O nome


 


.

In my end is my beginning”.

Inscrição mandada gravar em um anel por Mary Stuart, rainha dos escoceses.

 

.

A cidade ficava longe. Era a única indicação que ele tinha. E foi para lá. Quando julgou ter chegado – denunciavam o longe o chão rachado, os ventos velozes e quentes destruindo o rosto, a ausência de outdoors vendendo bugigangas –, encontrou um hotelzinho barato, descarregou suas coisas e foi procurar Fernando Freitas. Fernando Freitas era o motivo que o levara até ali. Há tempos seguia os passos de Fernando Freitas. Não que o nosso homem fosse um detetive ou algo assim. Simplesmente, casualmente, deu um dia com o nome de Fernando Freitas em um jornal do interior: Fernando Freitas, autor de sucessos vulgares, nascido na cidade que ficava longe, estará hoje na nossa província para apresentar o seu mais novo livro de poemas, Rumores de setembro blá blá blá. Diante da folha amarelada do jornal o interesse dele cresceu como uma dor de estômago repentina e imerecida. Ele obviamente não apreciava coisas tão banais quanto versinhos. Foi o nome do homem que chamou sua atenção. Nome nem um pouco incomum, é verdade, mas que para o herói deste conto encerrava certo nítido mistério, eis que ele também se chamava, com todas as letras e na mesma ordem, Fernando Freitas. A homonímia em si não lhe parecia algo surpreendente. Seu pai se chamara Fernando Freitas e ele herdara o nome. Além disso, já tinha encontrado centenas de Fernandos e dezenas de Freitas. As rigorosas e sombrias leis da estatística proclamavam que mais dia menos dia ele daria de cara com um perfeito Fernando Freitas. Mas, como veremos, o problema ultrapassava em muito a exatidão sonolenta das matemáticas.

Desde aquele inocente descobrimento no jornal, o Fernando Freitas da cidade que ficava longe passou a perseguir o nosso Fernando Freitas que morava na Capital. Tudo muito sutil no início, mas nem por isso menos irritante. Dias depois da leitura do jornal – que Fernando guardou consigo por alguma razão que desconhecia – ele foi surpreendido com o comentário do açougueiro, que lhe dissera, ao olhar o cheque recebido em pagamento de dois quilos de carne de porco, que minutos antes, olha só que coincidência, havia estado ali um outro Fernando Freitas, que também comprara exatos dois quilos de carne de porco e pagara com cheque. Perturbador? Nem tanto, pensou Fernando Freitas. Coincidências acontecem, passa para cá o cheque, ô Manuel, que eu queria dar uma olhadinha. E viu bem estampado na folhinha retangular o seu nome, que a essa altura já não sentia só seu. Voltou para casa com o estômago apertado, incômodo que tentava debelar lançando mão de um fingido bom humor. Sabemos quão inúteis são tais expedientes. No mesmo dia houve um terceiro incidente. Dessa vez ao telefone. Alguém telefonara para sua casa perguntando se ele estaria disponível para uma apresentação de Rumores de setembro na Capital. Sem esconder a irritação, Fernando Freitas disse que era outro Fernando Freitas que tinha escrito essa porcaria. A voz mecânica se desanimou, pediu perdão e explicou seu erro com a velha desculpa da lista telefônica, onde constava um único Fernando Freitas, qual seja, o nosso. Dormiu naquela noite um sono amargurado e sem sonhos. Mal sabia o que o aguardava no dia seguinte.

Aguardavam-no no dia seguinte outros encontros com Fernando Freitas, o da cidade longe. Chegando ao trabalho notou com horror que sobre a sua mesa, entre as várias dezenas de dossiês que deveria analisar – era empregado de uma firma de seguros e empréstimos –, havia um com o nome de Fernando Freitas. Solicitava dinheiro para a compra de insumos necessários ao plantio de milho. Lá estavam todos os dados do homem. Nome – Fernando Freitas –, data de nascimento – tranquilizadoramente diferente da sua –, pais, local de nascimento e endereço – cidade longe. Anotou tudo e passou o dossiê a um colega, dizendo que, por razões éticas e técnicas, não poderia analisar um pedido vindo de alguém que tinha um nome igualzinho ao seu. Poderia ser parente etc. O colega aceitou sem reclamar, mas lhe passou no ato outro dossiê em troca, afinal o equilíbrio é a única lei a se seguir neste universo que tende para o caos. Por que um poetinha de merda iria querer plantar milho? Não há dúvida, era o mesmo Fernando Freitas. Os dados do jornal e os do dossiê batiam perfeitamente. Mais tarde, ao folhear a seção de classificados do jornal da Capital, não ficou surpreso ao descobrir que o poeta-agricultor estava lá, vendendo uma casa que, adivinhem, fica na cidade longínqua. Anotou o telefone que encabeçava o anúncio. Não era o mesmo que constava do dossiê. Ficou levemente tentado a telefonar para ambos os números. Mas o que diria? Pare de usar meu nome, seu idiota? Na verdade, o nome era mais do outro do que dele, já que o poeta-agricultor Fernando Freitas era cinco anos mais velho do que o nosso Fernando Freitas. Não, não telefonaria. São apenas coincidências. Coincidências demoníacas, mas ainda assim coincidências. Logo essa avaliação da situação iria se transformar: dia a dia, hora a hora, minuto a minuto, os encontros com o nome se tornavam mais frequentes e inverossímeis. No café, no supermercado, na agência bancária, na livraria, nos telefonemas insistentes que procuravam o poeta a ser laureado. Até mesmo na loteria, onde anunciaram em um cartaz cinzento que Fernando Freitas tinha amealhado o quarto prêmio, uma pequena bolada. Não passava um dia sem que ouvisse ou lesse o nome que já fora seu e agora pertencia ao outro. Começou a imaginar a existência de uma secreta conspiração para enlouquecê-lo. Sempre fora meio paranoico e a sucessão de encontros com Fernando Freitas, que já não podia ser classificada como mera coincidência, agravou o mal. Certo dia, depois de ter recebido em casa um pacote lacrado destinado a Fernando Freitas – que por repulsa não abriu, tendo jogado-o inteirinho no lixo –, tomou a decisão de se encontrar com o rival e tirar toda a história a limpo. Foi aí que começou o conto. Lá está nosso homem.

