O preço de ser negro em Portugal


……[Zé da Guiné fotografado por Luís Branco do jornal Público]

 

 

Os textos de Kalaf Epalanga perfazem um pequeno e representativo corpus de como escritores afro-diaspóricos elaboram – no dizer da professora de literatura comparada de língua portuguesa, Rosangela Sarteschi –  “literariamente aspectos importantes das tensas relações sociais, econômicas e raciais em Portugal ainda às voltas com os desdobramentos de seu passado colonial e os impasses dessa condição”.[1]

Nesse corpus poderiam ser lidos também os textos híbridos (crônicas, contos?) de Djaimilia Pereira de Almeida (por exemplo, “Uma fotografia com Mariam”) e de Bernadete Pinheiro e Matamba Joaquim (por exemplo, “De onde és?).

Podemos acrescentar à leitura de Rosangela que tais textos problematizam também a questão da desterritorialização e do ‘pertencimento’ de um ‘eu’ que se configura e se reconhece como sujeito em sua vivência na diáspora, uma diáspora negra que está no centro do outrora Império e que, mesmo estando no centro (ou talvez por isso mesmo), vive à margem.

A questão de o que seria a identidade portuguesa se evidencia nos textos referidos de Djaimilia Pereira de Almeida e de Bernadete Pinheiro e Matamba Joaquim. Em “Uma fotografia com Mariam”, soma-se a isso a questão da língua na diáspora e da diferença de classe social. A narradora comenta que Mariam (trabalhadora da limpeza no escritório em que a narradora também trabalha) quase não falava português, por ser da Guiné Conacri (cujo idioma oficial é o francês), o que dificultava o entendimento entre as duas, pois a narradora é de origem angolana (que tem o português como idioma oficial).

“Uma fotografia com Mariam” dialoga com “De onde és?” de Bernadete Pinheiro e Matamba Joaquim no sentido de uma curiosidade recorrente entre os interlocutores sobre a origem das personagens. No texto de Djaimilia, é referido que “adivinhar a origem uns dos outros é um dos grandes divertimentos africanos na Diáspora”. Por outro lado, no texto de Bernadete e Matamba, ouvir constantemente a pergunta ‘de onde és?’ feita pelo europeu branco é tomar contato com a manifestação, tão bem analisada por Grada Kilomba,[2] de uma nova e mutante forma de racismo que “raramente faz referência a ‘inferioridade racial’” como no século 19 e início do século 20.

A pergunta “De onde és?”, sofrida pela personagem, revela que sempre “que ela é interpelada, a ela está sendo negada uma filiação nacional autêntica com base na ideia de ‘raça’”.[3] O questionamento é uma forma de lembrar/mostrar-lhe que este não é o seu lugar e que, na realidade, a pessoa negra não poderia, nem pode, ser europeia.

[Os escritores Djaimila Pereira de Almeida e Kalaf Epalanga em Paraty; Foto by Marcus Leoni/Folhapress]

 

As crônicas de Kalaf Epalanga também são atravessadas pelas questões de raça, língua e cidadania. Embora ele não hesite em abraçar Lisboa como sua cidade e Portugal como seu país, seus textos revelam um paulatino despertar ao fato de ser negro em um país com a mesma língua e com o mesmo “substrato cultural religioso” que o seu.

O gênero já híbrido da crônica é complexificado pela vivência diaspórica de Epalanga e a interconexão com suas experiências musicais com os ritmos da kizomba, do semba e, posteriormente, com o kuduro.

Uma das características do gênero crônica é a narração de situações cotidianas com uma ótica individual e, mesmo quando trata de situações dramáticas ou tensas, o tom habitual da narrativa é quase sempre carregado de leveza. Podemos notar essas características em todos os textos de Epalanga.

Embora o gênero crônica careça de maior aprofundamento crítico e técnico, ele é reconhecido como um meio-termo entre a literatura e o jornalismo. No Brasil, por exemplo, tivemos grandes artífices da crônica. Autores que a elevaram a patamares artísticos consideráveis. Pensamos aqui nos escritores Rubem Braga, Carlos Drummond de Andrade, João do Rio, Clarice Lispector, Paulo Mendes Campos, entre tantos outros.

As crônicas de Kalaf Epalanga foram publicadas no jornal Público e reunidas em duas edições: Estórias de amor para meninos de cor e O angolano que comprou Lisboa (por metade do preço).

