o outro – condição necessária para a ampliação de nosso universo de referências, de nosso repertório cultural. Segundo o Houaiss, aliás, um dos sentidos de “mirar” é “procurar alcançar; ter em vista”. Por isso é que dissemos que o título remete ao sentido da visão. A visão remete ao olho, instrumento sensorial geralmente associado à razão, à verossimilhança, à evidência. Não por outro motivo o senso comum repete São Tomé: “ver para crer”. Não por outro motivo ressoa a voz proverbial: “O que os olhos não vêem o coração não sente”. O filme, curiosamente, parece pôr em xeque a máxima, já que oferece ao público a visão do que captam os olhos de Estamira: apesar disso, como crer no que um louco vê? Como sentir o que seu coração sente, se não vemos o que seus olhos vêem? Se nossos olhos vêem, mas não olham…

Se considerarmos o cinema uma arte ilusionista, saímos do filme com a ilusão de termos conseguido olhar por meio dos olhos do outro, como se pudéssemos assim ter acesso à sua subjetividade, desvendando os insondáveis mistérios das cavernas abissais de seu ego… O que está, assim, sob esta mira?

Em alguns momentos do documentário, Estamira aparece de olhos bem abertos, fixados num ponto que a câmara não capta. Que verbo traduziria melhor o que seus olhos captam: ver ou olhar? Os mais apressados diriam que tanto faz, afinal são sinônimos. Os que se lembram das lições de Semântica sabem que não há sinônimos perfeitos: ver não significa o mesmo que olhar. Este é mais profundo do que aquele: ver é passivo, é captar imagens porque os olhos estão abertos; olhar é ativo, é receber as imagens com os olhos da alma. Ver é absorver qualquer imagem; olhar é reter o que está sob a mira. Quando a visão é firme e seletiva, forma-se o olhar. Por isso é que alguns dizem que a alma humana nasce quando o bebê deixa de ver para olhar. Olhar é procurar: o que procura Estamira?

Difícil responder sem cair em soluções simplistas. Recorrendo à epígrafe de Leminski, que segredos, então, escondem os olhos de Estamira? O que está sob sua mira? O documentário não responde, nem poderia responder, já que ninguém tem controle sobre a subjetividade de ninguém: a câmara não capta o que captam seus olhos, não tem acesso direto às imagens que se apresentam a ela. A câmara, pois, não oferece nada pronto à visão do espectador; apenas sugere: se o simbolista Mallarmé dizia “sugerir, eis o sonho”, nesse caso parece que estamos autorizados a dizer “sugerir, eis o pesadelo”.

Assim, quem vê Estamira, o documentário, não vê o que vê Estamira, o sujeito. Ou melhor: vê uma pequena parte do mesmo substrato real que ajuda a formar a matéria de que é feita uma pequena parte de seus pesadelos (não menos “reais”). Os pesadelos, porém, são mais visíveis quando escutáveis: Estamira mais faz ver quando faz escutar; seu discurso tem, pois, um efeito sinestésico. O documentário não mostra as imagens que ela vê; antes, tenta levar nossos ouvidos a enxergar um pouco do universo que os olhos dela captam. Por isso não é descabido dizer que ouvimos o filme.

Aliás, já que opusemos o “ver” ao “olhar”, melhor do que dizer que “vimos” Estamira seria falar que a “escutamos”, opondo agora o “ouvir” ao “escutar”. Todos os que assistiram ao filme e não têm problemas auditivos ouviram o que disse a protagonista; nem todos, entretanto, escutaram-na. Roland Barthes, importante estudioso da linguagem humana, assim nos ajuda a entender a oposição: “Ouvir é fisiológico; escutar é um ato psicológico. Pode-se descrever as condições físicas da audição (seus mecanismos), recorrendo-se à acústica e à fisiologia da audição; a escuta, porém, só se pode definir por seu objeto, ou, se preferirmos, sua intenção”.

Escutar é ouvir com intenção, com direção: mais do que sentir os sons, é percebê-los (para o dramaturgo Antonin Artaud, também tachado de “louco”, o sujeito escuta “quando possui ouvido suficientemente aberto para perceber o avanço da pororoca”). Olhar, na mesma linha, é ver com intenção, com direção: mais do que sentir as imagens, é percebê-las. Nessa perspectiva, assistir a Estamira não é apenas ver e ouvir o filme, mas olhá-lo e escutá-lo; melhor dizendo, é olhá-la e escutá-la. Melhor dizendo: é vivê-la.

