O olhar da fome com Pix


Passei Natal e fim de ano em SP e no dia 30 de dezembro saí de carro por uma cidade ôca, que se gritasse era o eco quem responderia. Mas não, na pequena volta para ir ao Ibirapuera caminhar, ao Correio postar presentes de Natal – que não pude ir antes pela minha gripe -, um pulo no mercado do bairro para comprar ingredientes para fazer minha ceia solita e outro pulo na casa de amigo querido para deixar uns pães de mel, para adoçar seu ano, vi que a cidade não estava vazia. Nesta pequena volta de carro não encontrei uma, mas sete famílias carregando cartazes com o mesmo tema: pediam qualquer ajuda para tirá-los da fome, “Tenho 3 crianças em casa com fome, me ajude”, “Estou desempregado e sem teto, e tenho fome”. Num farol fechado veio um garoto sozinho, muito pequeno, uns 6 aninhos, de olhos amendoados e mascando chicle, eu perguntei: Cadê sua mãe, seu pai? Estão em outro farol, para ver se rende mais. Aquela ali com o bebê no colo é minha avó com minha irmã. Estou com fome, moça.

Olhei para seus olhos e vi que era mais que fome, era a vontade de ser menino, de poder brincar, ir para a escola e não trabalhar para a família como pedinte. Em todas as placas havia o número do Pix para doações, para dificultar a recusa, e as velhas desculpas do “estou sem trocado”, “dei na outra esquina”. O garoto mexeu comigo, assim como o cego, também mascando chicle do belíssimo conto “Amor”, de Clarice Lispector. Sim, minha bolsa estava no porta-malas, é assim que faço quando vou ao parque. Fiquei de voltar. O farol abriu, segui adiante e fiz tudo o que precisava, e quando voltei para a esquina cadê o garoto do olhar meigo e assustador da fome? Ele já não estava lá. Levei o olhar do garoto comigo até eu ir dormir, mas quem disse que eu conseguia? “A raiva dá pra parar, pra interromper/A fome não dá pra interromper/A raiva e a fome é coisas dos home”, canção de João Bosco e Aldir Blanc, de 1976, “O ronco da cuíca” é atual. Triste, mas é.

Fiquei com dó daquelas famílias todas na cidade vazia, que se baldearam para os Jardins e Santo Amaro, na esperança que passassem mais pessoas, mas não, para muita gente estas pessoas são invisíveis, “é gente à toa; fortão vai trabalhar ou pedir é fácil, por que não vende algo em vez de pedir?” Mas comprar como? Até na ótica que fui arrumar meus óculos o rapaz falou que ia fechar às 16horas, pois além de não ter movimento algum, era “prato cheio para assaltantes de final de ano. É do jeito que está a situação está grave, a miséria é enorme”.

Já é praxe quando vou ao supermercado, na entrada ter alguma pessoa pedindo dinheiro ou comida. Geralmente compro um pacote de feijão, um detergente ou sabão e um sabonete- produtos, que como todos, sobe a preços galopantes-, para que ela possa cozinhar para a família e mais um sanduíche para matar a fome do momento. Tem gente que acha bobagem, ah, eles vendem aquela comida toda que ganham. Que façam o que quiserem, a fome é deles, e eu pergunto “você tem fome de quê?” Como dizia a canção “Comida”, de 1987, composta pelos Titãs Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sergio Brito. Fome! Como não se e importar? Não dá para ficar parado e deixar passar. Levei o olhar do garoto comigo. Levo comigo também a imagem da enorme fila das pessoas carentes que se forma diante da Igreja Assunção”. As pessoas estão precisando de ajuda. Ajudo, sim, como posso, alguns amigos ao meu redor. Quem não tem um alguém próximo em situação complicada? E como são gratos! Acho que ter compaixão e contribuir com o que posso é obrigação.

Uma amiga tomou a iniciativa de mobilizar os moradores do seu prédio, que tem dois blocos de apartamentos a fazer mutirão para doar para uma igreja, e isso não foi na época do Natal, mas bem antes. A ideia foi tão boa que várias pessoas passaram a colaborar com frequência, levando o carro cheio de roupas e alimentos não perecíveis, reunindo outras pessoas de seus relacionamentos

Com o índice de desemprego, aliado à questão da moradia e a pandemia dando sinais de elevação de casos, levar o dindim para casa está cada vez mais difícil. Não precisa ir longe, tanta gente se desdobrando em mil… Neide, que faz faxina aos sábados aqui em casa, trabalha durante a semana num emprego fixo, e para ganhar mais algum, toma conta dos gatos da patroa quando viaja. Sua filha estuda Direito, está empregada num ótimo escritório na área, seu filho está no Ensino Médio e seu marido é pedreiro dos bons e trabalha por empreitada, não tem faltado serviço. Família que é exceção. Ela mora no Grajaú e vem de trem. Diz que junto com o pessoal que vai dar duro nos outros bairros, tem muita gente miserável pedindo auxílio dentro dos vagões que vem da periferia.

Que estamos retrocedendo em todas as esferas não é novidade para ninguém, por isto, se você que me lê quer ajudar e não sabe como, há uma lista ótima que saiu no UOL ECOA na matéria de Juliana Vaz, que levantou locais no Brasil inteiro que estão precisando de doações.

Agora se além de ajudar como pode, se quer fazer realmente algo pelo país, pense nas próximas eleições e com o coração na boca leia os versos de “Gente”, de Caetano Veloso em 1977, que fala por si, hoje mais que nunca:

Gente lavando roupa, amassando pão,
Gente pobre arrancando a vida com a mão,
No coração da mata, gente quer prosseguir,
Quer durar, quer crescer,
Gente quer luzir …
Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome

 

 

 

 

 

 

 

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Marina Bueno Cardoso é jornalista, paulistana, foi cronista no Jornal da Tarde nos anos 90, nesta época publicou crônicas na revista Cult. Escreveu os livros de crônicas “Petit-Fours na Cracolândia”, Editora Patuá, 2015 (Prefácio de Ignácio de Loyola Brandão- a crônica que dá título ao livro venceu o Prêmio Paulo Setúbal), posteriormente colaborou com o portal São Paulo São e em 2018 lançou “Descansar do Mundo”, Editora Penalux (com quarta-capa de Ruy Castro e orelha de João A. Carrascoza- a crônica “Entre Perucas e Solidéus” ganhou Prêmio da Academia de Letras de São João da Boa Vista. Durante cinco anos deu a Oficina Multimídia Ler é Viver, com leitura crítica da Cultura (Dança, Música, Longas, Literatura) para posterior criação literária&nbsp ;para EJA (Educação de Jovens e Adultos da Escola Lourenço Castanho) e apresentou tal projeto no Congresso de Educação do ICLOC. Também ministra oficinas de crônicas  nos SESC do interior de São Paulo e no Centro de Pesquisa e Formação do SESC em SP. Ela diz em seu último livro “Gosto de buscar o escondido no óbvio” e como seu mestre, Carlito Maia diz “Amo São Paulo, mas com todo ódio. E-mail: marinacardoso@uol.com.br




Comentários (2 comentários)

  1. Eieia Abreu, Marina! Você sempre me surpreende!
    27 janeiro, 2022 as 2:39
  2. Marina Bueno Cardoso, Eleia querida, um prazer ter vc como minha leitora! bjuss mir
    30 janeiro, 2022 as 3:19

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