O planalto e a estepe


..Aquela geração por outras terras: um romance geográfico

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O novo romance de Pepetela, O planalto e a estepe, pode ser visto de várias maneiras. Por exemplo, como um desdobramento do outro romance do autor, A geração da utopia (1992), quase formando com ele um díptico. Afinal, o branco Júlio Pereira (como a Sara Pereira do outro romance, embora não sejam parentes) também é um dos membros daquela geração, um dos estudantes que deixaram Portugal em 1961, no início da guerra de libertação, um dos que foram para o exílio, um dos que pegaram em armas e combateram pela independência de Angola, ficando, nesse tempo, conhecido como comandante Alicate. Como outro personagem daquele romance, Aníbal, dito comandante Sábio, Alicate não se corrompeu nem antes nem depois da vitória. Mas seus motivos para essa incorruptibilidade talvez sejam menos políticos, mais de ordem pessoal. Júlio Pereira “Alicate” tem uma aspiração, um desejo, que não pode ser satisfeito ou alcançado por meio do poder e tampouco por meio da riqueza. É a melancolia, a falta, o vazio resultante de um grande amor da juventude que ele acredita para sempre perdido e que não consegue esquecer.

E este já  é outro modo de olhar para o romance, destacando o tema em torno do qual ele é construído, um motivo principal, um tópos encontradiço em todos os tempos e em todas as literaturas: os amores contrariados. Ao lado dos shakespearianos Romeu e Julieta, dos camilianos Simão e Teresa, dos garciamarquezianos Florentino e Fermina, temos agora os pepetelianos Júlio e Sarangerel, a contrariada união do planalto sulano de Angola com a estepe da Mongólia. E esse encontro e separação acontecem num terceiro ponto da geografia política internacional: em Moscou (ou Moscovo, como quer o autor), então capital da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Também passa por Cuba, em algum ponto da “larga e sinuosa curva para o amor” (p. 9) em que se resume, nas palavras do próprio protagonista, sua vida. É um cenário novo, que não aparecia no roteiro percorrido ao longo do romance anterior, Lisboa, Paris, Argel e Angola.

Podemos acompanhar outras transformações de ordem geopolítica ao longo do romance. Júlio Pereira chega a Moscou no ano de 1964. Nikita Kruchtchev ainda era o secretário-geral do PCUS, o homem do poder. Mas a História continuava em marcha:

o mal-amado por ter denunciado anos antes, uma série de crimes e erros do endeusado Estaline, dando assim munições ao inimigo, foi derrubado e sucedeu-lhe o cinzento Brejnev, buldogue de cara e corpo, de cuja boca opaca nunca sairia nada de que o Partido se arrependesse. Havia golpes e contra-golpes na pátria perfeita do socialismo, cartas escondidas debaixo da mesa, pior, facas escondidas nos casacos, sangue escorrendo pelas paredes. // — Vês? — disse Jean-Michel na altura da queda de Kruchtchev. — Ensinam-nos a pureza das ideias mas praticam todas as sujidades. Isto foi um verdadeiro golpe de Estado. (p. 46)

Paralelamente ao desenvolvimento da intriga principal do romance, como Júlio Pereira, mesmo depois da independência de Angola, por deveres do seu ofício militar, continua mantendo contato com os soviéticos, podemos testemunhar o clímax das transformações:

No dia (…) quando a URSS implodiu fragorosamente, relembrei, como todos os dias afinal, aquele general que nunca aceitou ser meu sogro. Ainda existiria? O campo dito socialista tinha derrocado com estrépito, em consonância com o Muro de Berlim. A Mongólia iniciava um processo semelhante ao da Rússia, com tentativas serpenteantes de passar a uma democracia formal, mas denotando demasiado peso do passado maniqueísta. (p. 139)

Numa outra passagem, contrariando o que parece pensar o senhor Mário Vargas Llosa, acreditando-se responsável, em alguns de seus textos, pelo fim da União Soviética, o narrador do romance aponta para os verdadeiros responsáveis, os próprios soviéticos, em especial seus últimos dirigentes, praticamente sem a ajuda de mais ninguém: “agora que esses regimes se corroeram por dentro e desapareceram, os antigos responsáveis ainda se perguntam porque foram derrotados” (p. 155).