Como já dissemos, essa discussão serviria para abrir qualquer filme. Mas é especial no caso de Estamira. Porque o caso de Estamira é especial. E é especial por uma série de motivos. A razão mais óbvia é a óbvia falta de razão da protagonista (nada estranho, se pensarmos que a razão nasce exatamente da ânsia de explicar o que parece sem razão): não estamos habituados a parar para escutar o que o louco tem a dizer. Quando muito, ouvimos o que ele diz como um amontoado de sons sem sentido. Fixamo-nos apenas no plano da expressão de seu discurso, isto é, no tom alto de sua voz, em seus gritos, em sua gestualidade hiperbólica, em seu histrionismo… Desprezamos em geral o plano do conteúdo de sua fala, rotulando-a de incoerente. Trata-se de um mecanismo de silenciamento: o discurso do louco não faz história, não vai para os anais… Trata-se de um mecanismo de poder, que elege o que deve e o que pode ser dito em dado momento: então o louco é excluído, é marginalizado, é confinado.

O documentário, corajosamente, convida o espectador a deslocar o foco de sua atenção para o plano do conteúdo do discurso de Estamira: durante duas horas, o público é colocado diante de uma louca que faz do espaço do lixão sua ágora, pregando a loucos como ela, a ratos e urubus. Não dá para ficar duas horas prestando atenção somente às caretas, aos tiques, aos gestos largos, aos “grunhidos” de Estamira: começamos progressivamente, então, a entrar em seu universo, tentando atribuir sentido às suas palavras. Começamos, então, a olhá-la de perto, a escutá-la a fundo – a vivê-la.

Seu discurso passa a adquirir sentido quando entendemos a lógica de seu raciocínio: há muita lucidez na fala de Estamira. Como uma espécie de Antonio Conselheiro, tem um discurso fragmentário, caleidoscópico, formado por distintas referências: mistura trechos da Bíblia, remontando à sua mocidade cristã, com designações astronômicas e outras coisas que leu em livros e revistas jogados no lixão. Diferentemente de Antonio Conselheiro, seu discurso se volta contra Deus: Estamira não funda uma teogonia, mas uma cosmogonia. Somos, em sua teoria, regidos por forças materiais, “astrais”: o cometa é o “comandante”; há astros bons e astros ruins; há o poder “natural superior”. Tudo que ela chama de “ao contrário” é adversário que cria obstáculos às nossas performances, truncando a narrativa da vida humana. Tudo o que ela diz é amarrado por essa lógica: há, portanto, coerência em seu discurso (o que não significa concluir que ela porta “verdades”). Por que sua crença seria menos lógica do que crer na origem a vida a partir de teorias “criacionistas”, negando o evolucionismo darwinista?

Uma das coisas que o filme ensina: o discurso do louco não é carente de qualquer sentido, mas tem outro sentido, pertence a outra lógica, cria formas diferentes de representação e interpretação do “real”. Aliás, ensina que a loucura não está apartada do real – ela é filha da realidade. Filha monstruosa, mas filha. Não interessam aqui os fatores bioquímicos, as predisposições orgânicas. No recorte que fazemos, a loucura é também fruto do meio, é também um produto social. Partimos da crença de que cada sociedade engendra seus próprios pesadelos, cria seus próprios tiranos e seus próprios subjugados: o substrato dos pesadelos, assim, está no cotidiano. É a vida que fornece a matéria de que se nutrem os bons e os maus sonhos: é mais provável que ratos e urubus povoem a noite de quem vive num aterro. Nessa perspectiva, miséria e loucura estão imbricadas.

Claro que há miseráveis que não são loucos, como há loucos que não são miseráveis. Como é claro que há também loucos e miseráveis que sonham com chinchilas e faisões, mesmo vivendo em um aterro. Não defendemos – nem o filme – que a loucura é produto do meio, tão ao gosto do determinismo do século XIX. Aliás, uma relação interdisciplinar possível é com a Literatura: o Naturalismo aproveitaria a história de Estamira para fazer um romance de tese. No raciocínio da época, teríamos o seguinte: Quem vive num lixão é louco; Estamira vive num lixão; logo Estamira é louca.

