O Prêmio IAP de Artes Literárias e a festa dos mortos


 

Obras vencedoras do Prêmio IAP de Artes Literárias - Edições Culturais 2012

 

Em 2012 o Prêmio IAP de Literatura, agora denominado Prêmio IAP de Artes Literárias – Edições Culturais, promovido pelo Instituto de Artes do Pará, completa dez anos e, como fez ao longo da década, a instituição apresentou ao público, no dia dezenove de junho, em concorrido evento de lançamento e noite de autógrafos, os livros vencedores do atual certame, cujo pacote eu tive o prazer de receber anteontem, numa gentileza do Sr. Tito Barata, gerente de literatura da instituição.

Os livros são realmente primorosos dos pontos de vista material e visual, uma demonstração do esmero com que a instituição vem se dedicando à promoção da boa literatura produzida no Pará, estado de produção volumosa conforme dados divulgados pelo Estande do Escritor Paraense por ocasião da XV Feira Pan-Amazônica do Livro (2011).

Tais dados dão conta de que, para a referida feira, 240 escritores ali se cadastraram. Número curioso para uma terra sem editoras. Vale ressaltar que o estande, montado a cada feira, tem por finalidade exclusiva expor a produção literária local, e que não é difícil encontrar escritores paraenses que lá não se cadastraram.  Produção volumosa, pois, da qual o Prêmio IAP, pelo rigor e seriedade que se espera de seus processos seletivos, funcionaria como uma espécie de catalisador, de filtro desta produção cuja causa não seria difícil encontrar nas longas tradições de narradores orais que, historicamente, aqui se encontraram, misturaram e constituem a Amazônia, mundo, mundos, vastos mundos férteis em  lendas, mitos, surrealidades, já que a muito de nós isto forjou narradores.

Trazemos na algibeira, como no dizer do poeta de além-mar, um nosso passado mítico, muito nosso, embora não só nosso. Nossos encantos e encantados. Nossos deuses. Entes. Nossos mistérios. Nossa imaginação fértil. Regada à sombra e umidade da grande floresta. À margem dos rios. O que recebemos dos mais velhos. Que deles ouvimos e recontamos. Mas também vimos e imaginamos e passamos adiante. A permanência e o novo. A convenção e a invenção. Nossas fabulações que das florestas e rios, sem daí saírem, caminharam pelas veredas até as vilas e estradas que se abriam. Até as cidades. Ruas. Interiores. Periferias. Centros. Que o tempo e os encontros trouxeram. Somos tudo isso. Muitos. Aqueles que estavam e aqueles que vieram. Muitos se sucedem e coexistem em nós. Conosco. Agora. Passado, presente e futuro. Pois também somos, de certo modo, os que ainda não vieram. E virão. Florestas e rios. Áfricas, Europas e Américas. Ocidentes e Orientes. Brasis. Nordeste. Cordel (ver a propósito notas em “O chapéu do boto e o bicho folharal”, de Juraci Siqueira, matéria aqui). Encontros que somos.  Trânsito. Abertura. Ganhos e perdas e ganhos. Somos nossa fórmula. Aberta. Sendo. Somos o que nos contaram e o que contamos. Folcloristas aqui encontraram, disseminadas em nossas histórias, histórias outras, de além, naturalmente.  Trocas. Troças. Re-significações. Somos, desde muito, contadores. Fabuladores. Quantas noites dormidas sob os embalos dos mistérios? Aventuras? Nossas mães. Nossos pais. Acalantos. Regas de nossa imaginação. E quantos de nós não pomos os filhos a dormir ao som-sono dos mesmos e outros mistérios?!  Filhos e pais dessa fonte inesgotável de oralidades, alguns, naturalmente!, vêem na escrita uma forma de “fixar” a tradição que os alimenta, como se fixa fosse, a exaltar e defender, ufanistas do exótico, uma não menos fixa identidade… – ficção às avessas!