Como a cidade que ficava longe era pequena, Fernando Freitas resolveu interrogar a primeira alma que aparecesse. Certamente todos naquela vila conheceriam seu filho mais famoso, poeta, agricultor e agora remediado novo rico, dono do quarto prêmio da loteria federal. Aproximando-se dum menino sentado num banco da única praça da localidade, perguntou:

– Por acaso você saberia onde mora o Fernando Freitas?

– Claro – respondeu o garoto –, como não saberia onde moro? É lá naquela casinha rosada, logo ali, do lado das duas mangueiras. E apontou com o dedo.

– Você é Fernando Freitas?

– Sou.

– Mas não é possível. Você deve ter uns doze ou treze anos. Como escreveria Rumores de setembro? Como plantaria milho e pediria empréstimos na Capital? É verdade que você ganhou na loteria?

Imperturbável, o menino sorriu e explicou:

– Ah, o senhor deveria ter falado direito. Esses que o senhor procura moram em outros lugares. O que anda sempre escrevendo vive na casa azulada logo na entrada da cidade. O senhor deve ter notado. Ele deixa as janelas fechadas, mesmo com esse calorão todo. O que planta milho mora um pouco longe, numa fazenda. Se quiser, posso te levar lá a cavalo. Mas não é perto não. E o outro… Tem um outro que o senhor falou… Ah, o que ganhou na loteria. Esse já não está mais aqui. Dizem que foi embora gastar o dinheiro com mulheres. Mas logo logo ele volta, o senhor vai ver. Pode até esperar na casa dele se quiser. Assim não gasta nada com hotel.

O nosso Fernando Freitas, bastante confuso, sentiu de novo aquela pressão fria no estômago. Desconfortos assim só lhe vinham em situações terríveis. Lembrou-se de ter sentido algo semelhante quando foi abandonado pelo grande amor de sua vida, que se despediu cordialmente ao telefone em um certo dia de abril e nunca mais deu sinal de vida. Lembrou-se do enterro de seu pai e de como suas mãos estavam pálidas, como se pareciam naquele dia com garras de pássaro. E agora estava aí de novo: um bolo pesado de ar gélido rodando em seu estômago e anunciando o pior. Pasmo com o menino, mais pasmo ainda por não conseguir duvidar daquelas palavras tão inusitadas, tentou plantar uma semente de ordem naquele diálogo surreal:

– Não é possível. Quer dizer que todo mundo aqui se chama Fernando Freitas?

– É. Como o senhor deve saber, nesta cidade todos somos Fernando Freitas.

– Todos? Todos mesmo?

– Aham. E a cidade também.

– A cidade? A cidade se chama Fernando Freitas? Não pode ser. Essa é a cidade que fica longe. Eu sei. Eu li.

– Não, o senhor não sabe. E nem leu nada diferente do que está sendo dito aqui e agora. Só não se lembra. Confira no bilhete de ônibus o nome da cidade e diga se estou certo ou errado.

O nosso Fernando Freitas julgou inteligente o conselho – ou desafio? – do Imperturbável. Procurou o bilhete no bolso da calça. Ao encontrá-lo, viu nele grafado o nome da Capital onde morava. Estava escrito depois da palavra ORIGEM. Havia também a palavra DESTINO, mas o nome que se seguia estava irremediavelmente apagado.

– Está apagado. Não dá para ler.

E entregou o bilhete ao garoto.

– Não, não está. Você apenas esqueceu como se lê.

O menino lhe devolveu o bilhete e ele então recitou em voz baixa: DESTINO: MUNICÍPIO DE FERNANDO FREITAS.

Breve silêncio. O estômago já não doía mais. Era como se abrisse os olhos pela primeira vez. O menino, que durante todo o diálogo tinha estado sorrindo, pôs a mão esquerda do ombro de Fernando Freitas e concluiu com uma voz lenta e irrecusável:

– Você se esqueceu, Fernando. Por isso está aqui. Para se lembrar.

– Eu esqueci… de quê?