Apesar de sedutor, talvez exatamente por simplificar problema tão complexo, o raciocínio é falacioso: aproveita-se da estrutura lógica do silogismo para construir um sofisma, como aprendemos nas aulas de Redação. Bastaria um miserável são vivendo entre os dejetos para desautorizar a conclusão. A loucura de Estamira é tributária de fatores psíquicos combinados a fatores sociais. Interessam-nos aqui, particularmente, os fatores sociais que contribuem para a instalação do quadro.

Outra das coisas que o filme ensina: a loucura não é o regime da felicidade e da liberdade. Estamira mostra que o louco não é livre nem feliz, como crê o senso comum: as fantasias não são escolhidas; os delírios e alucinações são impostos pela doença. O louco é refém de seu psiquismo, encarcerado em seus devaneios: os piores carcereiros e as mais terríveis prisões. Loucos são os que dizem que queriam ser loucos para não sofrer: isso só mostra o quanto a loucura não raro é glamourizada, o quanto estamos apartados do que significa de fato ser louco.

O documentário também ajuda a refletir sobre o mito da genialidade associada à loucura: não parte da ideia sedutora, romântica, idealista, de que “há em todo demente um gênio incompreendido em cuja mente brilha uma ideia assustadora”. O louco não é necessariamente gênio: nem todo louco é Van Gogh, nem todo artista é louco. Há loucos geniais e loucos imbecis; do mesmo modo, há gênios loucos e gênios sãos. Estamira é louca mas não é artista; não é imbecil mas não é gênio: é uma pessoa comum que trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua, em sua profissão de fé…

O escritor Renato Pompeu, internado diversas vezes em hospitais psiquiátricos, rejeita tanto a idéia de que a loucura seja um passaporte direto para a criatividade quanto de que seja uma porta aberta à felicidade:

A minha impressão pessoal é que a loucura não é nenhuma garantia de alta criatividade. Pelo que pude observar, a proporção de artistas entre os doentes mentais que conheci é mais ou menos a mesma que existe na população em geral. A grande diferença é que, estando internados ou afastados do trabalho, os doentes mentais têm muito mais tempo para se dedicar a atividades artísticas e artesanais, que muitas vezes têm efeitos terapêuticos.
O que distingue a chamada loucura da chamada normalidade não é a capacidade de imaginação criativa, e sim a capacidade de comparar os produtos dessa imaginação criativa com a realidade observável fora do pensamento de cada um. Tanto o “louco” quanto o “normal” podem imaginar coisas “malucas”, só que o “louco” não sabe que essas coisas são “malucas” e o “normal” sabe.

Por fim, o documentário pode ser lido como uma espécie de libelo contra o encarceramento em hospitais psiquiátricos: no mundo moderno não há espaço para o “louco de aldeia”, para o “bobo da corte” do mundo medieval, que dizia, em sua lúcida loucura, as verdades inconfessáveis, os conteúdos reprimidos, as idéias censuradas. Conforme questiona Machado de Assis no conto “O Alienista”, quem é de fato louco? Os que estão internos ou os que estão livres? Na história do “bruxo” (como o chamava Drummond), o único interno, por fim, acaba sendo o próprio psiquiatra, o Dr. Simão Bacamarte:

– Mas deveras estariam eles doidos, e foram curados por mim, ou o que pareceu cura não foi mais do que a descoberta do perfeito desequilíbrio do cérebro?
E cavando por aí abaixo, eis o resultado a que chegou: os cérebros bem organizados que ele acabava de curar eram tão desequilibrados como os outros (…) Não havia loucos em Itaguaí; Itaguaí não possuía um único mentecapto. Mas tão depressa esta idéia lhe refrescara a alma, outra apareceu que neutralizou o primeiro efeito; foi a idéia da dúvida. Pois quê! Itaguaí não possuiria um único cérebro concertado? Esta conclusão tão absoluta não seria por isso mesmo errônea, e não vinha, portanto, destruir o largo e majestoso edifício da nova doutrina psicológica? (…)
– A questão é científica, dizia ele; trata-se de uma doutrina nova, cujo primeiro exemplo sou eu. Reúno em mim mesmo a teoria e a prática.