Talvez isto então explique o porquê de tantos escritores, cuja imensa maioria edita de forma independente (o que não é mau) e sem muitos critérios de revisão ou estética literária (0 que é péssimo!) – haverá exceções, claro! -, dado serem muito mais narradores populares que escritores, no sentido do trabalho cuidadoso e acurado com a escrita. É assim, pois, que, repito, espera-se do Prêmio IAP alguma forma de crivo, diferença. Então, em tese, ganhá-lo é importante aval à carreira do escritor iniciante, além de ótima oportunidade para publicação gratuita, divulgação, confirmação de carreira, o que talvez tenha levado autores a se inscreverem mais de uma vez – e a ganhá-lo mais de uma vez – no decorrer dos anos.

Mas, bem, ainda não tive tempo de ler todos os livros. Além de “666 – O tragicômico percurso” (João Bosco Maia), que, por gentileza do autor, conheci na fase de preparação à publicação e com o qual (outra gentileza) fui presenteado antes de receber o pacote oficial, li, deste, um, de contos – “A festa dos mortos”. Tomei-o sem critério prévio, por acaso, entre os demais. Talvez influenciado pelo fato de ser prosa, gênero com o qual mais me sinto à vontade. Mas podia ter escolhido outros.

O livro compõe-se de doze contos, autor estreante, do interior do Estado. João Loureiro. Enredos interessantes a explorarem a aura mística da Vila de Terra Salgada, nome com que, na ficção, o autor talvez batize Santarém Novo, sua cidade de origem. Enredos interessantes, mas mal executados. Texto retórico, empolado demais para a escritura, farto em adjetivos e frases grandiloquentes, quiçá ávido por reforçar e exaltar o “caráter amazônico” dos elementos que retrata, a reclamar desnecessariamente uma pertença, como se vê na amostra abaixo:

“Aquele instrumento era como uma senha para se adentrar a escuridão das noites amazônicas…”, “… a mediunidade típica desses raros narradores que se espalhavam pelos rios amazônicos”, “… a chuva engrossou por completo e os envolveu na escuridão amazônica…”, “… pequena Vila de Terra Salgada, Norte da Amazônia…”, “As noites amazônicas são inomináveis”, “… o véu de incerteza da atmosfera amazônica…”, “melancólicas noites ribeirinhas…”, “míseros tostões das noites escassas de serviço…”, “… ao indomável som das águas amazônicas…”, “… braços fortes do moreno Ramiro”, “…sua breve narrativa, ele já roncava feliz enrolado nos braços dela. Como quem observava a felicidade domesticada em um rápido instante…”, “… minúscula janela do barco…”, “… ante a cegueira daquela inominável noite amazônica”, “… inúmeros vaga-lumes flutuavam magicamente pelo caminho…”, “… exuberante felicidade alimentou a inveja alheia do povo falador”, “… ao Norte das matas amazônicas…”, “Na frente da capela inacabada da vila parcamente enfeitada com bandeirolas parrudas…”, “detrás daqueles pequenos olhos imobilizado (sic) por natureza, duas pequenas velas denunciavam um indecifrável olhar escarninho”, “Olhos pequenos e acanhados equilibravam a rigidez dos traços de cansaço crônico. Lurdes também viu melhor a jovialidade dele, com seus traços jovens e ingênuos…”, “… pra’quelas bandas nortes da Amazônia”, “… imensa fila de quase um quarteirão”, “… ele estranhamente já roncava com seus roncos que ecoavam por toda a…”, “A tarde agonizava prenunciando chuva no apequenado céu da vila. Velas acesas se debatiam inutilmente contra o vento vespertino, enquanto um soturno hino era cantado por senhoras que se escondiam trajando negro. Nos simplórios espaços vazios da casa, a tristeza denunciava que naquela tapera, intrometida num pedaço da Amazônia…”, “… naquelas paragens molhadas da Amazônia…”, “… sempre foram parte de sua pacata vida de raros sonhos…”, “… que a noite tecera sobre a região Amazônica”, “Em um enorme casarão perdido nos confins da Grande Amazônia…”, “… o lendário homem solitário que se esconde da mata das noites amazônicas…”, “Como um daqueles lendários seres que habitam a flora amazônica…”, “Naquela vila nos confins da Grande Amazônia…”, “…desse pedaço da Amazônia” (páginas diversas).