Kalaf Epalanga nasceu em Benguela, Angola, em 1978, e foi para Lisboa na segunda metade dos anos 1990 enviado por sua mãe que tinha medo da situação instaurada pela guerra civil em Angola depois da conquista da libertação do jugo português. Kalaf partiu para viver com o pai que, depois da separação, havia se mudado para morar e trabalhar em Lisboa.

Portugal entrara para a União Europeia e vivia a empolgação do progresso e do desenvolvimento. Em uma de suas crônicas, quando ainda assinava como Kalaf Angelo, ele comenta:

Respirava-se algo a que poderíamos chamar de prosperidade, o consumo finalmente florescia e a produtividade aproximava-se dos padrões europeus. […] Portugal, que até então só conhecera a realidade da emigração, recebia cada vez mais estrangeiros provenientes das ‘ex-colónias’, do Leste Europeu e Balcãs. Todos sôfregos pelo novo ‘El Dorado’. Uma vez chegados, a maioria era remetida para as margens da cidade, os guetos dos sonhos desfeitos, onde, na luta pela sobrevivência, se engole o orgulho para mastigar o pão.[4]

Seus textos revelam o olhar desse negro desterritorializado que se percebe negro em meio aos confrontos e tensões sociais e raciais de uma sociedade branca e racista que tenta camuflar ou silenciar seu passado recente de colonizador. Um Estado que evita reconhecer a diversidade cultural e racial que lhe caracteriza e omite-se em enfrentar com honestidade o problema do racismo. Qualquer semelhança com o Brasil não é mera coincidência.

Epalanga celebra em suas crônicas uma Lisboa nem portuguesa nem angolana. Para ele, Lisboa é o centro do mundo e um lugar onde a mistura entre culturas e a música se torna possível.

Lisboa é uma cidade mestiça, é moura, é africana, é mundo; e a solução para a crise, creio, passará por nos reconciliarmos com a história deste lugar único, geograficamente bem localizado, bem no centro do triângulo entre Américas, África e Europa, para lá dos Pireneus. Este é o lugar que chamamos de casa, um lugar economicamente falhado, mas culturalmente rico, com um péssimo plano de marketing, mas com conteúdo e uma história para contar. Por que não começarmos com um passinho de dança?[5]

Epalanga é, hoje, um músico reconhecido no círculo europeu e, além das duas coletâneas de crônicas, publicou uma narrativa editada pela Todavia, em 2018, no Brasil, Também os brancos sabem dançar, na qual conta sua trajetória musical, a história do kuduro e da kizomba, e faz um retrato de Benguela e da Lisboa que o recebeu.

Kalaf ficou muito conhecido com sua banda Buraka Som Sistema e passou a viver entre Lisboa e Berlim como grande “agitador cultural”. Foi cofundador do selo musical Enchufada, e além de escrever para o jornal português Público e o GQ Portugal, também escreve para o jornal angolano independente Rede Angola e para a revista brasileira de livros, Quatro cinco um.

Podemos dizer que não foi pelo domínio da língua do colonizador, ou do compartilhamento da mesma cultura religiosa que Epalanga se tornou conhecido e reconhecido. Foi com sua experiência musical e, metaforicamente, com seu jogo de cintura, o kuduro (que ironizava a falta de ginga e o quadril duro do ator belga Van Damme, como veremos).

As três crônicas que comentamos a seguir fazem parte do livro O angolano que comprou Lisboa (por metade do preço) de 2014. O título já é hilário, o que revela o tom desse angolano que ginga entre os desafios e contradições.

Em “Lisboetas”, Kalaf relembra sua chegada à Lisboa, uma cidade que ele não escolhera viver. ‘Como éramos provincianos’, diz Epalanga. Atualmente, ele e os outros afro-diaspóricos já conseguem disfarçar um pouco o provincianismo, embora ele ainda não tenha se livrado “do rótulo de imigrante” (uma vez imigrante, sempre imigrante; e mesmo que consiga os papéis, sua pele o revela), o que se relaciona com o que Grada Kilomba aponta em seu livro já mencionado, especificamente nos capítulos “Políticas Espaciais” e “Quem Pode Falar?”, e que se observa nos textos de Djaimilia Pereira de Almeida e de Bernadete Pinheiro e Matamba Joaquim.

Na Lisboa de Epalanga, muitos já envelheceram, casaram, perderam o ímpeto e se deixam ficar largados no sofá, em uma espécie de banzo às avessas. Quando chegaram ainda estavam deslumbrados pelos subsídios da União Europeia que, aparentemente, tornavam a todos mais europeus. O que significa, subliminarmente, se tornar mais branco.