A propósito, o paradoxo é assim traduzido pelo filósofo Michel Foucault, em sua História da Loucura: “a ciência acaba por desaguar na loucura pelo próprio excesso das falsas ciências (…), o Mestre que ostenta por trás de seu chapéu de doutor o capuz dos loucos cheio de guizos”. Aproveitando a deixa: existe sanidade, ou todos somos loucos em graus diferentes? O médico dos loucos também é louco? Caetano Veloso está certo ao afirmar que “de perto ninguém é normal”? O que se chama de sanidade seria mais uma das muitas manifestações da loucura?

Para tentar responder a isso, vêm bem a calhar as seguintes idéias do filósofo Pascal: “Os homens são tão necessariamente loucos que não ser louco significaria ser louco de um outro tipo de loucura”. Na reflexão de Leminski, no poema “luz versus luz”, de la vie em close: “quem parece são não é/ e os que não parecem são”. Guardadas as devidas proporções, é o que pondera Guimarães Rosa no conto “Darandina”, de Primeiras Estórias. Na análise da obra para a Fuvest 2004, Dácio Antônio de Castro resume exemplarmente a questão:

Neste precioso estudo de psicologia social, Guimarães Rosa se empenha em comentar, ironicamente, o comportamento coletivo. Registra, nas várias personagens, os mais variados graus de insanidade que os cidadãos, ditos cosmopolitas, costumam apresentar.
A grande indagação lançada pelo autor é: quem é mais louco? Seria o “empalmeirado” que parecia ter “instilado veneno nos reservatórios da cidade”? Ou o povo, necessitado de circo, que transforma aquilo num espetáculo e muda de opinião com espantosa facilidade/ Ou seriam as impotentes autoridades? Ou os médicos, que se refugiam no biombo do jargão “psiquiatrês”, para dissimular sua incompetência?

Estamira não constitui nenhum risco à ordem pública; sua liberdade não implica perigo a ninguém. Se, assistindo ao documentário, em princípio ninguém duvida de que ela é louca, no final alguém desacredita de que ela também é lúcida?

As palavras de Artaud – interno por nove anos no Hospital Psiquiátrico de Rodez – vêm em defesa da liberdade dela e de seus pares, contra a política de encarceramento dos doentes mentais em instituições psiquiátricas, no texto Van Gogh, o suicidado pela sociedade:

É possível falar da boa saúde mental de Van Gogh, que, no curso de sua vida, apenas assou uma das mãos e, fora isso, não fez mais que amputar a orelha esquerda, num mundo onde se come todos os dias vagina cozida “à la suace vert” ou sexo de recém-nascido espancado e colérico, tal como é colhido ao sair do sexo materno. E isto não é uma imagem, mas um fato abundante e cotidianamente repetido e observado em toda a terra. E é assim, por mais delirante que possa parecer tal afirmação, a vida presente se mantém em sua velha atmosfera de estupro, de anarquia, de desordem, de delírio, de desregramento, de loucura crônica, de inércia burguesa, de anomalia psíquica (porque não foi o homem mas o mundo que se tornou anormal), de assumida desonestidade e insigne hipocrisia, de sórdido desprezo por tudo o que mostre raça (…).
Foi assim que a sociedade estrangulou em seus asilos todos aqueles dos quais ela quis se livrar ou se proteger, por terem se recusado a se tornar cúmplices dela em algumas grandes safadezas. Porque um louco é também um homem que a sociedade se negou a escutar e quis impedi-lo de dizer insuportáveis verdades.

Na mesma linha segue o escritor Carl Solomon, quando paciente do Pilgram State Hospital. Apesar das grandes diferenças entre os casos, o exemplo também serve para questionar o estatuto da loucura, a certeza dos diagnósticos, a necessidade da internação – em suma, a onipotência de certos psiquiatras, que transformam o provável em evidente:

Merda, eles me mantêm num hospício e me acusam de paranóia porque eu me recuso a pagar suas trapaças (…). Que morram esses escritores afetados que adulam uma “Ciência”  inexata com uma parafernália de medicamentos inúteis e geringonças que custam vidas (…). É a nova Gestapo (…). Quando voltei da França para este país inculto, fui logo taxado de louco em meu próprio meio por ler Baudelaire, usar sandálias e falar francês. Fui submetido a comas de insulina e eletrochoques por nenhuma outra razão a não ser minhas traduções e minhas leituras.