 

Ora, a farta existência dos elementos questionados e outros mais, como o desequilíbrio, a incoerência, de natureza sintática, em frases que reúnem termos e expressões regionais a outros da chamada norma culta, me parecem indicar que o texto ainda não estava pronto. Ainda era gestado. Precisava de maturação, de crítica, uma crítica que, em última instância, poderia vir da comissão julgadora mediante a recusa ao Prêmio. Faria muito melhor ao jovem autor, afinal não desprovido de talento (veja-se aqui, a propósito, ótimo vídeo em que assina roteiro e direção, rico, aliás, em elementos antropológicos), que a aprovação em tal fase de gestação. A recusa o levaria a repensar o texto, trabalhar m ais a palavra, experimentar, explorar-lhe as virtualidades, a potência, enfim, exercitar-se como artista da escritura, categoria distinta da do simples narrador, que evidentemente, como tentei demonstrar, tem sua importância; mas a escritura exige outras artes. Assim, no próximo ano, em que o tempo lhe pesaria a decisão pela escritura, poderia, livro mais maduro, retornar. Mas a comissão responsável pelos contos, quem quer que a tenha composto, parece ter ignorado os problemas do texto.

E mais: por que não viu, por ocasião do conto “A casa que nunca chorou”, que uma personagem tem o nome trocado abruptamente, sem qualquer indicação ou justificação no enredo? A personagem é inicialmente chamada de Manoel:

“Ele se chamava Manoel, tinha trinta anos e foi preso ao tentar…”, “… Januário e Manoel já tinham juntado bastante ouro…”

Mas após esta última menção, passa a ser chamada de José:

“Certa noite, quando os dois voltavam da bebedeira, José deu com a falta de algumas pedras de ouro…”

E o nome se mantém até o final. Além disso, fico com a impressão de que certos detalhes da história sugerem contradição entre fatos e a idade informada do personagem. Mas, bem, a comissão não viu… Ter-se-ia impressionado com as epígrafes, trechos de autores renomados, que abrem cada um dos contos?

E quanto ao revisor do texto?! Repleto de erros gramaticais (não, não me refiro à fala regional dos personagens!), o livro também denuncia este profissional. Sugere que o responsável pela revisão foi, no melhor dos casos, negligente.

É assim, então, que o esmero antes mencionado, também perceptível em iniciativas como a que agora destina a escolas e bibliotecas públicas um percentual dos livros, ou a que promove eventos como o da última quarta-feira (18), em que Maristela Petrili Leite, gerente editorial da Editora Moderna (SP), veio falar sobre a natureza da atividade e mostrar como se dá a relação com autores, resta arranhado, pois atinge aquilo que é essencial à tarefa do Prêmio, que é, como dito, promover a arte literária aqui produzida.

É claro que ao chamar a atenção para tais questões não ignoro que obras literárias gozam de liberdade poética e, a depender de sua proposta estética, transgridem convenções. Contudo, liberdade poética e proposta estética são algo que a própria obra se encarrega de, por meios os mais diversos, comunicar ao leitor ou ao crítico mediante competente manipulação de signos. A manipulação é, ela própria, uma forma de comunicar, de indiretamente “abrir o jogo”. Abertura que não necessariamente tem a ver com o enredo. Há uma proposta, clara desde o início ou difusa, mas que o andamento do texto, não obstante, se encarrega de clarear. E vários são os exemplos de obras assim. Para citar um caso nosso, contemporâneo, lembro o ótimo e enigmático livro com que o paraense Arthur Cecim arrebatou o Prêmio Sesc de Literatura em 2010, livro publicado em 2011 e do qual pretendo falar mais à frente.

Mas para o presente termino por aqui, não sem antes reafirmar que todas as observações dizem respeito exclusivamente ao livro “A festa dos mortos”, e que, em nome do esmero citado, cabe ao IAP atentar para os critérios que aqui, caso específico, deixaram a desejar.

