O Mulherão do Mulherio


Maria Valéria Rezende sempre preferiu olhar a se expor, perguntar a responder, ouvir as histórias alheias a contar as suas. Só depois se habilita a reproduzi-las em outros cantos, para despertar novos relatos de vida e, com eles, a reflexão, a consciência. Neta de fotógrafo, criada para observar, optou pela invisibilidade justo para focar nos invisíveis. Olhem para eles, não para mim, é o recado.

Quando começa a publicar ficção, quase aos sessenta anos, os aplausos e prêmios multiplicam-se. Primeiro, para a produção infantojuvenil: No risco do caracol (2009) e Ouro dentro da cabeça (2013) levam os primeiros jabutis da coleção que não para de crescer nas suas estantes em João Pessoa, onde mora desde 1988. Com Quarenta dias, vencedor do Jabuti de melhor romance e também do jabutizão, como ela chama o prêmio para Livro do Ano, vem o sucesso nacional. Outros cantos (2017) vence o Casa de las Américas, o Prêmio São Paulo de Literatura e é finalista do Jabuti. Carta à rainha louca (2019), outro finalista do Jabuti, é premiado com o Oceanos. Isso para citar só os troféus de mais fama, entre muitas outras indicações e distinções.

Alguns se surpreendem – não quem a conhece bem. Valéria escreve desde muito cedo. Com menos de dez anos, criou suas primeiras histórias e peças de teatro na Remington do avô. Depois fazia os próprios livros artesanais – presentes para amigos. Já educadora popular, transformava em literatura de cordel os relatos que ouvia.

Nascida em Santos em 1942, em família de artistas, Valéria cresceu no contexto de grande efervescência cultural que tomou conta da cidade portuária no pós-II Guerra. Conviveu com Pagu, que criou um festival nacional de teatro amador na cidade; deu um jeito de ajudar nos bastidores de Barrela (1958), primeira peça de Plínio Marcos, de quem se tornou amiga. Companhias europeias de ópera, teatro e balé que desembarcavam em Santos para ir a São Paulo acabavam se apresentando também no Teatro Coliseu.

Valéria aproveitou ao máximo o ambiente e os exemplos. Pintava, desenhava, esculpia. Cantava no Madrigal Ars Viva, tocava flauta, violão. Criava programas de rádio e radionovelas com trabalhadores rurais. Fotografava. Fez super-8: dirigia os filmes e o fusca nos quais levava um gerador e o projetor para exibi-los em zonas rurais da Paraíba, em telas de lençóis, depois da montagem na sua própria moviola.

Sempre que alguém se encanta com os seus talentos, Valéria faz questão de prestar tributo ao contexto familiar e social. Se os aplausos vão para a atuação como educadora popular – que vai além da alfabetização, lembra – ela destaca o empenho comunitário: o trabalho se dá de baixo para cima e, como ela, centenas de outras pessoas vêm se dedicando à causa há anos. O que pode parecer mera modéstia em um primeiro momento, na verdade é mais do que isso. Ela deve ter consciência das suas muitas qualidades, mas prefere falar em outros que seguem sem reconhecimento. Invisíveis.

De Santos ao sertão de Pernambuco, do brejo da Paraíba à Sorbonne, em meio a algumas voltas por esse vasto mundo, a Val, como é chamada por muitas de nós, do movimento Mulherio das Letras, vem fazendo a História recente do país. Aclamada como fundadora e musa do Mulherio, prefere ser vista como parte dele, apenas. Deixa. Assim como a Alice de Quarenta dias, ela é a anti-Barbie por excelência. Costuma se definir como uma mulher prática e acerta: a Val sonha não como quem foge da realidade, mas como quem arquiteta, e constrói, um novo mundo possível.

 

 


[Diálogo com a Val na Kotter TV: https://www.youtube.com/watch?v=hRNAZRkxoDY]

 

 

 

 

Laís Chaffe é escritora, realizadora do documentário Mesmo que tudo dê errado, já deu tudo certo, com Maria Valéria Rezende [Teaser no Vimeo: https://vimeo.com/user102131539/docjadeucerto]

Laís também idealizou e está à frente do projeto Cidade Poema (www.cidadepoema.com), que vem levando poesia às ruas e a espaços públicos de Porto Alegre desde 2009. Escreveu Medusa (poemas infantis, Casa Verde, 2011), Instante Estante – Laís Chaffe (poemas, Castelinho Edições, 2011), Minicontos e muito menos (Casa Verde, Série Lilliput, 2009) e Não é difícil compreender os ETs (AGE, 2002, 112p). Também é diretora, roteirista e produtora executiva do documentário Canto de cicatriz (38min, 2005); roteirista e diretora (com Gustavo Brandau) do curta-metragem Identidade (15min, 2002); e roteirista e produtora executiva do curta Colapso (15min, 2004). E-mail: lchaffe@gmail.com

 

 




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