Um outro modo ainda de olhar para a obra seria considerando-a como o romance de aprendizagem de Júlio Pereira. Aprendizagem sobre o racismo, na infância e adolescência, em Angola. Racismo que separava brancos e negros e que o branco menino Júlio, com seus amigos negros, nem percebia, precisando ser advertido com certa truculência para vir a atentar nisso. Já na infância a consciência da situação colonial se estabelece:

Estávamos situados no fundo da escala social entre os brancos, chicoronhos, o que era uma corruptela sem maldade de colonos. Já o termo mapundeiros era ofensa usada pelos outros brancos contra nós, por a nossa zona ser a Mapunda, onde se refugiavam os mais miseráveis dos brancos. No entanto, éramos ricos se comparados com os negros, nossos serviçais. (p. 18)

Outro importante momento da educação de Júlio acontece quando ele encontra o padre (e para ele, professor de Filosofia) transferido de Goa para os cafundós de Angola por não pensar tão ortodoxamente como queriam as autoridades do Império, fossem civis, militares ou eclesiásticas:

(…) isso de ser amigo ou não dos pretos e insistiu, Jesus Cristo disse para sermos todos irmãos e eu fazia muito bem em ser amigo de todos, não havia nisso pecado, antes pelo contrário, pecadores eram os que diziam só os pretos podem ser amigos dos brancos, não o inverso. Esses são racistas e são colonialistas. // A palavra nova estoirou em mil relâmpagos de luz na minha cabeça. // Fiz o professor repetir e ele disse, não confundas com colono, chicoronho, isso é outra coisa, são apenas pessoas que vão para outras terras, neste caso os que vieram de Portugal para cá porque lá morriam de fome. Colonialistas são os que querem que os africanos sejam sempre inferiores, sem direitos de gente na sua própria terra. (p. 23)

E o narrador informa o destino que teve esse padre: “obrigaram- no a partir para o Vaticano e por lá ficar a envelhecer e fazendo estudos de Teologia. Até se perder e esquecer que havia vida no universo. // Os homens bons duravam pouco na nossa terra.” (p. 24)

Em Moscou, Júlio vai conhecer outra espécie de racismo. Apaixonado (e correspondido) pela delicada Sarangerel, a filha do Ministro da Defesa da Mongólia, será repudiado (não por ela), mesmo branco e de olhos azuis, por não ser mongol. Ele percebe que o racismo pode ter mais de uma forma e percebe também que certas palavras de ordem serviam apenas para ser usadas como slogans. Ao saber da gravidez de Sarangerel, Júlio não tem dúvidas sobre o que deve ser feito quanto ao pai dela:

— Posso convencê-lo a deixar-te casar e continuarmos a estudar. Bolas, e o internacionalismo proletário? A Mongólia, como país socialista, apoia a luta dos povos oprimidos. O meu povo é colonizado e eu sou um lutador pela liberdade do meu povo. O meu Movimento é aliado do Partido dele, tem de ser sensível a esse argumento. Agarremo-nos à política, ela pode ajudar-nos. // Sarangerel segurou a minha mão. Com as duas, como era seu hábito. // — Não conheces o meu pai. Não conheces a Mongólia. Acho até que não conheces os países socialistas. (p. 64)

E os acontecimentos mostrarão como a jovem, apaixonada porém perfeitamente lúcida, tinha razão. O poderoso general, vendo-se desobedecido, trata de mandar sequestrá-la, ou melhor, faz com que ela seja recolhida, sumariamente, mesmo grávida, à Mongólia. E os camaradas soviéticos, ignorando com toda a solenidade o internacionalismo proletário e a solidariedade e amizade entre os povos, olhariam para o lado enquanto a moça era levada para a inexpugnável (pelo menos para Júlio) cidade de Ulan Bator.

