O nome da flor


Maria sofria dores constantes e teve que mudar sua rotina por conta da gravidez de risco. Foram meses indo e voltando do hospital. Carregava em seu ventre a semente do primeiro filho ou filha. A ansiedade tomava conta de toda família, quase de forma descontrolada. O telefone tocava a todo instante. Em alguns momentos, colocava o aparelho no mudo para ter algum descanso, mas não adiantava. As avós chegavam sem avisar, traziam remédios, chás e se instalavam na casa para cuidar daquela barriga.

O pai é professor de história e passa o dia inteiro com seus alunos. Além das aulas, pesquisa a história da antiguidade em um mestrado que já se arrasta por alguns anos. Desde o início da gravidez, ele esmiúça alguns nomes gregos para o futuro membro da família. Acabou de saber que será uma menina.

No domingo, um arco-íris iluminou o céu bem no momento em que ele e a esposa aguavam as flores do jardim. Carlos se emocionou e o nome Íris brotou em sua mente. Íris, mensageira dos deuses, seria perfeito para a primogênita.

Ao comentar com a esposa, notou seu camuflado desconforto. Maria descende de uma família cristã e, claro, já havia recebido uma sugestão de nome de sua mãe católica: Madalena.

O casal decidiu ir devagar com o andor, pois acreditavam que a bebê lhes revelaria o seu nome. Notariam isso em seu rosto, em seu choro ou resmungos, ou em seu silêncio.

A competição entre as avós ficava mais acirrada com a proximidade do parto. A avó paterna pensou em homenagear seus antecedentes italianos e decidiu que a neta iria receber o nome de Euterpe, igual à bisavó.

Os nove meses passaram rapidamente e geraram vários confrontos entre os parentes. Maria não conseguira achar um nome de consenso, embora se afeiçoasse por alguns nomes indígenas bem brasileiros: Yara ou Anahí.

Na hora do parto, a família voou para o hospital. Cada um já havia designado a menina por conta própria. No quarto da maternidade, as avós defendiam com cólera os argumentos de suas sugestões de nome. Uma delas não aguentou e gritou com arrogância matriarcal que sua neta se chamaria Madalena e ponto final. A outra saiu do quarto contrariada e dizendo que prometera a sua mãe que se tivesse uma neta ela se chamaria Euterpe. O conflito de forma alguma arrefecia.

No meio do imbróglio, Carlos aguardava a esposa retornar da sala de cirurgia para definirem o nome. Coçava a cabeça na tentativa de achar uma solução para o problema. O avô paterno, que até então parecia ausente e mergulhado em seu celular, disse que nesta briga não iria entrar, mas se lhe perguntassem ele preferiria o nome Clarice, que queria dizer brilhante, luminosa etc. e tal. O outro avô, apaixonado por astrologia, ouviu a conversa do genro com o pai e disse que o ideal era que o nome fosse ligado aos astros, quem sabe Lua ou Estrela.

Ao saberem que a mãe estava descendo com a menina para o quarto, o círculo infernal se aprofundou. Todos estavam nervosos e dispostos a brigar pelo nome que a menina levaria. Carlos pediu delicadamente para ficar sozinho com a esposa e os familiares foram saindo contrariados e resmungando.

Quando mãe e filha entraram no quarto, o pai ficou tão emocionado que não teve coragem de pegar aquele ser tão pequeno no colo. Os dois ficaram observando a frágil florzinha que dormitava com os olhos marejados de alegria. Nem notaram que a enfermeira dizia alguma coisa, algo como ter muita gente ansiosa no corredor para ver o bebê.

– Qual é o nome dela? – perguntou a enfermeira.

Um silêncio vazio de gestos tomou conta do quarto. A enfermeira percebeu o constrangimento e disse num tom de tranquila experiência:

– Fiquem sossegados que o nome vai surgir. Posso deixar eles entrarem?

–  Não! Ainda não – Carlos retrucou aflito.

O casal olhava para o rosto da menina. Verônica, Patrícia, Odete, nenhum nome se encaixava naquele rostinho. Carlos pensava na incapacidade que as civilizações contemporâneas têm em nomear os seres e as coisas. Quando as nomeiam, a designação geralmente não corresponde a essência. O devaneio foi interrompido com batidas disfarçadas na porta.

Carlos foi atender e ouviu um sussurro da sogra do outro lado: “Posso ver a Madalena?” Pediu educadamente mais alguns minutos e ouviu sua mãe perguntar: “A minha Euterpe está bem, filho?”

Os segundos pareciam uma eternidade para os familiares que andavam de um lado para o outro no corredor. De repente, a porta se abriu e Carlos convidou a todos dizendo:

– Entrem! Não façam barulho, ela está dormindo. Além dela, a outra boa nova é que chegamos ao nome.

Os familiares entraram de mansinho no quarto, segurando a ansiedade. O nome foi revelado e, no primeiro momento, o silêncio foi quase mortal. Olhavam-se buscando um no outro alguma explicação ou sentido.

A avó materna foi a primeira a se manifestar:

– Mas… não é um nome cristão…

A avó paterna ficou amuada desviando o olhar para o chão. O avô paterno emitiu um muxoxo. O abismo se aprofundava, quando, de repente, a florzinha chorou. Um choro profundo e convidativo. O nome dela soou em uníssono e todos os braços se estenderam para pegá-la:

-Anômia, Anômia…

 

 

 

 

 

 

R.J.Robles é diretor, roteirista e produtor, formado em ciências sociais pela FFLCH /USP. Junto com sua esposa, Silvia Godoy, fundou a Cia Quase Cinema de Teatro de Sombras. Prepara seu primeiro livro de contos, Um dia te conto. E-mail: roblesart@gmail.com




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