 

Post-Scriptum:

Relato da escritora Lindanor Celina em “Pranto por Dalcídio Jurandir” (Belém, SECDET, Falangola, 1983) sobre posicionamento de Dalcídio Jurandir acerca da noção de Escritor:

Dalcídio – já vos disse, repito – era um homem pacífico. Um tranquilo. Inimigo de disputas, jamais um rancoroso. Muita coisa revoltava-o, e mais que tudo a injustiça, a desmesurada desigualdade que há no mundo. Disso deu testemunho não apenas com a sua obra, mas com seu exemplo próprio: conheceu a prisão, a pobreza, talvez a fome. Por suas ideias pagou. Mas não era um atrabiliário, um raivoso, longe disso. E das poucas vezes em que o vi furioso, mas furioso mesmo, ainda que sua fúria fosse (mal) controlada, foi quando inadvertidamente – por ignorância, digamos – eu formulava conceitos imbecis a respeito do que seja na verdade a vocação de um escritor, um romancista,um criador.

Para ilustrar, narro o fato. Acontecido em Belém, um encontro que tivemos: local exato? Não lembro, mas a cidade foi Belém. A terceira pessoa, um colega meu de infância, velho amigo de Bragança, cujo nome prefiro calar. Arguto, sagaz, eu o admirava desde criança. Ainda garota de Grupo Escolar (ele rapaz), meus primeiros anos de escola primária, eu pasmava perante aquele humor, a verve aliás peculiar a toda a sua família. Como ele me impressionava! Vai, encontramo-nos num bar, é isso, foi num bar, e o apresentei a Dal. E fiz, teci ali mesmo uma porção de elogios ao amigo: “Dal, você nem imagina, este moço não é escritor porque não quer, com a inteligência que tem!” – e por aí fui. Bem vi o rosto de Dalcídio ir-se fechando. Mas era de poucas festas, mormente com desconhecidos. Não me alarmei, continuei com a minha parolagem endeusando, pondo o rapaz nas alturas, aventava até a hipótese de ele escrever um romance sobre o Salgado. E o Dal mudo. Vi então que estava era falando sozinha – o amigo teria talvez notado, alertado que era (é) de que a minha “fala” não estava encontrando o mínimo eco no nosso escritor. Calei-me, meio sem jeito, o de Bragança despediu-se. E mal deu ele as costas, Dalcídio explodiu: Deu à sua cólera uma vasa, um despejar que eu nunca imaginara, não se tratava de uma zangazinha qualquer, nada, raiva mesmo, era a primeira vez que eu descobria esse Dalcídio, e não acordava do meu sarapanto, de boca aberta, ouvindo o ralho-monstro:

– O quê que você está pensando que é um escritor, um romancista! (ralhava, a voz baixa, contida, mas pior, cem vezes pior que se esgoelasse)! Prosseguia, implacável: “É por isso, por gente como você, por um incentivo descabido desses que todo mundo se mete a escrever! Tudo quanto é ofício, tudo quanto é arte se aprende na dureza, no sacrifício, só a literatura todo gato pingado pensa que é capaz! Você não vê?! Os profissionais, em qualquer domínio, qualquer! e nem se diga que são frustrados, não, gente que é notável, admirável até na carreira que escolheram: médicos, juristas, o diabo! Pois bem: enquanto não escrevem, não cometem, não perpetram um livro não sossegam e nem se julgam realizados! O cúmulo! Como eu, que sou nulo em música e para isso nunca tive o menor dom, por um exemplo encontrasse ali naquela mesa o Paganini, e lhe dissesse: “Arreda pra lá, me deixa tocar esse teu violino!” A literatura, minha senhora, é uma coisa muito séria. É uma arte. E não é artista quem quer. Em âmbito nenhum. Que pessoas incultas ou que não são desse meio proclamem essas bobagens não me admira, é assim! Mas você – me olhava, os olhos me mediam, me davam certo medo – você, minha dona, já devia saber que um livro não se faz só porque se quer! Escrever bem é dever de todo alfabetizado. Todo o que tem um curso primário bem feito deve escrever correto. Mas escritor?!” (pp. 63-65).

 

 




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