Quem é louco; quem é são? O psiquiatra Wilhelm Reich mostra que as fronteiras não são nítidas:

O mundo em alguns lugares é governado por indivíduos nos quais os psiquiatras têm forçosamente de descobrir sintomas de doença mental; mais ainda, os homens de toda parte do mundo na realidade são mentalmente enfermos; reagem mentalmente de forma anormal, acham-se em conflito com  seus próprios desejos e possibilidades reais. Eis alguns sintomas de reações anormais: morrer de fome na abundância (…); acreditar que um poder divino de longas barbas brancas rege tudo e que se está à mercê deste poder, para o bem ou para o mal; matar pessoas inocentes com entusiasmo e acreditar ter conquistado uma terra da qual nunca ouviu falar; andar esfarrapado e ao mesmo tempo sentir-se como representante da “Grandeza da Nação” (…); delegar a qualquer indivíduo, mesmo que seja um chefe de estado, um poder quase absoluto sobre a própria vida e o destino (…); considerar o castigo das crianças no interesse da “cultura” coisa evidentemente normal; negar a felicidade da união sexual a jovens na flor da idade. Poder-se-ia continuar ao infinito.

O que você escutou do que ouviu? Para que recantos do ser foi direcionado seu olhar? Que segredos Estamira lhe revelou? Quais “verdades” lhe ensinou? Quantas crenças ela abalou? Quantos preconceitos ajudou a quebrar? Que posturas lhe obrigou a rever? Quem de fato é louco? Quem efetivamente é são? Existem fronteiras nítidas, bem delimitadas, entre a razão e a loucura? Há diagnóstico preciso o bastante para privar alguém do convívio social? Talvez a única conclusão honesta, possível: sei que nada sei. In dubio pro reo: a dúvida se abre ao infinito…

Uma coisa é certa: depois de assistir ao documentário, não saímos do cinema como entramos. Depois de Estamira na síntese do simbolista Rimbaud – “eu sou um outro”.

 

 

 

 

 

 

 

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Carvalho (Paulo César de Carvalho) é vocalista e letrista da banda Os Babilaques. Nasceu em São Paulo em 22 de abril de 1970. É bacharel em Direito e mestre em Linguística pela USP, professor de Gramática, Interpretação de Texto e Redação do curso Anglo Vestibulares e de cursos preparatórios para concursos públicos, co-autor do material de Língua Portuguesa do Sistema Anglo de Ensino, autor dos livros Tópicos de Gramática e Tópicos de Interpretação de Texto e Redação (Editora CPC – www.cpc.adv.br ou livraria@cpc.adv.br). Foi editor do boletim Texto & Cultura, colaborador das revistas Discutindo Língua Portuguesa, Discutindo Literatura, Arte & Informação, Livro Aberto e Libertárias e consultor da TV FUTURA no programa Tá Ligado?. Sua dissertação de mestrado intitula-se Fragmentos epistolares de um discurso amoroso: elementos para uma análise semiótica do estatuto do gênero “carta de amor”. Tem poemas publicados no livro Na virada do século – poesia de invenção no Brasil (Landy Editora) e na antologia portuguesa Poezz (Almedina). Lançou em 2009 o livro de poemas Toque de Letra (Editora Nhambiquara). É articulista do site literário Musa Rara. Tem parcerias musicais com Tatá Aeroplano, Juliano Gauche, Peri Pane, Pélico, Trupe Chá de Boldo, Reynaldo Bessa, Bruno Roberti, entre outros. Foi curador da exposição “Linguaviagem”, em Brasília (2010), que abriu o Congresso dos Países Lusófonos. E-mail: carvalho70@gmail.com




Comentários (2 comentários)