Os sucessos posteriores a esta forçada separação deixaremos para o próprio leitor descobrir. Apenas queremos adiantar que, se este romance, como fizemos, pode ser associado ao camiliano Amor de perdição, também pode, igualmente, ser associado ao Amor de salvação. E que devemos nos lembrar que se o garciamarqueziano O amor nos tempos do cólera começa como uma história de amores contrariados, não termina assim. E que pelo menos um país no campo socialista sempre honrou seus compromissos de solidariedade internacional. Diz Júlio Pereira, numa determinada passagem: “Cuba nunca me traiu, essa ilha me dava de facto sorte.” (p. 171)

Apenas mais uma coisa, gostaríamos de destacar. O muito dialético conflito entre uma concepção espiritualista e o ateísmo científico, embate que acompanha a trajetória do protagonista. A princípio, na adolescência, esboça-se a recusa, o levante contra a religião ancestral dos brancos, seguido de rápido e temeroso recuo:

E eu expliquei ao João, se Deus existisse, já me tinha lançado um raio em cima porque estou a mandar bocas contra ele. E se existisse não aceitava ser representado por um padre tão burro como o Mateus. João fez o sinal da cruz e bateu com a mão na boca. E Deus não deixaria que dois matulões de chapéu encostassem um rapaz de quinze anos à parede para lhe chamarem um nome feio e amigo dos pretos. Então tem mal ser amigo de pretos? Onde está Deus no meio disto tudo? É melhor que não exista. Porque, se existir, então é um filho da puta. O João fugiu, tapando os ouvidos, com medo de ouvir mais heresias. (…) // (…) // Mas eram mesmo só bocas. Depois fui esconder-me para rezar e pedir perdão a Jesus Cristo pelas blasfêmias proferidas. (p. 22)

Mais tarde, já fortalecido em sua descrença pelos estudos de ateísmo científico na União Soviética, depois de um quase milagroso pouso noturno em Benguela, sem nenhuma espécie de sinalização ou iluminação na pista, nos últimos tempos da guerra de independência, não se peja de fazer a seguinte declaração: “Sempre achei haver uma mão por baixo de mim, me sustentando. E não de Deus, sou orgulhosamente ateu.” (p. 127) Parece parodiar, autozombeteiramente, o “orgulhosamente sós” de Salazar para Portugal. Ainda mais tarde, quando se reacende a esperança de reencontrar Sarangerel, eis a súplica que Júlio faz: “Mas me concedam, ó deuses inexistentes e apesar disso cruéis, a consolação de falar uma hora com ela e de poder contemplar aquele rosto redondo de Lua Cheia.” (p. 150) E as súplicas, as preces, mesmo aos “deuses inexistentes”, sempre correm o risco de ser atendidas:

Deixem-me contemplar a sua face, tinha pedido a todos os espíritos… e finalmente estava a fazê-lo. Tantos anos a implorar a deuses e demônios, primeiro aos deuses dos diferentes comunismos, depois aos nossos deuses se escondendo astutos nas encruzilhadas, mais tarde a indiscriminadas divindades ou belzebus de todas as religiões, para me deixarem apenas vê-la, e finalmente chegar ao destino… Cheguei. (p. 154)

Ao fim, saberemos que de alguma forma triunfou a espiritualidade, descobriremos que o relato que acabamos de ler pertence a uma espécie de subgênero romanesco, as memórias póstumas:

Entretanto, deambulo em novas viagens. Etereamente. Agora sobre a Serra da Chela. Podia ir visitar as estepes da Mongólia, ou as montanhas Altai. Ou até  planar sobre as ilhas do Pacífico. Mas não me apetece. Prefiro o Planalto a partir da Chela, as rochas de muitas cores, as falésias e suas cascatas, o verde dos prados, o campo das estátuas, o milho ondulando, as árvores retorcidas pelo vento. E pairar sobre a gigantesca fenda da Tundavala, fenda que aponta o deserto. E o mar. E aponta o Sul, o grande Sul. O Sul da minha vida. (p. 188)

É com esta descrição de geografia física que se encerra este belo, tocante, engraçado, sarcástico, comovente e, mesmo sendo, como dissemos, um caso de memórias póstumas, tão vivo romance.
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(Pepetela. O planalto e a estepe. São Paulo: Leya, 2009.)

 

 

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[Resenha publicada na parceira Revista Crioula]

 

 

 

 

 

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Luiz Maria Veiga é Mestre em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa/FFLCH/USP.




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