– De seu nome, por exemplo.

– Meu nome é Fernando Freitas. E o seu também. E o do poeta, o do agricultor e o do milionário. Posso aceitar isso. São coincidências. Coincidências demoníacas, mas ainda assim coincidências.

– Não, o nosso nome não é Fernando Freitas. Quero saber o verdadeiro nome.

– …

– Qual é o nosso verdadeiro nome?

O homem que tinha se chamado Fernando Freitas, o nosso, parou por um momento, rígido e cheio de expectativas. Em algum lugar da sua mente a pergunta do menino fazia sentido. O resto do corpo se negava a entendê-la. Tratou então de silenciá-lo e se concentrou na pergunta, na dúvida e na resposta. Falou então:

– Meu nome é Andityas Soares de Moura.

– Não. Esse foi o seu nome páginas atrás. Assim como Fernando Freitas, trata-se apenas de um disfarce, uma fantasia pueril. Pense e me diga: qual é o seu, o nosso nome?

Tudo estava claro. O corpo se calara. A mente brilhava ao sol, lúcida como uma jovem amante bêbeda de vinho forte e denso. O homem respondeu ao menino:

– Eu sei qual é o meu nome. É o mesmo nome do leitor deste conto. Mas ele também se esqueceu disso.

– Sim, e por isso você está aqui. Sabe o que dizer ao leitor?

– Sei.

– Então diga, não o faça esperar. O conto já durou mais do que devia. Já revelou mais do que devia. O leitor também merece se lembrar.

Aquele que fora chamado de Fernando Freitas se sentou ao lado do menino no banco da praça, a única daquela cidade. O homem que só sabia de dossiês, seguros e empréstimos tomou ares de Professor, mas de um Professor que já não confia em seus alunos. Porque não há alunos nem professores. Pela primeira vez, sentiu que as mãos de seu pai morto cresciam nele. Eram gigantescas, mas humanas. E cantou:

– Eis a mais tenaz das ilusões: o eu. A ideia de que somos algo separado de outro algo. Daí o sofrimento de um encontro que nunca acontece porque não sabemos que já aconteceu. Nada a ver com os sonhos autoritários ou totalitários dos gregos e dos nazistas, que viam o indivíduo como peça substituível na imensa engrenagem do Estado. O um que é o todo e o todo que é o um só nos trouxe miséria e sofrimento. Estou falando de outra coisa. De um tempo diferente, de uma vibração específica. Parecida com a do Sermão do Fogo predicado pelo Buda. Mas aquelas belas palavras são inumanas. Renunciar é inumano. Jamais obteremos a iluminação debaixo da árvore Bô, depois de enfrentar os mil tormentos a que a carne é sujeita. E por isso persiste esse estado vegetativo de separação e de incompletude, incapazes que somos de renunciar à nossa dor, a face mais táctil do eu. A consciência individual, essa que nos assegura que estamos vivos, não passa de uma observação local imperfeita. Todas as terapias antigas – do budismo ao estoicismo, passando pelo sufismo e pelo tantrismo e chegando a Spinoza e Hegel – pregam a necessidade de nos desvencilharmos do eu histórico e fragmentário e nos conectarmos ao Uno. Lindos livros foram escritos sobre o tema. São mesmo sedutores. Mas ainda que fosse possível a dissolução do eu no mar da plenitude, o preço seria sempre muito alto. Significaria abrir mão da humanidade, dessa paradoxal humanidade que nos faz buscar a paz e enfrentar todas as asceses, todas as provas, todas as testagens. Pois ao que consta, só humanos obtiveram a Iluminação. Só com imperfeições se construiu a Perfeição. Há algo dentro de nós que continuamente resiste, que não se nega e jamais se negará à faina de existir.

 

 

 

 

 

 

 

.

Andityas Soares de Moura é poeta, tradutor, ensaísta e professor universitário na UFMG (Brasil). Publicou os poemários Ofuscações (1997), Lentus in umbra (2001), OS enCANTOS (2003), FOMEFORTE (2005), Algo indecifravelmente veloz (antologia poética portuguesa, 2007) e Auroras Consurgem (2010), além do livro de contos Oroboro (2011). Seu ensaio A letra e o ar: palavra-liberdade na poesia de Xosé Lois García foi editado em Portugal (2004) e na Galiza (2009). Traduziu obras de Rosalía de Castro, Joan Brossa, Juan Gelman e de poetas renascentistas franceses.E-mail: vergiliopublius@hotmail.com




Comentários (2 comentários)

  1. Vestidos de Festa, Oi eu sou Abeln Kriegler, um canadense, originalmente de Nova Scotia vida, vivendo do outro lado da lagoa, em Londres, Inglaterra com o meu namorado beardy britânico e um gato muito esquisito. Obrigado pelo seu blog. Vestidos de Noiva
    19 maio, 2012 as 18:32
  2. Vestidos de Noiva, Hi I’m Abeln Kriegler, a Canadian, originally of Nova Scotia, living life across the pond in London, England with my beardy British beau and a very cranky cat. Vestidos de Noiva
    31 maio, 2012 as 10:54

Comente o texto


*

Comente tambm via Facebook