  1. CHICO LOPES, Este filme é precioso. Tive a impressão de mergulhar na alma de outra pessoa, realmente. Raramente o cinema brasileiro tem dessas coisas felizes. O grosso da produção ficcional é muito ruim, ultimamente. Não quero mais ir ao cinema pra ver um novo filme espírita-piegas com efeitos especiais nem alguma comédia com atores globais e estética de shopping-center. ESTAMIRA sim é cinema…
    20 junho, 2012 as 15:59
  2. Eduardo Calbucci, ESTA MIRA, VÊ E REPARA O documentário Estamira, de Marcos Prado, é uma das grandes realizações cinematográficas brasileiras do século XXI. Como argumentos dessa crença, seria possível enumerar a belíssima fotografia do filme, a denúncia social presente nas histórias dos trabalhadores do lixão, as desconcertantes imagens de alguns hospitais psiquiátricos no Rio. Mas a grande verdade, revelada por Estamira, é que o brilho incômodo do filme advém sobretudo da lucidez incisiva da protagonista. Estamira teve uma vida sofrida, daquelas que poderiam tranqüilamente transformar-se num drama cativante: perdeu o pai muito pequena, sofreu abusos sexuais do avô, foi obrigada a prostituir-se com 12 anos, foi traída sistematicamente por dois maridos, conviveu com as doenças psiquiátricas da mãe, tornou-se catadora de lixo no fétido Jardim Gramacho, foi vítima de dois estupros, chegou a ser levada à força para um hospício. É claro que tudo isso deixou marcas profundas em seu comportamento, mas não a impediu de ser homem – em “formato par” – “consciente, lúcido e ciente”. Seria muito fácil, numa análise simplista do discurso de Estamira, dizer que ela é maluca e que, como tal, suas considerações sobre o mundo são fruto de suas psicoses, não podendo por isso ser levadas muito a sério. Até mesmo seu filho mais velho, Hernani, crê nisso, afirmando sua mãe “não é 100%”. Aliás, ele vai mais longe: talvez pela religiosidade fervorosa, ele acredite piamente que sua mãe está possuída por seres demoníacos. No entanto uma leitura menos impressionista das palavras empregadas por ela mostra uma retumbante competência filosófica. Sim, porque o “trocadilo”, o “esperto ao contrário”, o homem como “único condicional”, o “controle remoto”, o “além dos aléns”, o “registrador de pensamento”, o “invisível”, o “formato homem”, “par” ou “ímpar”, o poder “natural superior”, a “beirada” do mundo não são devaneios, não são alucinações, não são expressões para fazer rir, e sim a manifestação de uma ordenação discursiva cuidadosa e de uma espécie projeto didático, surpreendentemente criados por alguém que veio ao mundo, como ela mesma diz, para ser “a visão de cada um” de nós. A ressignificação do mundo Estamira acredita que a natureza representa o que ela chama de “poder real”. Esse poder nega as abstrações das religiões tradicionais, o que a aproxima de uma espécie de panteísmo. Para ela, as manifestações do “pai astral” ou do “cometa” não têm nada a ver com Deus, pois o céu apenas reflete as coisas da terra, de maneira que o lado espiritual das pessoas é mais sensível, é mais concreto, é mais tangível do que se imagina. Como essas crenças suas são, indiscutivelmente, inabituais, Estamira admite que não é simples sua missão de “revelar a verdade, somente a verdade”. Mas, desde que ela começou a ter uma compreensão mais metafísica do mundo, ela tem lutado contra todos que dificultam a realização plena dessa missão. Esses dificultadores são representados pelo “trocadilo”, pelo “esperto ao contrário”, que impedem o homem de ter consciência plena de ser o “único condicional” e assim chegar ao “além dos aléns”. Notem que os dois primeiros conceitos trazem os traços semânticos da inversão de valores, da troca de posições, da confusão, da ambigüidade, enquanto o terceiro remete à condição humana como algo único e especial e o quarto figurativiza um estágio superior, uma espécie de nirvana, de mundo transcendental platônico. Com efeito, é impossível não distinguir um certo platonismo nas idéias de Estamira. Mesmo sem ter lido a República, ela supõe que, antes de nascer, ela já sabia de tudo, como se ela tivesse reminiscências tão fortes de suas experiências anteriores à existência empírica que teria sido fácil para ela recordar, pela anamnese, as verdades essenciais às quais todos, segundo Platão, fomos um dia expostos. O que se vai percebendo, durante o filme, é que – à semelhança do filósofo ou do escritor que, não encontrando a palavra ideal para traduzir uma idéia, prefere inventar uma nova – Estamira vai propondo seus conceitos como forma de comprovar que a linguagem não é