Embora em suas crônicas Lisboa seja tratada como um personagem, personificada com o nome de ‘Lisa”, o inocente romantismo dessa Lisboa da chegada já havia passado e muitos quiseram emigrar, voltar para Angola ou vir para o Brasil, pois para eles faltava tudo, o vazio do não pertencimento não se preenchera, e não se preencheria nunca.

A crônica encerra com a paradoxal constatação de Epalanga que sente falta dos lisboetas em Lisboa. Os lisboetas também se evadiram da cidade, principalmente os mais jovens como sabemos.

 

Na crônica “Homem, filho e preto”, Kalaf narra mais detalhes de sua chegada à Lisboa e revela que a ela foi quase tranquila. Não houve grande choque cultural, afinal ele partilhava da mesma língua e dos valores culturais nutridos pela religião católica. O único problema para sua integração na sociedade lisboeta foi a cor da pele (sempre ela, não?). E isso não foi um simples detalhe para ele.

Pela primeira vez em sua vida teve que refletir sobre sua identidade, sua cor de pele e sobre sua existência. Estava na mais africana das capitais europeias e observava que os pretos eram socialmente empurrados para as periferias dos centros urbanos.

Deu-se conta que sabia muito pouco sobre o que significava ser preto e começa, então, a perceber nas entrelinhas, de forma quase imperceptível, “entre as sílabas engolidas”, o racismo latente e escamoteado dos portugueses.

Essa tomada de consciência o leva a buscar conhecimento, leituras e documentários sobre o tema. O livro Lisboa, na Cidade Negra, do etnólogo francês Jean-Yves Loude, o fez vivenciar o clichê de que alguém de fora sempre observa e conta nossa história melhor.

No livro, Jean-Yves percorre Lisboa à procura da história da presença da imigração africana e joga luz sobre as influências culturais dos cabo-verdianos, angolanos, guineenses, moçambicanos e são-tomenses nas esculturas, arquitetura, nos quadros, nos elementos jurídicos e acontecimentos históricos.

Embora Kalaf tenha comentado sobre a partilha da língua, que havia facilitado sua interação na chegada à Lisboa, quando esteve no Brasil, convidado pela Flip em 2019, comentou o seguinte sobre a língua em um dos eventos paralelos:

O que nos liga está acima da língua. As palavras oprimem, as palavras não são inclusivas. Essa língua que estamos falando não é minha, nem é nossa. Nos foi imposta. E estamos fazendo algo mais bonito do que os colonizadores. Por isso eu adoro como o nordestino e o funkeiro falam. Porque dessa forma estamos desmontando essa língua. A língua é a primeira ferramenta de opressão. Mudaram nossos nomes. Disseram lá atrás que você não se chama mais Quani, agora é João. Isso aconteceu. Língua? Língua é o caralho.[6]

E sobre Lisboa ser a cidade mais africana da Europa, ele comenta o seguinte:

Digo que Lisboa é a cidade mais africana da Europa não pela quantidade de negros, mas por esses africanos brancos, que não parecem africanos. Aqui no Brasil vocês reconhecem alguns, como José Eduardo Agualusa, de Angola, e Mia Couto, de Moçambique. Mas eles por condição, medo ou preguiça intelectual vivem na sombra, e eu os provoco constantemente. A melhor forma de evoluir é nos incluirmos a todos.[7]

Na crônica “Minha cor política”, um amigo antigo de Kalaf telefona no meio da noite e lhe pergunta: “Quem é o negro português?”

Seu amigo queria saber qual era o verdadeiro rosto do negro luso. O que o faz refletir que a questão poderia ser abordada de várias perspectivas. Aspectos lusos, mouros e negros poderiam ser elencados.

O negro português era aquele que descobriu o caminho marítimo para a Índia. Ou aquele que ‘descobriu’ o Brasil. Ou aquele que já praticava a astronomia. Ou aquele que estava na origem das caravelas.

Todas essas questões foram silenciadas pelos brancos porque os negros pareciam não se interessar pelo assunto. Os negros, como ele também, haviam assimilado direitinho a língua, os modos, a religião, o falar tímido e a driblar essas questões problemáticas.

