O número de palavras


……………………..Sentenciante I (o número de palavras)

 

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“Perante um obstáculo, a linha mais curta entre dois pontos pode ser a curva.” (B. Brecht)

 

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Estava cansada. Andara um bom caminho, apoiada em sua decisão. Ali estava a alfândega.  O inspetor a observava com cara de toupeira.

Após as primeiras formalidades e perguntas, explicou ao controlador o objetivo de passar ao outro país. À sua frente, a ponte de uns vinte metros estava vazia. Ponte a separar territórios.

Foram-lhe pedidos vários documentos. Ela entregou-lhe os três cadernos com os papéis e declarações. Ele não cessava de observá-la e de lhe fazer perguntas. Seu olhar arrogante parecia acostumado a submeter.  As respostas eram anotadas e gravadas.

Sobre o cavalete estavam os aparelhos a radiografar e fotografar seu corpo em todos os ângulos. Uma espécie de celular, com várias lentes, media a temperatura e gravava a voz. O sangue foi colhido. A direção de seu olhar era filmada. Ela teve a impressão de enxergar um espelho e uma câmera na cabine do controlador.

Diante da cara inquisitorial; do nariz de roedor e dos olhinhos miúdos manteve-se contida. Desde o momento de sua chegada, ele olhava para os aparelhos controlando as oscilações e seus registros. Ela voltou a observar o interior da cabine. Pôde confirmar a existência do espelho e da câmera.

O inspetor examinava e comparava o escrito nos cadernos com os gráficos das máquinas. Chegou a sentar-se a fim de procurar nas folhas algo que saltasse das páginas e contrariasse o código utilizado. Fez algumas observações maliciosas. A voz sempre de comando e determinação.

Ela argumentou nada levar de perigoso. Mostrava as mãos limpas, a mochila pequena já revirada pelas mãozinhas curtas do sabatinador.

Ao final ele sentenciou: “- (…) a senhora é dessas pessoas de quem se deve desconfiar, sobretudo porque parece inocente. Mas a senhora não é inocente e está provado. Por isso terá de atravessar por baixo da ponte, descer a ladeira íngreme e subir a encosta até alcançar a outra margem. Levará umas três semanas se tudo lhe correr bem. Há muitas pedras a ser escaladas e contornadas. O acesso à outra margem provará sua necessidade e mérito para atravessar a fronteira.”

Disse-lhe tudo com um sorrisinho capcioso e um olhar perverso.

Comedida, explicou-lhe que não tinha condições. Estava desacompanhada e sentia receios de ir sozinha pelas escarpas. Depois, tratava-se apenas de uma fronteira. E ela não estava ilegal, nem havia nada contra si e seus papéis o provavam.

– Mas a senhora cometeu o delito extremo. Infringiu os mandamentos mais elementares como a gravação mostra, argumentou o controlador.

Surpresa quis saber quais eram os mandamentos.

E ele muito calmo, disfarçando um gozo espargido pela saliva, disse:  “A senhora pensou demasiado para responder as perguntas. Além disso o número de palavras a que tem direito não pode ultrapassar de trezentos. A senhora ultrapassou o limite há muito. Contadas e anotadas – e brandia os aparatos tecnológicos – a senhora chegou a mais de quatrocentas palavras. Além de ter olhado para os lados. Chegou a encarar-me.”

Ela quis saber a razão de serem trezentas e não quatrocentas palavras. Em qual lei se baseava o limite, perguntou. Numa explanação confusa e tortuosa, ele citou nomes de técnicos e peritos; algumas expressões em inglês outras em alemão; denunciou o estilo de respiração usado por ela. As pausas intercaladas e irregulares dentro das frases indiciavam apreensão segundo o controlador. Ela não podia ser admitida em território estrangeiro através daquela ponte. Era impossível, concluiu.

Achou melhor silenciar-se. O sofismador de fronteiras poderia se tornar irretorquível. E condená-la a algo pior.

Olhou a descida íngreme e depois a longa e difícil escarpa. Por amedrontadora que fosse, mostrava uma sedução de verdes e rochas. Ela sentia fascínio pelo verde e pelas pedras.  No final, poderia ser um bom desafio.

Com o olhar borbulhando orgulho pelo conhecimento dos cânones a demarcar os limites entre os territórios, o senhor da ponte aconselhou-a no último momento.

– Quando estiver descendo e subindo, pense na lição aprendida comigo! E pôs-se a esterilizar  os aparatos.

Por final advertiu-a: “ – Sua travessia não terminará com a descida e a subida das rampas. A senhora está sendo aguardada do outro lado pelo fiscalizador dos horizontes.” – acrescentou.

Lentamente, ela iniciou sua descida em direção a outra margem…

 

 

 

 

 

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Francisca Vilas Boas nasceu em Guaxupé (MG) e reside no Rio de Janeiro desde 1973. Cedo dedicou-se às letras e em 1960 integrou o grupo pioneiro de Guaxupé, criador do gênero miniconto no Brasil, movimento que envolveu, entre outros, Elias José, Sebastião Rezende e Marco Antonio de Oliveira, conforme pesquisa de Márcio Almeida. Publicou os livros de contos O sabor do humano (1971) e Roteiro de sustos (1972) e o livro de poemas A asa e o osso (2011) pela editora Galo Branco.


 


 




Comentários (1 comentário)

  1. Maria Lindgren, Ótimo o texto de Silvia Nogueira. Bem bolado o “poder” do “sofismador de fronteiras” e “senhor da ponte”. Acho que é muito verdadeiro o problemão de atravessar fronteiras, ainda que sem guerra entre países. E ainda se fala em ” globalização”!
    28 outubro, 2015 as 20:03

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