cópia, mas sim interpretação da realidade. Desse modo, como as palavras já existentes não são capazes de veicular a verdade que ela se dispõe a revelar, ela investe na ressemantização desses termos, que passam por uma especialização de sentido e acabam por resgatar uma força, uma intensidade, um efeito de encantamento típico do discurso de fundação mítica. Estamira é impressionante porque usa esses conceitos sempre da mesma forma, sempre com os mesmos e precisos sentidos, o que dá organização e precisão ao seu discurso, tornando-o mais eficiente no propósito de explicar por que ela tem, simultaneamente, dó do homem e raiva, nojo e ódio dos trocadilos e dos espertos ao contrário. Essa é a maneira pela qual Estamira interpreta e entende o mundo. Um lixão com nome de jardim As imagens do lixão que aparecem no filme, a despeito da beleza da fotografia, são horríveis. Não se pode imaginar alguém vivendo ou trabalhando num lugar como aquele. É o ápice da degradação humana. Mas Estamira não concorda com isso. Foi no Jardim Gramacho que ela aprendeu a conhecer o mundo, seu mundo. E é por ter trabalhado tanto tempo lá que ela consegue a diferenciar o “resto”, que é natural, do “descuido”, que é desperdício. É por conhecer tão bem aquele jardim de lixo que ela sabe que as coisas podem ser limpas e lavadas, para serem usadas novamente: uma camisa suada, diz ela, não deve ser jogada fora. Essa lição de moral é tanto mais forte quanto se percebe como Estamira é altruísta e como ela acredita que “economizar as coisas é maravilhoso”. Talvez por isso ela se indigne tanto com as injustiças sociais e com Deus, que ela julga o culpado por todas essas injustiças. A consciência social de Estamira, acompanhada de um certo corporativismo saudável que se manifesta em sua conduta, é outro elemento digno de nota. De maneira simples, como quem defende que a Terra gira em redor do sol, ela diz que a “igualidade” deveria ser um pré-requisito do comportamento humano, o que levaria ao “comunismo superior”. Isso porque, para ela, os trabalhadores em geral – e especialmente os do Gramacho – não passam escravos, um monte de “escravo disfarçado de liberto”, porque a tal da “Isabel” os libertou, mas se esqueceu de lhes dar emprego. Nesse instante, Estamira faz uma reflexão sutil, típica de quem conhece as exegeses bíblicas tradicionais. Lembre-se que, antes de voltar-se contra Deus, ela foi muito religiosa. Talvez por isso, ao se recordar do castigo divino a Adão no Gênesis, Estamira reconheça que as pessoas deveriam suar para a ganhar o pão de cada de dia, e não se sacrificar. Sacrifício e suor são duas coisas bem diferentes, nota nossa profetisa agnóstica. Mas o mais bonito da vida no jardim – não o Éden, mas o Gramacho – é que as pessoas de lá vivem felizes, como aqueles homens drummondianos que, em “América”, sorriam “de tanto sofrimento dominado”. Sem a loucura, o que é o homem? Estamira fez diversos tratamentos psiquiátricos. Tomou remédios. Reclamou deles, considerou-os “dopantes”. Chamou os médicos de “copiadores”. Seus filhos não lidam da mesma forma com o problema: Carolina reconhece a lucidez da mãe, Hernani não reconhece, e Maria Rita fica no meio do caminho. Estamira sabe que tem suas perturbações, mas sabe igualmente que não é deficiente mental. Suas conversas em línguas inventadas num telefone imaginário não diminuem sua capacidade de compreender a realidade. E como Dom Sebastião, no Mensagem, é possível que ela se pergunte: “Sem a loucura, o que é o homem, mais que a besta sadia , cadáver adiado que procria?” No final do filme, após assumir que a única sorte de sua vida foi conhecer o lixão, ela resolve falar sobre suas alucinações e filosofa: “tudo que é imaginário tem, existe, é”. De fato, a realidade ontológica não deve englobar apenas os seres tangíveis, sensíveis, imanentes; a realidade é mais do que isso: ela é também a imaginação, os sonhos, tudo aquilo que não se pode ver com os olhos, mas que se enxerga com o pensamento. Essa noção, extremamente complexa do ponto de vista teórico, é simplificada por Estamira de um modo comovente. Dá para entender por que ela diz que está revelando a verdade para todos nós. A última frase do documentário, num tom quase maternal, confirma a missão de Estamira de nos ensinar a ver o mundo por outras lentes: “Sabia que tudo que é imaginário existe, é e tem? Pois é…” Pois é, Estamira, você faz a vida parecer mais simples. Maravilhosamente simples. Obrigado por todas as suas palavras.
    27 junho, 2012 as 22:50

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