 

Cultura musical em Portugal

No caso de Kalaf Epalanga, como já dissemos, não foi pelo domínio da língua do colonizador, nem pelo compartilhamento da mesma cultura religiosa, nem mesmo pela sua escrita e projetos literários que ele se destacou. O que o diferenciou (além da cor da pele, não podemos esquecer) e o tornou respeitado e conhecido foi a sua experiência musical.

Sua experiência em Portugal insere-se nas análises de António Contador sobre a “cultura juvenil negra em Portugal” (2001), e sua conclusão de que os jovens negros em Portugal estão a estabelecer uma nova identidade por meio da música. Para Contador, as noções relacionadas ao conceito de identidade em termos de uma cultura de origem e da ideia de pertencimento étnico estão sendo ultrapassadas pela ênfase nas “condições que viabilizam a sua readequação e o seu manuseamento enquanto ‘referência’ ou instrumento da identificação”.[8] A música é vista como uma chave para entender os contornos de identificação dos jovens negros em Portugal. Essa tese, a meu ver, ainda precisa de mais estudo e aprofundamento crítico. “Ultrapassar”, no sentido de superação, não me parece ser o viés crítico adequado.

Em sua narrativa autoficcional já mencionada, Também os brancos sabem dançar, Epalanga conta-nos um pouco do fundo de cena que o levou a mergulhar na música e nas performances com sua banda e, também, a origem do ritmo que o tornou famoso.

Epalanga diz que a dancinha quadrada e sem ginga do ator belga Jean-Claude Van Damme ao som de “Feeling So Good Today”, no filme Kickboxer, foi a epifania inaugural do kuduro. O jovem Tony Amado em Angola se inspirou nela e criou, em cima de uma base rítmica feita no sintetizador, o clássico “Amba Kuduro”, originando o gênero e a dança.

O kuduro é uma dança próxima ao break dance norte-americano misturado com o ndombolo do Congo e com elementos plásticos angolanos que enfatiza o ritmo e o uso de palavras inusitadas.

 

Conclusões inconclusivas

Os escritos de Kalaf Epalanga parecem sugerir uma complexa e constante negociação com o que ele chama de identidade “afroeuropeia”. Identidade híbrida como ele deixa subentendido ao afirmar em uma de suas crônicas: “não sou apenas preto”. Há muitas camadas em mim, quer ele dizer.

Epalanga chega a referir que, conforme vai articulando sua negritude na Europa, vai se identificando mais com o conceito de “polinegritude ou hipernegritude”, mais próximo da condição atual de ser negro na Europa e, particularmente, em Portugal. Para ele as identidades não podem ser simplificadas, pois são polimorfas e em constante redefinição.

Uma coisa nos parece certa. Epalanga e outros autores da diáspora em Portugal colaboram com o grande debate sobre o que seria a identidade nacional de Portugal. A comunidade imaginada portuguesa tem de enfrentar muitos desafios, vários desencadeados pelas crises da União Europeia e pelos efeitos da diáspora que, desde a década de 1960, fustigam inclementes uma sociedade que precisa encarar-se com seriedade e honestidade e repensar-se enquanto resolve três questões relevantes da mesma equação: raça, língua e cidadania.

 

 

 

[1] SARTESCHI, Rosangela. Literatura Contemporânea de Autoria Negra em Portugal: Impasses e Tensões. Via Atlântica, nº 36, 283-304, São Paulo.

[2] KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. p. 112.

[3] KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. p. 113.

[4] ANGELO, Kalaf. Estórias de amor para meninos de cor. Portugal: Editorial Caminho. [lido no Kindle]

[5] Ibidem.

[6] Disponível em: <https://www.saibamais.jor.br/kalaf-epalanga-a-lingua-e-a-primeira-ferramenta-de-opressao/>. Acesso em: 24 nov 2021.

[7] Ibidem.

[8] CONTADOR, António Concorda. Cultura Juvenil Negra em Portugal. Oeiras: Celta Editora, 2001. p. 2.

 

 

 

 

 

 

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Edson Cruz (Ilhéus, BA) é poeta e editor do site Musa Rara (www.musarara.com.br). Fundou e editou o histórico site de literatura, Cronópios. Estudou Música, Psicologia e, ainda estuda, Letras (USP). Seus textos críticos aparecem no Jornal Rascunho e no site Musa Rara. Lançou em 2020, Pandemônio (poemas) pela Kotter Editorial e, em 2021, Fibonacci blues – uma novela fractal, pela mesma editora. Apresenta todos os sábados o programa CONFRARIA DA PALAVRA na Kotter TV.




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